Cinema, tumores e críticos

"Quando um cara não pode fazer nada, ele avacalha".

- (Rogério Sganzerla)

REBELDES COM CAUSA

O cineasta François Truffaut costumava dizer que Orson Welles era o mestre incontestável do filme falado, algo que faz todo sentido se nos lembrarmos que a genialidade de Welles revelou-se já no rádio (por exemplo, a sua célebre e sempre citada radiofonização da "Guerra dos Mundos" do Wells sem "e", o H. G., em 1938). Mas foi somente em fins dos anos 1960 que Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin elevaram o som ao status de protagonista (e não de mero coadjuvante da imagem) nas produções experimentais do Grupo Dziga Vertov. Em diversas entrevistas concedidas ao longo de 1968, Godard expressou a opinião de que o som havia sido sub-utilizado desde sua introdução no cinema, e tratou de experimentar o alcance de suas possibilidades com filmes enigmáticos como "Un Film Comme les Autres" (que contrasta e intercala imagens coloridas e praticamente estáticas de um grupo de estudantes e operários que discutem temas políticos num parque, com outras, mudas e em preto e branco, feitas com câmara na mão, dos distúrbios de Maio de 1968 em Paris). Conforme declarou certa vez, "som não é somente linguagem. Som é tudo.(...) Depende do que você quer contar. É só uma questão de técnica".

O GODARD DE SÃO PAULO

Rogério Sganzerla, assim como Truffaut em 1950, começou sua carreira no cinema como crítico. De 1964 a 1967, ele escreveu para o Caderno Literário de "O Estado de São Paulo". Entre 1967 e 1968, antes de abandonar a máquina de escrever para se dedicar em tempo integral ao mister de fazer filmes, bateu ponto na "Folha da Tarde". E foi em 1968 que lançaria "O Bandido da Luz Vermelha", seu filme mais conhecido e sob cuja sombra viveria o restante da vida (da mesma forma como Welles teve de conviver até a morte com o seu "Cidadão Kane"). Embora parecesse sempre engajado num processo constante de revisão das próprias idéias (em dado momento, cita Truffaut e diz que "Cidadão Kane é um filme especial que resume todos e antecipa todos os outros", para mais adiante depreciar Welles rotulando-o apenas de "outro expressionista"), o crítico Sganzerla jamais questionou a genialidade de Godard, o realizador com quem mais se identificava. Já o cineasta Sganzerla dedicou nada menos que três documentários ao "outro expressionista", algo que podemos entender como um reconhecimento póstumo e tácito do talento do norte-americano.

Definido pelo cineasta Carlos Reichenbach como "o Godard de São Paulo", Sganzerla rompe com o padrão de contestação intelectual do Cinema Novo (inviabilizado, aliás, pelo recrudescimento da ditadura militar em fins de 1968), contrapondo-lhe algo que foi chamado posteriormente de "Cinema Marginal" (ou "Udigrudi", corruptela de "underground"). O movimento abandonou qualquer pretensão ética e cultural e caiu nos braços da "boçalidade" - ou seja, da exaltação do deboche, do grotesco e do erotismo vulgarizado. Mais do que qualquer discussão intelectual sobre meio e mensagem, é sob esse prisma de cápsula de tempo, de inseto conservado em âmbar, que as obras de Sganzerla no período deveriam ser analisadas: em fins dos anos 1960, impedido de fazer uma contestação racional, o sujeito parte para o "esculacho".

CINEMA-PLATAFORMA

O Cinema Marginal, particularmente em sua fase de experimentalismo mais agudo, com "Copacabana Mon Amour" (1970) e "Sem Essa, Aranha" (1971), agride visual e verbalmente o espectador. Particularmente no caso do primeiro filme, o achincalhe beira as raias do inacreditável e é provável que se, fosse exibido comercialmente, boa parte da platéia se levantaria e exigiria aos berros o dinheiro da entrada de volta (como ocorreu em 1968 na estréia de "Un Film Comme les Autres" em Nova Iorque - e a provocação de Godard restringia-se apenas ao plano das idéias). Estas duas obras de Sganzerla têm muito mais a ver com o teatro de vanguarda dos anos 1960 (conforme entrevisto num momento delicioso do recente filme "A Dona da História") do que com o cinema convencional - ou mesmo com as produções "engajadas" do Dziga Vertov.

Todavia, da mesma forma que nos filmes contemporâneos de Godard, a imagem na tela nem sempre corresponde ao que se ouve e a opção preferencial pela dublagem em estúdio (em vez do uso do som direto) levanta a dúvida de se os atores realmente disseram algumas das barbaridades pronunciadas em praça pública (tal dubiedade ainda se apresenta em obras mais recentes do cineasta, como num dos episódios das "Osvaldianas" de 1993, onde, embora a história gire em torno de um certo time de futebol "Estrela", todas as imagens mostradas são obviamente do Flamengo).

O uso de frases recorrentes, espécie de bordões sem nexo, também faz parte do esforço de desconstrução anárquico de Sganzerla. Se no filme imediatamente anterior, "A Mulher de Todos", de 1969 (primeira e última "super-produção" do diretor, com Jô Soares e Stênio Garcia no elenco), a personagem da opulenta Thelma Reston enervava o marido boçal (e o público) com seu insistente "benhê, me paga uma cuba?", em "Copacabana..." é a vez de Helena Ignez (atriz favorita e mulher de Sganzerla, não necessariamente nessa ordem) bradar aos sete ventos que não é "tarada", sendo a declaração feita com a atriz vestindo um ridículo mini-vestido de seda vermelha, que lhe deixa a calcinha eternamente à mostra. Ou pior, no seguinte e eclético "Sem Essa...", onde Maria Gladys passa o filme inteiro gritando "ai que fome! tô com dor de barriga!" - inclusive durante uma apavorante externa realizada numa favela, onde o elenco é perseguido por cães vira-latas e insultado em "off" pelos moradores enquanto declamam suas frases delirantes. Essa seqüência, aliás, revela além da coragem dos atores, certa dose de sadismo do realizador.

PRIMEIRA E ÚNICA

Helena Ignez é um capítulo a parte na vida de Sganzerla. Muito mais do que de Giulietta Masina para Fellini, de Helena Ignez se pode dizer que foi uma verdadeira obsessão para o realizador. Diretores que se apaixonam por atrizes e as tornam protagonistas de seus filmes não são propriamente novidade (em "Alphaville" de Godard, a estrela é sua então mulher Anna Karina), mas Sganzerla foi muito além disso: escreveu filmes feitos sob medida para uma atriz de recursos dramáticos limitados e onde ela reprisava o eterno papel de "vamp" (até mesmo no semi-documentário "Nem Tudo É Verdade", de 1986, onde ela contracena com Arrigo Barnabé).

A história de amor da baiana Helena Ignez com o catarinense Rogério Sganzerla é a chave que explica como uma mulher miúda e sem grandes dotes físicos conseguia ser tão sensual (escrachada, mas ainda assim sensual) na tela. A relação de Helena Ignez com a câmera é de total cumplicidade, numa entrega despudorada e sem restrições de mulher para amante. Algo que resvala para o puro exibicionismo, como no já citado "Copacabana..." e seu incrível vestidinho vermelho, ou num "momento cultural" de "Sem Essa...", onde o som é cortado e ela, sentada de mini-saia, abre e fecha as pernas para exibir a calcinha. Os anos se passaram, mas em 1993 ela ainda exibia os seus dotes de "cachorra" no curta "Perigo Negro", onde encarna uma manicure adúltera que se veste de modo absolutamente vulgar.

EPÍLOGO

Rogério Sganzerla morreu em 2004, aos 57 anos de idade, de um tumor no cérebro. Da mesma forma havia morrido François Truffaut, vinte anos antes. Truffaut, que ao seu modo também havia sido um contestador (foi ele quem realmente iniciou o movimento conhecido por "nouvelle vague" com seu filme "Les Quatre cents coups", de 1959), morreu igualmente jovem, com 52 anos de idade. Em 1958, com o auxílio do amigo Jean-Luc Godard que reescreveu boa parte do roteiro e co-dirigiu, ele filmou o curta "Une Histoire d'eau" em apenas dois dias. No filme, um casal num automóvel tenta achar o caminho - físico e emocional - durante uma grande inundação no sul de Paris, enquanto refletem sobre o amor, clima e literatura. Talvez o cineasta Sganzerla não tivesse gostado da obra, mas o crítico provavelmente a teria apreciado...

O novo século terá podado o impulso libertário e contestador que realizadores como Rogério Sganzerla revelaram décadas atrás? A massificação do consumo e o conformismo generalizado parecem apontar nessa direção. E mesmo Godard, nas palavras de Helena Ignez, acabou virando meio que "um sábio do cinema" (embora, na percepção dela, continue tão revolucionário quanto antes). Todavia, é verdade também que o avanço tecnológico nos trouxe primeiro o vídeo cassete e depois o computador multimídia, instrumentos que popularizaram os "meios de produção" do cinema, colocando-o ao alcance de praticamente qualquer um com uma boa idéia na cabeça. E talvez esteja justamente aí o problema dos tempos modernos: o excesso de informação e nossa incapacidade crescente de fazer frente a avalanche de dados que se abate sobre nós todos os dias. Como separar o joio do trigo, saber o que é lixo daquilo que permanecerá?

É só dar tempo ao tempo...

(14-11-2005)