E se o Helio não tivesse descido?

O Estado de S. Paulo

Sexta-Feira, 28 de Agosto de 2009 | Versão Impressa

E se o Helio não tivesse descido?

Ignácio de Loyola Brandão

Penso nos pequenos mistérios. Os enigmas triviais nos levam à pergunta: acasos, coincidências, sincronicidades? Recuemos. Em 1979, recém-separado, estava à procura de um apartamento. Tinha exigências de localização e conforto, não encontrava nada para abrigar um homem de novo solteiro, com dois filhos, milhares de livros e um moderno aparelho de som 3 em 1.

Uma noite, fiz uma palestra na Faculdade Ibero-Americana. Estava sempre lá falando de literatura para as turmas da professora Flora. Numa dessas turmas estava a Gloria, mulher exuberante, divertida que, ao saber do meu problema deu uma dica: "Sei de um apartamento assim, assim, na Rua Bela Cintra. Vá ver!" Fui. Era uma graça, bem localizado. Esquina da Alameda Jaú, próximo à Avenida Paulista, ao lado da galeria Fotoptica (onde pontificava a Roseli Matuck), vizinho à livraria Bestseller, da Celina Dahman, perto do München (que está em meu romance O Beijo Não Vem da Boca), onde happy hours eram passadas com chope e apetizers de rosbife e mostarda. A duas quadras da livraria Cultura, e do cine Triano, hoje Belas Artes HSBC, a uma quadra do Bar Brasil (quem se esquece?) que sucedeu o Pirandello como point descolado. Posso ou não redigir folhetos imobiliários?

Gostei, fui à imobiliária, me pediram um mundo de papéis, atestados, holerites, imposto de renda, certidões negativas, o habitual. À tarde, recebi um telefonema na Editora Três onde editava a revista Planeta. "O apartamento é do senhor, pode vir assinar o contrato." Como meu? Nem comecei a providenciar os papéis, acabei de sair daí. "O apartamento é seu, a proprietária, dona Gloria, mandou que alugasse para o senhor, sem fiador, sem depósito, sem burocracia." Assim, graças à surpresa da Gloria, mente larga e sonhadora (ou louca, e se eu fosse um desbundado sem tamanho?), entrei no apto. 71 do prédio 1.413, onde vivi até me mudar para Berlim em 1982. Ali, Daniel e André conviveram comigo por três anos, eu lia para eles livros como O Velho e o Mar, Robinson Crusoe, Vinte Mil Léguas Submarinas, Vidas Secas (eles adoravam a cachorra Baleia). Dali partíamos para as sessões dominicais matinais do Sesc, que eram demais!

Comíamos sanduíches no Jack?n The Box que oferecia tacos mexicanos deliciosos, uma novidade. Quando me lembro do Jack, me vem à lembrança um episódio. Um dia, exasperado, respondi a um dos ataques mordazes do colunista Telmo Martino, um viperino a quem todos temiam. Ele não gostou e replicou sarcasticamente que podia me definir pelos meus "prazeres gastronômicos". "Você come em lanchonete e limpa a mesa como um faxineiro, o que esperar de você?" Quando, 20 anos depois, sem coluna, sem espaço, esquecido, Telmo lançou uma antologia de crônicas, fui o primeiro da fila no bar Baretto a pedir autógrafo. Washington Olivetto estava lá para comprovar. Afinal, já me alertava o filósofo Rubinho Lombardi, "vim ao mundo para passear". Ou, segundo Edith Piaf, "rien de rien, je ne regrette rien". Na Bela Cintra escrevi meus livros Cuba de Fidel, Viagem à Ilha Proibida e Não Verás País Nenhum.

De lá para Berlim, depois São Paulo, Alameda Ministro Rocha Azevedo, Rua Benedito Cepelos, na Aclimação, e finalmente João Moura, onde me aboletei de vez. Agora, entremos nos acasos. Noite dessas, julho de 2009, estava no restaurante Pasquale, e a Neide, comandante ??em chefe das mesas (além de dona) me entregou um pacote. Era o romance Relato de Prócula, de W.J. Solha, escritor paraibano que conheço há décadas. Tinha sido enviado ao restaurante? Não. Para a Rua Bela Cintra, 1.413, apto. 71.

Trinta anos depois o Solha, que só tinha aquele endereço, mandou. O carteiro paulista chegou ao hall do prédio e o porteiro, veemente, devolveu o envelope: "Não sei quem é esse homem, nunca vi, não mora aqui. No 71 mora o ?seu? Hélio, não esse Laiola aí. Laiola nunca morou aqui! Pode levar de volta." Eis que a porta do elevador se abriu, e o tal "seu" Hélio saiu, ouviu a conversa, pediu o pacote: "Deixa comigo, conheço o homem."

Hélio, vejam só, ex-genro da Gloria, é o atual morador do meu 71. Ambos frequentamos o Pasquale, comemos e bebemos juntos eventualmente, já desfilamos no sambódromo na escola de samba Pérola Negra da Vila Madalena. Dessa maneira, ele me levou o livro do Solha. Agora, me digam vocês. E se o Hélio não tivesse descido naquele exato momento? E ele confessou que desceu por descer, nem precisava sair de casa naquela hora, saiu para espairecer, ir à padaria. Ou para resgatar o livro que o Solha me enviou e preencher um espaço de tempo vazio por 30 anos?

PS: Curiosíssimo o livro de Solha, colocando a liturgia da Semana Santa em João Pessoa. Por que nos isolamos do restante Brasil? O tanto de coisas boas que perdemos.

WJ Solha

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Douglas Lara
Enviado por Douglas Lara em 28/08/2009
Código do texto: T1779271