Análise de Faroeste Caboclo

ANÁLISE DA MÚSICA FAROESTE CABOCLO

As semelhanças entre o CARPINTEIRO DE BRASÍLIA, principal personagem de Faroeste Caboclo, música de Renato Russo, e o HOMEM DE NAZARÉ vão muito além dos nomes. Em contrapartida, muitas são as diferenças, suficientes até para classificar João do Santo Cristo como um Jesus Cristo às avessas.

Sobre a infância de Jesus Cristo, pouco é relatado nos Evangelhos. Porém, a de Santo Cristo é descrita com riqueza de detalhes: “quando criança só pensava em ser bandido”; “era o terror da cercania onde morava”; “ia pra igreja só pra roubar o dinheiro”; “comia todas as menininhas da cidade, de tanto brincar de médico aos doze era professor” etc.

Este último fato é a única semelhança com a infância de Jesus Cristo. Contudo, o sentido apresentado em Faroeste Caboclo (comer as meninas, brincar de médico, ser professor) é totalmente diferente do que surge nos Evangelhos, como sinal do prodigioso menino: com doze anos, Jesus aparece no templo, “sentado entre os doutores, ouvindo-os e fazendo-lhes perguntas” (Lc 2:42 e 46). No mais, só existem diferenças: João do Santo Cristo é um verdadeiro capetinha, ao passo que o menino Jesus crescia “em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2:52).

Os dois também são amigos de profissão: Jesus Cristo era filho de carpinteiro e João do Santo Cristo exercia o mesmo ofício (“cortar madeira, aprendiz de carpinteiro”). A diferença é que, enquanto Jesus abandonou a carpintaria para se dedicar à pregação de sua mensagem, João do Santo Cristo fê-lo para abraçar a criminalidade: “agora, Santo Cristo era bandido”.

Ao longo de toda a história de João do Santo Cristo, Renato Russo insere elementos característicos da história de Jesus: perdição, arrependimento, perdão, salvação, proteção. Vejamos alguns trechos da música em que isso ocorre:

- “era o que todos diziam quando ele se PERDEU”;

- “comprou uma passagem foi direto a SALVADOR”;

- “o boiadeiro (...) ia PERDER a viagem, mas JOÃO FOI LHE SALVAR”;

- “saindo da rodoviária, viu as luzes de NATAL”;

- “cortar madeira, aprendiz de carpinteiro”;

- “elaborou mais uma vez seu plano SANTO e sem ser CRUCIFICADO”;

- “ia pra festa de rock pra se LIBERTAR”;

- “pro INFERNO ele foi pela primeira vez”;

- “de todos os seus PECADOS ele se ARREPENDEU”;

- “dá uma olhada no meu SANGUE e vem sentir o teu PERDÃO”;

- “e morreu junto com JOÃO, SEU PROTETOR”.

Há, porém, quatro destaques da história de Jesus realçados em Faroeste Caboclo: hipocrisia, traição, binômio perdão-redenção e reação do povo.

A hipocrisia é, de longe, o pecado que Jesus mais detestava e combatia. Tanto que C. S. Lewis, discorrendo sobre o assunto, disse: “um homem frio e fariseu, que vai regularmente à igreja, pode estar mais perto do inferno do que uma prostituta. Mas, com certeza, não é bom ser nenhum dos dois”. Pois bem, na história de João do Santo Cristo, seu arqui-rival, “um tal de Jeremias, traficante de renome”, era um hipócrita de primeira: “desvirginava mocinhas inocentes e dizia que era crente, mas não sabia rezar”.

Quanto à traição, é cediço que Jesus foi traído por um de seus próprios discípulos, Judas Iscariotes, na famosa cena do beijo. Em Faroeste Caboclo, a traição não é menos amarga: Maria Lúcia trai Santo Cristo justamente com Jeremias. Diante disso, Santo Cristo chama Jeremias para um duelo: “eu acabo mesmo com você, seu porco traidor, e mato também Maria Lúcia, aquela menina falsa a quem jurei o meu amor”.

Aqui, no clímax da história, surge a cena mais instigante de Faroeste Caboclo: Jeremias acerta João pelas costas, o qual, por sua vez, usando uma winchester 22 que lhe fora trazida por Maria Lúcia, mata seu algoz, não sem antes proferir estas palavras: “olha pra cá filha da puta sem vergonha, dá uma olhada no meu sangue e vem sentir o teu perdão” (binômio perdão-redenção).

Na história de Jesus e em toda a tradição cristã, o sangue de Cristo é sagrado, um símbolo da redenção humana. Perceba que Santo Cristo convida Jeremias para olhar seu sangue e sentir seu perdão, numa referência direta à morte vicária de Cristo.

Por último, a reação do povo. Quem primeiro acreditou que Jesus era o Messias, o Salvador do mundo, foi o povo. A elite política e religiosa da época o ignorou. Mais que isso: os primeiros cristãos foram perseguidos e mortos, sendo que apenas em 313 d. C., com o Édito de Milão, os cristãos passam a gozar de liberdade de culto dentro do Império Romano.

Também nesse ponto a história de Faroeste Caboclo reproduz a de Jesus Cristo: “o povo declarava que João do Santo Cristo era santo porque sabia morrer. E alta burguesia da cidade não acreditou na história que eles viram na TV”.

A narrativa de Faroeste Caboclo se encerra de maneira melancólica: Santo Cristo morre sem “conseguir o que queria, quando veio p’ra Brasília com o diabo ter. Ele queria era falar com o Presidente p’ra ajudar toda essa gente que só faz sofrer”. A história de Jesus também possui um desfecho trágico: morte na cruz. Porém, para os cristãos, seu sacrifício representou exatamente o cumprimento de sua missão, coroado pela notícia da ressurreição, representando não o fim, mas o início da história do cristianismo.