Inferno: Realidade os metáfora? - Sermo XLVIII
INFERNO: REALIDADE OU METÁFORA?
Serpentes, raça de cobras venenosas!
Como é que vocês poderão escapar da condenação do inferno?
(Mt 23,33)
Quem sabe, antecipando-se ao pensamento de Sartre, Shakespeare cunhou em sua obra Tempest (1611) uma frase que mais confunde do que explica: “O inferno está vazio; os demônios estão todos aqui”. Será mesmo que o inferno está vazio? E os demônios estão por aqui? Onde? Quem são eles? De fato, existem alguns teólogos que, embora afirmem a existência do inferno, julgam que ali não há qualquer réprobo. Assim entendido, o inferno seria uma simples hipótese, ou metáfora, de modo que todos os homens se salvariam, inclusive aqueles homens que tenham morrido em irredutível obstinação pelo pecado. O inferno, portanto, estaria apenas reservado para “o diabo e seus anjos” (cf. Mt 25,41). Será?
Nas atas do Concílio Vaticano II encontra-se registrado que um dos padres conciliares pediu para que a Constituição Lumen Gentium, 49, contivesse a afirmação explícita de que há (verbo no presente) réprobos no Inferno, para que a condenação ao inferno não parecesse ser uma mera hipótese. Em resposta, a Comissão Teológica entendeu que tal afirmativa explícita não seria necessária no documento, já que Jesus, em Mateus 25 aponta que os ímpios irão (verbo no futuro) para o inferno (v. Acta Synodalia Sacrosancti Concilii Oecumenici Vaticani II, pp. 144/145).
Pois bem. Embora eu, pessoalmente, creia que haja não poucas almas no inferno, o fato é que só Deus pode responder com precisão a essa pergunta. Isto porque não se pode negar que a misericórdia infinita de Deus, Pai todo-poderoso, pode oferecer meios especiais de salvação a todos os homens, de forma que estes podem receber, cedo ou tarde, inclusive em seus últimos instantes de vida, a graça que os convida à conversão. Quem pode dizer que um pecador, nos últimos instantes de vida não tenha clamado pelo perdão de Deus, sendo assim resgatado do castigo eterno. Para Deus nada é impossível, e em suas atitudes, a misericórdia supera até a justiça.
Portanto, entendo – o debate porém não é pacífico – que a hipótese aventada é possível sim, muito embora ela seja extremamente otimista em relação ao ser humano; daí que toda idéia radical (não há nenhuma alma no inferno) deve ser evitada porque foge ao equilíbrio, fazendo com que o homem adote uma posição muito otimista que, na esmagadora maioria das vezes, não corresponde à mais razoável realidade.
O otimismo pode levar ao laxismo, e o pessimismo ao desespero. Os documentos, oriundos dos dicastérios da Igreja atestam nominalmente que há muita gente no céu (os santos), mas silencia quanto ao número e ao nome dos réprobos.
Como é que vocês poderão escapar da condenação do inferno?
Seja como for, o que importa mesmo para nosso estudo presente é a existência do Inferno e as claras afirmações de Jesus, de modo que, na prática, é possível sim ser condenado às penas eternas do Inferno. Tanto isso é verdade que o próprio São Paulo era cauteloso o suficiente para temer a sua reprovação eterna:
Trato duramente o meu corpo e reduzo-o à servidão, a fim
de que não aconteça que, tendo proclamado a mensagem
aos outros, venha eu mesmo a ser reprovado (1Cor 9,27).
Portanto, o “orai e vigiai” (Mc 14,38), porque “vocês não sabem nem o dia nem a hora” (Mt 25,13) levanta a questão se haverá – de fato – uma oportunidade última para se arrepender e, assim, alcançar a salvação. Como alerta o Catecismo da Igreja Católica:
O ensinamento da Igreja afirma a existência e a eternidade do inferno. As almas dos que morrem em estado de “pecado mortal” descem imediatamente depois da morte aos infernos, onde sofrem as penas do inferno, o “fogo eterno” (1034).
E aí entramos na reflexão complementar a respeito do inferno, que nada mais é que aquela situação existencial que a pessoa cria para si mesmo, rejeitando a possibilidade de conversão e de perdão.
Conhecer o inferno não nos interessa, de forma alguma. Basta saber que ele existe e como evitá-lo. Nessa conformidade, o fogo do inferno é a dor do vazio da vida, de saber que fez uma opção de fechamento, de solidão e de negação (A.M.Galvão, “O grão de trigo. Reflexões cristãs sobre a vida depois da morte” – Tese de Mestrado em Escatologia. Ed. Ave-Maria, 2000). Fez a opção errada. E para sempre. A questão é saber até que estágio, dentro da morte, ainda é possível obter a remissão dos chamados “pecados mortais”.
É o que o Livro do Apocalipse canônico chama de “a segunda morte” (21,8). Desde o pensamento apocalíptico da Antigüidade, não só semita, mas também grego, há a concepção de dois mundos: céu e inferno, comum nos apócrifos de Baruc e de Pedro (dois apocalipses de autoria duvidosa). O inferno era retratado como algo vil e imundo, comparado à geena. Jesus usou a ameaça do “fogo do inferno” imagem conhecida pela cultura de seu povo. O cristianismo primitivo apropriou aqueles símbolos, desde o imaginário da apocalíptica judaica.
A grande verdade é que o inferno existe, sim! É uma realidade bíblica e um dogma da nossa Igreja católica. Dizer não a Deus é uma das possibilidades da liberdade humana equivocadamente conduzida. Quais são as conseqüências desse não a Deus?
• O homem se fixa nele mesmo; não quer ir para frente, numa
situação de morte consciente; trata-se de uma situação
ontológica impossível;
• Contra a vontade de um Deus que quer dar uma “vida em
abundância”, alguém pode dizer; ”não quero!” É o próprio
homem que se condena: “não quero a sua vida em
abundância!”;
• Não querendo evoluir e não podendo retornar, a pessoa fica
numa situação estática, contrária à vida que é dinâmica; a
essa estática, chamamos de inferno (In: “O grão de trigo...”
op. cit.).
Existe muita gente no inferno? Ninguém sabe! Conhecendo-se o tamanho da misericórdia de Deus, até o destino de Judas é incerto. Embora o inferno seja uma possibilidade real, é tão falso respondermos afirmativamente (existe muita gente!) como negativamente (não há ninguém lá!). Por via das dúvidas é melhor não querer conferir. O prudente é fazer tudo para evitá-lo.
O inferno existe, mas, quem sabe, se está vazio? Ontologicamente, sabendo-se que Deus criou o homem para seu convívio, para viver no paraíso celeste, a condenação ao inferno soaria como, diz o teólogo checo Ladislao Boroš, um “fracasso de Deus”. Os pais traçam um modelo de futuro para seus filhos: uma vida com saúde, virtude, amor, trabalho, estudo, etc. Não é este o projeto dos pais para seus filhos? Se o filho não estuda, se envolve em confusões, drogas, desordens, e acaba preso, os pais não vão se sentir fracassados? Assim é a tristeza de Deus cujo filho acaba, por escolha própria, no inferno.
Como é que vocês poderão escapar da condenação do inferno?
Por muitos séculos, historicamente, a Igreja, em sua sabedoria tem declarado, por decretos de canonização, que milhares de pessoas estão no céu, jamais decretou que esse ou aquele está no inferno. Mesmo as “excomunhões”, como atos de juízos humanos ficam na dependência da palavra final, dada pelo Pai das misericórdias.
Existe uma esperança de que ninguém esteja em situação de inferno. A escatologia moderna, mesmo advertindo contra abusos ou excessivo otimismo, formula, cada vez mais, essa esperança. No passado – e a afirmação é de R. J. BLANK, meu ex-professor – a Igreja “infernizou” metade da humanidade, por razões de agressividade, discordâncias, mecanismos de vingança, políticos e até econômicos.
O inferno resume uma opção e uma escolha de vida. Por isso ele assume características de irretratabilidade: lasciate ogni speranza voi ch’entrate: “Deixai (fora) toda a esperança, vós que entrais (no inferno)”. (Dante Alighieri, in: A Divina Comédia).
Fugir da possibilidade do inferno é adotar os critérios de Deus como padrão de vida. Santa Teresa de Jesus nos diz:
Desapareça a vontade própria e não haverá inferno. O grande
mal é a vontade própria que faz com que as boas obras não se
tornem boas para quem as pratica. Se os homens fizessem
guerra à vontade própria, ninguém seria condenado.
A expressão “descer aos infernos” que se usava antes, no Credo, é tão imperfeita quanto “descer à mansão dos mortos” que se usa hoje. Por infernos se entende a região imphra, abaixo (da terra) onde se supunha fosse a morada dos mortos. Havia, nas crenças gregas, dados referentes aos mortos que habitavam no mitológico Hades, que era separado do “mundo dos vivos” por um rio, chamado Aqueronte.
Em algumas citações bíblicas, o ato de morrer vem substituído metaforicamente por “atravessar o rio” ou “cruzar a água” (cf. Is 43,2). Orfeu, na mitologia, atravessa o rio e desce ao Hades em busca de sua amada Eurídice. No hebraico, as expressões, já vistas aqui, Xeól e Geena, têm a mesma conotação de “região da morte”. A palavra xeól é provavelmente derivada de xiil, que no acádico quer dizer “região onde não há sol”. De qualquer modo, descer aos infernos ou à mansão dos mortos, equivale a dizer “teve a experiência da morte”.
Deste modo, a região debaixo da terra – onde eram enterrados os mortos – chamava-se infernos. A noção hebraica, inclusive usada por Jesus, de uma região de punição, onde o fogo nunca se apaga, apropriou a figura do xeól, grego e da geena, hebraica. A geena era como que um “lixão”, lugar onde era depositado todo o lixo das cidades cananéias que, pela necessidade de depurar o lixo, o fogo nunca se apagava.
Para estabelecer uma higiene mínima, o lixo devia ser queimado. Como as quantidades de detritos eram muito grandes, e não era muito fácil obter fogo, o lixo queimava dia e noite (idéia do perene). Outrora, os adoradores do deus Moloc, incineraram, no Vale do Cedron algumas crianças, em culto àquela divindade (cf. 2Rs 16, 3; 2CR 33, 6; Ez 16, 21).
A cultura palestinense criou a imagem do fogo como castigo eterno, como paga pelos atos, de alguns. A partir daí, como idéia do judaísmo helenista da diáspora, inferno passou a ser um lugar de fogo, punição e eterna distância de Deus. O xeól como “lugar das almas perdidas” foi apropriado posteriormente pela escatologia judaica.
Em resumo: ainda que seja admissível – embora bem pouco provável – que não haja nenhum réprobo hoje no inferno, sempre poderá haver um primeiro, já que o inferno existe! Assim, “quem tem ouvidos que ouça”. É preciso estar atento.
Como é que vocês poderão escapar da condenação do inferno?
A filosofia existencialista não cansa de afirmar que “o inferno são os outros!” Segundo J. P. Sartre, a famosa frase denuncia duas situações interligadas. Primeiro, se dependemos unicamente dos julgamentos e das ações dos outros, abdicando de nossa liberdade essencial e intransferível, criamos nosso próprio inferno, queimamos na fornalha alimentada por nossos próprios medos, pela má-fé, pela incapacidade de autonomia. Os outros não são necessariamente os causadores do meu sofrimento. Em segundo lugar, por conta própria, eu mesmo faço do outro o carrasco de minha tortura, ao abdicar de minha liberdade.
Há muita gente, religiões e seitas que negam a existência do inferno. Para eles, a palavra inferno foi colocada nas traduções da língua portuguesa para substituir quatro outras palavras (Hades, Xeól, Tártaro e Geena) com significado completamente diferente do conceito religioso popular de inferno conforme conhecemos.
Para os contestadores reencarnacionistas e espiritualistas (kardecistas e hinduístas), Seicho-no-Iê, Testemunhas de Jeová, algumas correntes “adventistas” e variações de igrejas reformadas, todos negam a existência do inferno e dos diabos. Para eles estas entidades e situações seriam corrigidas no final dos tempos.
Para os que buscam certas “acomodações” nas traduções da Bíblia, adaptando-as às suas ideologias e credos, a doutrina do inferno é de origem grega e romana e as pessoas são induzidas a crer nela pela formação religiosa anterior (catolicismo) que receberam, além das falhas das traduções que geralmente usam e fortalecem um pensamento anti-bíblico. A expressão do verbete eterno é “aion” éon (grego)
Em Ap. 20,10 lê-se que serão atormentados pelos séculos dos séculos “aion ton aion” em grego = para sempre, eternamente conforme algumas traduções. Mas esse “pelos séculos dos séculos é previamente explicado no verso anterior, o v. 9 que diz que o fogo que desceu “do céu os consumiu”, logo, serão atormentados eternamente até que toda a substância seja consumida, e seu resultado, a destruição, será eterna, pois o fumo, ou fumaça que disso resultar estará no espaço “para sempre”, isto é, até que tudo que pode ser queimado, acabe.
Mas, além do significado gramatical de “eterno” e da explicação de Ap. 20,9, há muitas passagens declarando que o fogo que destrói os maus nos últimos dias é eterno até que consuma tudo e somente deixe as cinzas.
Na parábola do rico festeiro e do pobre Lázaro, (cf. Lc 16,19-31) o autor muda a terminologia. Não se vai para o céu, mas para o simbólico “seio Abraão”, nem tampouco se fala em inferno, mas em “região dos suplícios”. Nessa perspectiva há uma ressurreição e uma locação (céu e inferno) logo após a morte.
No desenvolvimento da dimensão escatológica observa-se que Deus não pune ninguém. Ele apenas aceita a escolha que cada um tiver feito durante a sua vida. O Pai nos informa: “não tenho prazer na morte do pecador” (cf. Ez 18,23.32) mesmo que seja ímpio. A extinção é a pena máxima e está reservada àqueles que forem impenitentes até o último momento. Eles terão chance de se reconciliar com Deus. Se não quiserem...
Como é que vocês poderão escapar da condenação do inferno?
Em um pronunciamento levado a efeito em 2008, o papa Bento XVI afirmou que o inferno é um local físico que existe e provavelmente não está vazio, secundado por seu antecessor, João Paulo II, que disse: “O inferno, de que se fala pouco neste tempo, existe e é eterno”. Nesta oportunidade, início do período da quaresma, o Bento XVI mandou um recado para os católicos, dizendo que a salvação não é imediata nem chegará a todos.
Embora esteja disponível a todos, nem todos aceitarão a oferta de Deus. Já para João Paulo II os conceitos sobre céu, inferno e purgatório estariam incompletos. Para ele, o inferno não era um local, mas “uma situação de quem se afasta de Deus”.
Há muito tempo correm teorias que, de uma forma ou outra, tentam literalmente “esvaziar” o inferno. No início do século XX, alguns sustentavam a tese, condenada pela Igreja, de que o inferno existia, estava cheio de gente, mas, decorrido certo tempo, Deus teria pena dos condenados e os tiraria de lá. Depois começou a tomar corpo essa teoria do “inferno vazio”, que coincidiu com certas perturbações pós-conciliares. Isso acarretou a zombaria dos inimigos da Igreja, de que esta havia mudado sua doutrina sobre o inferno, que antes apresentava como “cheio”, e agora estava “vazio”.
Tratou dessa temática o jesuíta, padre Giandomenico Mucci, em artigo da revista La Civiltà Cattolica (abril de 2008), intitulado precisamente L’inferno vuoto (O inferno vazio), do qual extraímos alguns dados para responder algumas perguntas que nos foram apresentadas. Antes de fazê-lo, porém, desfaçamos alguns equívocos preliminares.
Um inferno só para assustar? A alegação de que Deus criou o inferno só para assustar não resiste à menor análise. É gravemente ofensiva a Deus, por torná-lo réu de blasfema deslealdade. A experiência da vida mais corriqueira mostra que uma penalidade estabelecida “apenas para atemorizar”, da qual se sabe que não será aplicada, não tem a menor efetividade. Um pai, um diretor de colégio, uma autoridade pública que recorressem a esse expediente ficariam logo desmoralizados. Não é possível sequer imaginar que Deus procedesse desse modo com os homens. De onde é forçoso concluir que as penas do inferno serão efetivamente aplicadas.
No Evangelho: a cena do Juízo Final. Como o será, está descrito, com aquela beleza insuperável dos autores sagrados, no Evangelho de São Mateus, na cena do Juízo Final:
Quando, pois, vier o Filho do homem na sua majestade, e
todos os anjos com Ele, então se sentará sobre o trono da
sua majestade; e serão todas as gentes congregadas diante
dele, e separará uns dos outros, como o pastor separa as
ovelhas dos cabritos. E porá as ovelhas à sua direita, e os
cabritos à esquerda. Então o Rei dirá aos que estiverem à sua
direita: Vinde, benditos de meu Pai, possuí o reino que vos
está preparado desde o princípio do mundo. [...]. Então dirá
também aos que estiverem à esquerda: Apartai-vos de mim,
malditos, para o fogo eterno, que foi preparado para o
demônio e para os seus anjos; porque tive fome e não me
destes de comer; tive sede e não me destes de beber; era
peregrino e não me recolhestes; nu e não me vestistes;
enfermo e no cárcere e não me visitastes. Então eles também
lhe responderão, dizendo: Senhor, quando é que te vimos
faminto ou sequioso, ou peregrino, ou nu, ou enfermo, ou no
cárcere, e não te assistimos? Então lhes responderá, dizendo:
Na verdade vos digo: todas as vezes que não o fizestes a um
destes pequeninos, a mim não o fizestes. E estes irão para o
suplício eterno; e os justos para a vida eterna (Mt 25, 31-46).
Diante dessa descrição, que voltas foi preciso dar na sua interpretação para concluir que “o inferno está vazio”? Tenha-se apenas presente que o Juízo Final se dará após a ressurreição dos corpos, no fim do mundo, mas cada homem já terá passado por um Juízo Particular, logo após a sua morte, e o seu destino individual terá sido desde então traçado: as almas dos destinados ao Céu passarão antes pelo Purgatório — a menos de já estarem inteiramente puras de qualquer mancha — para se purificarem das culpas que não tenham purgado durante a vida; e as almas dos réprobos (condenados) serão precipitadas imediatamente no inferno, onde aguardarão a ressurreição de seus corpos para se unirem a eles, e assim se apresentarem diante do Supremo Juiz a fim de receberem a sentença confirmativa e serem lançados de corpo e alma no inferno.
A tese de Hans Urs von Balthasar
Giandomenico Mucci lembra que a expressão inferno vuoto (inferno vazio) foi atribuída ao teólogo suíço von Balthasar, no início da década de 80 do século passado. Balthasar parte da idéia de que “esperar a salvação eterna de todos os homens não é contrário à fé”, buscando respaldar-se na autoridade de alguns Padres da Igreja, entre os quais Orígenes e São Gregório de Nazianzo, opinião esta condividida por não poucos teólogos contemporâneos, entre os quais Guardini e Daniélou, de Lubac, Ratzinger e Kasper, bem como escritores católicos como Claudel, Marcel e Bloy.
A enunciação dessa tese suscitou ásperas críticas, sobretudo na área teológica germânica, obrigando Von Balthasar a defender-se: “Minhas palavras foram repetidamente deturpadas no sentido de que, quem espera a salvação para todos os seus irmãos e irmãs ‘espera o inferno vazio’ [...]. Ou no sentido de que quem manifesta tal esperança ensina a ‘redenção de todos’ (apokatastasis), condenada pela Igreja, coisa que expressamente rejeitei”.
E depois de observar que ter a esperança da salvação de todos e saber que isso de fato ocorrerá são coisas distintas, conclui lamentando que suas palavras tenham sofrido uma “muito grosseira deformação nos jornais” (apud G. Mucci, art. cit.).
Procurando defender Von Balthasar, o padre Mucci observa que “os escritores laicos e os jornalistas não estão habituados a essas distinções, que talvez julguem como ridículas cavilações eclesiásticas”. Na verdade, como historiou o próprio Pe. Mucci, a tese de Von Balthasar provocou também fortes estranhezas nos ambientes teológicos...
A rejeição de Deus e a condenação
Aprofundando a questão,. Mucci continua: “Para compreender de algum modo o inferno, seria preciso penetrar o sentido e a gravidade do pecado mortal”. O pecado é um mistério, como o é a sua punição. É o mistério da criatura que rejeita a fonte e o fim do seu ser. A agonia espiritual do inferno é o final horrível das tendências pecaminosas maturadas pela alma ao longo da vida terrena, voluntariamente desenvolvidas, e que não desfecharam numa sincera conversão.
Isto significa que o pecador se preferiu egoisticamente a Deus, e Deus ratificou a livre vontade do condenado. Sob certo aspecto, o inferno é o pecador que teve êxito, o pecador que conseguiu fazer perfeitamente o que quis, e começou a fazer nesta terra. Por isso, o inferno é obra do homem, cuja vontade Deus respeita. O homem obtém no inferno tudo o que buscou de errado nesta vida.
Deus sem dúvida “quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade”, como diz São Paulo (1Tim 2,4), mas desde que alguns fizeram livre e loucamente sua opção pelo inferno, Deus em sua infinita e perfeita justiça respeita tal opção. Tendo o homem rejeitado a Deus, ele por sua vez sofre a rejeição de Deus, que o precipita nas profundezas do abismo, da “geena” (Mt 5, 22), “fornalha de fogo” onde “haverá choro e ranger de dentes” (Mt 5, 42).
A palavra de um especialista
Em abono do que acabou de explicar, o Pe. Mucci cita “um teólogo especialista”, isto é, o então cardeal Joseph Ratzinger, que, no livro “Escatologia, Morte e vida eterna” (1977), afirma que Deus “não trata os homens como menores de idade, os quais, no fundo, não possam ser considerados responsáveis do próprio destino”, mas “deixa até mesmo ao perdido o direito de querer a própria perdição”.
Trinta anos depois, o autor destas páginas, que se tornou Bento XVI, retomou o grave problema com aflita sensibilidade pastoral na encíclica Spe Salvi. Nota-se sensibilidade pastoral e desencantado realismo: E cita o nº 45 da encíclica:
Pode haver pessoas (sunt quidam, isto é, há alguns) que
destruíram totalmente em si próprias o desejo da verdade e a
disponibilidade para o amor; pessoas nas quais tudo se tornou
mentira; pessoas que viveram para o ódio e espezinharam o
amor em si mesmas. Trata-se de uma perspectiva terrível,
mas algumas figuras da nossa mesma história deixam
entrever, de forma assustadora, perfis deste gênero. Em tais
indivíduos, não haveria nada de remediável [nihil sanabile
invenias, isto é, nada de remediável se encontra) e a
destruição seria irrevogável. É isto que se indica com a
palavra inferno (n. 45).
A Escritura sagrada claramente atesta a existência de um lugar de condenação eterna chamado inferno ou às vezes referido a como Geena. Os exemplos são os seguintes: Jesus disse que o homem que desprezar seu irmão “incorrerá no fogo da Geena” (Mt 5,22). O Senhor advertiu: “não temam os que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Antes, temam quem pode destruir tanto corpo como alma na Geena” (Mt 10,28). E Jesus prosseguiu: “Se tua mão te faz cair, corta-a. Melhor você entrar na vida com uma só mão que manter ambas as mãos e ir para a Geena com seu fogo inextinguível” (Mc 9,43).
Como é que vocês poderão escapar da condenação do inferno?
Usando a parábola do joio e do trigo para descrever o julgamento final, Jesus disse, "os anjos lançarão a erva daninha na fornalha inflamável onde haverá choro e ranger de dentes” (Mt 13,42). Semelhantemente, quando Jesus falou do julgamento final onde a ovelha será separada dos lobos, Ele dirá aos maus: “Afastem-se de mim, malditos, para o fogo perpétuo preparado para o demônio e seus anjos” (Mt 25,41).
Finalmente, no Livro da Revelação, cada pessoa é julgada individualmente e os malfeitores são lançados em um fosso de fogo, a “segunda morte” (Ap 20,13-14). Apenas para clarificação, Geena era um vale ao sul de Jerusalém que era utilizado para sacrifícios pagãos de crianças pelo fogo. O profeta Jeremias amaldiçoou o lugar e predisse que seria um lugar de morte e corrupção. Na literatura rabínica tardia, o termo identificava o lugar de castigo eterno com torturas e fogo inextinguível para os maus.
Dessa forma, a Igreja consistentemente ensinou que de fato o inferno existe. Que as almas que morrem num estado de pecado mortal imediatamente vão para o castigo eterno no inferno. O castigo do inferno é principalmente a separação eterna de Deus. Lá se sofre o sentido de perda, a perda do amor de Deus, a perda da vida com Deus, e a perda da felicidade. Amor verdadeiro, vida, e felicidade são relacionadas a Deus, e cada pessoa as deseja. Entretanto, só Nele o homem achará sua realização.
A pessoa condenada também sofre dor. As descrições dadas sobre esse "fogo" pela Constituição Apostólica Benedictus Deus (1336) do Papa Bento XII disseram que as almas sofreriam “a dor do inferno” e o Concílio de Florença (1439) decretou que as almas “seriam punidas com castigos diferentes”.
Devemos lembrar que Deus não predestina ninguém ao inferno nem deseja que alguém seja condenado. Deus nos confere a graça atual que ilumina o intelecto e fortalece a vontade de modo que podemos fazer o bem e desviar do mal. Se uma pessoa não se arrepende do pecado mortal, não tem qualquer remorso e persiste neste estado, então esta rejeição de Deus continuará para a eternidade. Em resumo: as pessoas se condenam ao inferno.
A Igreja nunca condenou uma pessoa ao inferno, nem mesmo Judas. As excomunhões, por humanas e dependerem de uma homologação divina, não significam condenação automática. Antes, a Igreja deixa todo julgamento nas mãos de Deus. Devemos orar pela graça de resistir à tentação e seguir o caminho do Senhor e ao mesmo tempo procurando o perdão para qualquer queda que venhamos a cometer. Falando sobre a jornada da Igreja Peregrina, o Vaticano II na Constituição Dogmática sobre a Igreja (GS 48) escreve:
Desde que não se sabe nem o dia nem a hora, devemos seguir o conselho do Senhor e vigiar constantemente de modo que, quando o único curso de nossa vida terrena for completada, possamos merecer entrar com Ele na festa das bodas e sermos numerados entre os abençoados e não como os serventes maus e preguiçosos, sermos enviados ao fogo eterno, na escuridão exterior onde “haverá prantos e ranger de dentes”. Por esta mesma razão, nós oramos na primeira Oração Eucarística da Missa, “Pai aceita esta oferenda de toda sua família. Conceda-nos sua paz nesta vida, poupa-nos da condenação final, e conta-nos entre os escolhidos”.
O próprio Jesus desceu aos infernos, à sepultura, sua câmara mortuária. Como a Bíblia menciona, ele não foi esquecido nos infernos, foi ressuscitado no terceiro dia conforme relatam os evangelhos. Porém deve-se salientar que outros teólogos veem que essa ida de Cristo a esse lugar foi para resgatar cada ser humano que estava na morte, destinado ao esquecimento eterno pelo pecado original de Adão. Sendo Jesus o consumador da fé, ele serviu de “cordeiro expiatório”, em quem não foi achado nenhum pecado.
Aa tradição da Igreja afirma que ao aparecer às crianças em Fátima, em 1917, Martia, mãe de Jesus teria ensinado uma oração a respeito da salvação, do céu e do inferno:
Ó meu (bom) Jesus perdoai-nos. Livrai-nos do fogo do
inferno, levai as almas todas para o céu e socorrei
principalmente as que mais precisarem (da vossa
misericórdia).
Trata-se de uma prática impetratória da Igreja no sentido de que os fiéis sejam defendidos do mal, livrados do inferno e conduzidos ao céu. Esta oração é interpolada em cada dezena do Terço/Rosário. É pelas propriedades salvíficas da práxis de Jesus (o mistério da cruz) que somos salvos. A nossa proteção está em seu Nome. Para a Igreja Católica, o inferno é dogmatizado como eterno e corresponde aos chamados novissimus, dos quais fazem parte a morte, o juízo, o purgatório, o céu e o inferno.
A fusão entre desejo, paixão, pecado e condenação envolvida na imagem do Inferno permitiram ao imaginário contemporâneo elaborar hipóteses sobre o inferno, antes lugar de prazer e de servidão ao prazer do que propriamente de sofrimento ou purificação. O fenômeno é bem observado na cultura cristã que, no seguimento dos esforços aplicados às ideias de purificação do monoteísmo, condenou as divindades da fertilidade, das paixões e da energia sexual, o que literalmente as transformou em demônios.
Assim, na busca de uma ascese inspiradas pela castidade, os arquétipos da paixão e do prazer ficaram associados aos do inferno, com a consequente mudança de sentido e de atração sobre a imaginação. Outras correntes de pensamento atual, com base na cultura cristã, demonstram a sua opinião de inferno não como um local físico, mas antes como um estado de espírito, uma “situação”. São teses ainda a serem analisadas pelas comissões de teologia da Igreja.
De qualquer forma, fica-nos a certeza da existência do inferno. Mais do que afirmações culturais ou históricas, estamos diante de uma realidade bíblica, citada dezesseis vezes no Novo Testamento. O próprio Jesus fala dele e nos adverte para que fiquemos vigilantes quanto à pestilência infernal. Só o caminho da virtude e da fidelidade ao projeto de Deus, vivido diuturnamente é capaz de nos manter longe dele. A oração, a pureza de atitudes, a frequência aos sacramentos, a caridade e a fé discernida irão alimentar nossa vida cristã, cujo ápice se situa no coração de Deus. Mesmo assim é preciso estar vigilante.
Como é que vocês poderão escapar da condenação do inferno?
Trecho de uma meditação que o autor realizou em um retiro de religiosos em Maceió, em abril 2009.