Ler por prazer?
Uma menina de olhos displicentes interrompeu minha leitura de Sherlock Holmes quando o detetive subia uma espécie de montanha em busca de seu inimigo.
- Quando você tem que terminar o livro?
Coloquei o marcador na página em que fora interrompido e pedi que me explicasse sua pergunta. “Quando” eu deveria “terminar o livro”? Se lia com tanto interesse, certamente possuía prazo para eventualmente escrever um resumo ou um texto para entregar a algum professor.
-Estou lendo por prazer.
A adolescente – acompanhada implicitamente por uma mulher que se sentava no banco dianteiro e de um homem segurando-se ao balaústre – lançou-me olhares inquiridores como se me perguntasse: ler por prazer?
Então me contou que lia exclusivamente livros da escola, abrindo a bolsa e mostrando-me dois do Eça de Queirós, provavelmente solicitados em algum vestibular: O primo Basílio e A Relíquia. O primo Basílio narra um adultério. Escritores passados (Machado de Assis, Flaubert, Tolstoi ou D.H. Lawrence) trataram largamente do tema assim como os contemporâneos (entre eles Autran Dourado, Dalton Trevisan e Luiz Antônio de Assis Brasil). Mesmo na marra, o adultério pode facilitar a leitura de uma obra como O Primo Basílio. E o que dizer de A Relíquia?
Uns dez anos atrás a li quando do fim de um ciclo de estudos. À noite, acordava com o protagonista perambulando pelo deserto em busca de preciosidades como um pedaço da cruz de Cristo ou um manto da Virgem Maria para presentear a tia que lhe financiara a viagem.
A obrigatoriedade de leitura cria um abismo de aversão, quase sempre ampliado, em grande parte, por alguns professores que, repassando obras estritamente relacionadas ao vestibular ou empurradas goela abaixo por programas, esquecem que Literatura não consiste em mera disciplina curricular. Literatura é um caminho de prazeres, de reflexões e de humanização.
Alguns anos atrás o jornalista Gilberto Dimenstein surpreendia-se com o número de estudantes de jornalismo que não liam nem jornal nem revista: 40%. Quantos professores buscaram livros literários desde que abandonaram os bancos acadêmicos? Quantos professores têm prazer na leitura e conseguem transmitir esse prazer aos seus alunos? Quantos professores possuem bibliotecas particulares? Precisamos de professores leitores ou, como nos sugere Marta Morais da Costa, professora da Universidade Federal do Paraná e da Pontifícia Universidade Católica, corremos o perigo de prejudicar a Literatura: “O professor que não lê deforma leitores”.
A nós, professores, a conscientização de elaborar um conhecimento Literário construído pedagogicamente na pluralidade, na democracia e na difícil tentativa de horizontalizar as relações entre quem ensina e quem aprende, rearticulando práticas pedagógicas por meio de estudo sistemático e de leitura freqüente. Dessa forma, provavelmente conseguiremos reunir alguns leitores mirins que levarão o hábito (quem sabe a paixão?) da leitura por vários anos. Será que podemos?
Vicentônio Regis do Nascimento Silva (www.vicentonio.blogspot.com) é crítico literário e educador. Assina a coluna Literatura, publicada semanalmente no Jornal de Assis (Assis – SP).
*Publicado originalmente no Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 22 de agosto de 2009.