O pilão e a paçoca

SABOR E POESIA - [ 21/08 ]

O pilão e a paçoca - Míriam Cris Carlos

http://www.cruzeirodosul.inf.br/materia.phl?editoria=33&id=212169

Era um pilão quase do meu tamanho, totem africano no piso de tijolos, a buscar minha atenção. É claro que no tempo em que eu teria sequer um metro, nada difícil achar absurdamente imenso um artefato cujo uso, por mim, ainda não havia se desvendado. Mas era, de qualquer forma, um monumental e reforçado pilão de grossa madeira. Não sei como chegou ao quintal de minha avó. Mas ali apareceu, tão robusto quanto meu avô, que o haveria de pilar.

Dias de fartura, e do churrasco não comido, a carne desfiada era misturada à farinha de mandioca. Depois dá-lhe socar, socar e socar. Muda, eu ouvia o baque lento e compassado. Forte. Insistente melopéia. Relógio de som. Música de pilão, feita por meu avô, munido de um grande socador para a paçoca, nome do alimento que se preparava naquele pilão mágico. Comida indígena (do tupi poç-oc, quer dizer esmigalhar) e que poderia ser salgada, a de carne desfiada e socada com alho, cebola, cheiro verde, farinha de mandioca, ou doce, a de amendoim torrado e socado com açúcar. Ambas, comidas aos punhados, com café, com leite, só paçoca.

Em Minas Gerais e em Pilar do Sul há festividades específicas para paçoca. Na tradição caipira paulista é preparada durante a Semana Santa, não apenas como alimento, mas ritual de amor, devoção e união, pois em pilão grande, pode ser feita simultaneamente por várias mãos que juntam forças.

Desta forma, o pilão, que até hoje é um presente significativo para se dar aos noivos em Moçambique, no Brasil, mistura a tradição africana, o alimento indígena, o ritual católico e meu avô luso-brasileiro.

Havia ainda um pilãozinho, miniatura para se socar o alho com o sal. Pilão cintura de moça, caprichosamente torneado em metal, para a moça com cintura de pilão, minha mãe. Para o arroz ficar mais perfumado, um dente de alho, sal, e o socador marchava rápido, rápido, rápido, rápido. Novamente música. Outro ritmo, outro compasso, outra entonação. Vinha o ‘clic‘ do ‘magiclik‘ para o fogo. Então o creme de alho batido ia para a panela com um fio de óleo. Nova música, a de fritar o alho para refogar o arroz e em seguida, a água, num tchimmmm ainda mais longo, perfumado e sonoro.

Não à toa Márcio Borges, no livro ‘Os sonhos não envelhecem‘, conta dos ciúmes da mãe pelas panelas que ninguém podia ‘tocar‘, mas que eram cedidas sem resistência para o músico Naná Vasconcelos, que as transformava em objetos experimentais de percussão.

Hoje, quando vejo um pilão, penso harmonias e compassos e percebo que comida, arte visual e gustativa, é, também, música para a alma, do pilãozinho de alho de minha mãe ao imenso pilão de paçoca de meu avô. Mais que imagens, sons que reverberam a memória de um existir poético.

Míriam Cris Carlos, doutora em Comunicação, acha que comida é memória e é cultura (micriscarlos@uol.com.br) - http://www.cruzeirodosul.inf.br/materia.phl?editoria=33&id=212169

Douglas Lara
Enviado por Douglas Lara em 21/08/2009
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