O Que Dante Não Disse?
Na Comédia, que se tornou Divina, em sua primeira parte - O Inferno - Dante Alighieri descreveu suposta viagem que teria realizado à mansão dos mortos, acompanhado por Virgílio, famoso poeta romano dos tempos de Júlio César, e aquele que teria sido o grande inspirador do poeta florentino.
À época, os preconceitos religiosos e políticos alijaram grande parte daquilo que o poeta de Florença pretendeu entregar como legado para a humanidade que vivia na obscuridade da Idade Média, quando a Terra, esférica, era o centro do Universo segundo a cosmologia de Ptolomeu. Três continentes eram conhecidos: Ásia, África e Europa, e acreditava-se que eles ocupavam somente um dos hemisférios da Terra. Todo o hemisfério oposto era coberto de água.
Para compreender a Divina Comédia de Dante é necessário conhecer um pouco das crenças daquela época, bem como um pouco da vida de seu autor, já que a mesma se constitui numa sátira política para os materialistas, e num relato sobre o mundo dos mortos para os que nisto crêem.
Virgílio aparece logo no início da viagem para amenizar o sofrimento que seu discípulo estava experimentando à porta do Inferno, mantendo a condição de cicerone deste pelas nove divisões do reino das trevas, até o momento em que começa a ocorrer a transição do Purgatório para o Paraíso, quando Beatriz - o grande amor de Dante - passa a conduzir o poeta pelas hostes celestiais dela já bem conhecidas.
Beatriz, para melhor compreensão dos leitores, era a alma de Beatrice Portinari, a quem chamavam de Bice, a quem Dante, logo quando a viu pela vez primeira, mesmo sem nada dizer, entregou seu coração em amor e ternura. Em vida, o poeta e Bice nunca se encontraram, mas no Paraíso esse encontro ocorreu da forma mais maravilhosa possível, ao ponto de quase não existirem palavras para narrar tal encontro.
A viagem que levou o ilustre filho de Florença ao encontro de sua amada, teve enormes obstáculos, quase intransponíveis não fora a missão superior confiada a Virgílio, posto ter sido necessário vencer caminhos dominados por demônios e inçados de perversidade.
Tudo que é narrado na parte primeira da obra dantesca, dá uma idéia de que o inferno existe somente após a partida dos homens para a outra dimensão dos mortais comuns não conhecida.
Entretanto, a vida do próprio poeta - político eminente que veio a ser expulso de sua cidade antes de completar um ano de mandato como governador, homem que amou sua musa em sublime silêncio e grande sofrimento, floretino cuja vida se esvaiu sem que pudesse retornar à terra que amava - é clara demonstração daquilo que Dante não disse, embora toda sua capacidade de, pela poesia, legar aos homens tesouros que, sem a sua contribuição, permaneceriam escondidos em invólucros edificados pela ignorância e consolidados pela hipocrisia.
Mas, afinal, o que Dante não disse?
Tenho para mim que no Inferno, narrado por Dante, este não disse, embora tivesse experimentado com profundidade, que todo o vale de sombras e sofrimentos não é um privilégio do reino de Lúcifer, isto porque antes de nele chegarmos, não raras vezes, experimentamos dores, martírios e sacrifícios cujo conteúdo nada tem em comum com a vida plena ou com o Paraíso, mas que guarda significativa similitude com o mundo das almas condenadas, o que evidencia que o resgate começa aqui, ainda no plano terreno, distante dos domínios das forças inferiores e antes das criaturas deixarem seus corpos biológicos e encetarem a dura jornada em direção aos domínios superiores do Criador.