CORDEL E LINGUAGEM: MÚTIPLAS RELAÇÕES
Tâmara Lyz Milhomem de Oliveira (UESPI)
RESUMO: A literatura de cordel está no Brasil desde o século XVI, entretanto não é tão discutida, tanto que este estilo literário não possui grande número de citações em livros especializados nesta área. Com um misto de oralidade e poesia, o cordel possui linguagem peculiar, seus clássicos passados de geração em geração, servem como veículo de informação, diversão e até mesmo como instrumento alfabetizador. Neste estudo serão explanados aspectos dessa literatura, tais como: linguagem, marcas estilísticas, popularidade, relação com a marginalização da linguagem popular.
Palavras-chave: cordel, linguagem, variação lingüística.
Introdução
O cordel começou a ser difundido em nosso país por volta do século XVI junto com os colonizadores Europeus e se desenvolveu no Nordeste, onde vivia maior parte da população nos primeiros séculos de colonização.
Sem livros ou escolas foi criou-se uma cultura oral onde o cordel se enquadrou perfeitamente já que possui grande enfoque na oralidade, com marcas deste gênero do discurso.
O cordel é um, mas se divide deixa-se moldar pelo leitor, possui uma maleabilidade de linguagens, criando a possibilidade do escrito passar a oral, quando sua leitura se multiplica fazendo de um leitor ponte para vários outros. Isso acontece, quando os folhetos são lidos nas tradicionalmente rodas de famílias onde essa literatura é passada oralmente, inclusive para àqueles que não foram alfabetizados. A ordem também se inverte, o oral passa a ser escrito, quando passadas conhecidas pelejas ou cantorias para o folheto de cordel.
Dentro da sociedade carente de escritos o cordel veio a servir como meio para transmissão de informação. Quando ainda não havia jornais, eram seus folhetos que ocupavam o papel de transmitir notícias. Tal fato pode ser comprovado quando houve decaimento desta literatura com a difusão do jornal. As tipografias se instalaram aqui e os jornais passaram a se propagar enquanto que o cordel “perdeu” parte de seu espaço.
1. Cordel
A linguagem do cordel possui traços bem peculiares, com características específicas a este gênero literário, faz parte de seus versos a poesia ritmada e não sem intencionalidade, sua rima e ritmo interferem diretamente na sonoridade destes escritos. A sonoridade dentro do cordel é fator muito importante em relação ao sucesso com seu público, porque estes são lidos e posteriormente decorados.
Seu ritmo corrobora para sua assimilação e memorização, o que é imprescindível considerando a relação ao seu curso literário sendo que este se dava em parte oralmente, muitos leitores decoravam os cordéis e perpassavam a estória dos folhetos, dessa forma o ouvinte do cordel viria a perpetuar a estória a muitos outros. Para a divulgação literária dentro de um ambiente onde poucos sabem ler, essa forma de perpetuação surge como alternativa e finca-se na história do cordel como característica.
Tradicionalmente a localização dos cantadores e produtores dos folhetos de cordel foi e é a zona rural nordestina ou alguma localização dentro desta região do país, o que reflete a predominância dos temas que retratem essa realidade fazendo parte das tradições desse povo. O cordel aborda vários temas. Esta literatura exprime as velhas narrativas e acontecimentos de uma sociedade. Para as temáticas geralmente abordadas pelo cordel existem várias classificações de diferentes autores, será descrita a classificação dada por BATISTA,1977. p.10.
1. Temas Tradicionais: a) romances e novelas; b) contos maravilhosos; c) estórias de animais; d)anti-heróis; peripécias e diabruras; e) tradição religiosa; 2. Fatos circunstanciais ou acontecidos; a) de natureza física: enchentes, cheias, secas, terremotos, etc.; b) de repercussão social: festas, desportos, novelas, astronautas, etc.; c) cidade e vida urbana; d) crítica e sátira; e)elemento humano:figuras atuais ou atualizadas, tipos étnicos e tipos regionais, etc.; 3 Cantorias e pelejas.
A imagem do cordel está muito ligada à xilogravura, pois foi muito utilizada para ilustrar as capas dos folhetos, com origem na China veio ao Brasil juntamente com a Corte Portuguesa. Em 1808, com esse acontecimento deu-se a implantação da imprensa Régia, que a principio exercia a função de imprimir legislações e papeis diplomáticos e posteriormente passou a atender outras demandas.
Os artesãos no início, tiveram de usar de muita habilidade e criatividade para fazer funcionar a imprensa Régia. Carente de tipos gráficos apropriados e clicheria, os gravadores portugueses produziram xilogravuras com “armas reais”. A partir da segunda metade do século 20 a xilogravura passou a ilustrar folhetos de cordel que, antes continham em suas capas apenas textos, as chamadas capas cegas, ou eram ilustrados com alguma figura disponível, alguns editores usavam imagens de filmes norte-americanos.
A linguagem do cordel é muito marcada pela sociedade em que ele está inserido, reflete a realidade e os valores advindos de seu público, formado em sua maioria por homens do campo, moradores do interior nordestino. Velhas narrativas tradicionalmente transmitidas são enriquecidas de comentários, favoráveis ou não, a cerca de seus personagens conforme estes são vistos pela sociedade local. A figura do herói é incorporada aos valores de julgamento do meio social de seu público, característica que denota sua popularidade enquanto literatura, a narrativa é contextualizada à realidade do leitor levada até o meio social do leitor, se inter-relaciona com sua vivência de forma que o incita a buscar seus conhecimentos empíricos para perceber cada obra.
2. Adaptações da Linguagem para o Cordel, Popularidade.
Seu público acostumou-se com a estrutura do folheto de maneira que não recebe igualmente outros estilos literários, um livro em prosa, ou o jornal são exemplos de leitura que não são percebidas da mesma forma que o cordel, afinal possuem estruturas diferentes.
São essas diferenças que dão espaço as adaptações de outros gêneros para o cordel, textos clássicos passam por modificações estéticas, sonoras dentre outras, para sair de um estilo e ir a outro sem a modificação da mensagem do texto inicial. Essas adaptações surgem com o cuidado de dar valor e enfocar o público da literatura popular, direcionando essas obras para leitores diferentes, tornando-as mais acessíveis. Para as adaptações geralmente são escolhidas narrativas que se assemelhem as tradicionais estórias da literatura de cordel, características em comum entre dois segmentos literários diferentes, permitem com que uma obra possa ser moldada ao ponto de se tornar outra.
Usaremos o exemplo da adaptação do livro Escrava Isaura de Bernardo Guimarães para o cordel de autoria do poeta Apolônio Alves dos Santos, exemplo utilizado em artigo de ABREU (__, p. 201).
A Escrava Isaura (Guimarães, 1981, p. )
Era nos primeiros anos do reinado de Sr. D. Pedro II. No fértil e opulento município de Campos de Goitacases, à margem do Paraíba, a pouca distância da vila de Campos, havia uma linda e magnífica fazenda.
Era um edifício de harmoniosas proporções, vasto e luxuoso, situado em aprazível vargedo ao sopé de elevadas colinas […] A casa apresentava a frente às colinas. […] Os fundos eram ocupados por outros edifícios acessórios, senzalas, pátios, currais e celeiros, por trás dos quais se estendia o jardim, a horta, e um imenso pomar, que ia perder-se na barranca do grande rio.
A Escrava Isaura (Santos, 1981, p. 1)
Quando reinou no Brasil Grande Dom Pedro Segundo
No tempo da escravidão
Se deu um drama profundo
Que entre todos os dramas
Foi o mais triste do mundo
Em Campos de Goytacaz
Havia a grande fazenda
Do Comendador Almeida
Com casa, engenho e moenda Que daquele lugar era
A mais bonita vivenda.
No processo de adaptação é feita a mudança da estrutura da obra, da prosa para o verso, muito característico da literatura de cordel. É necessária também sua simplificação, objetivando e tornando o texto mais sucinto e direto. Além é da necessária adequação da sintaxe e do léxico.
Nesse permear de uma literatura a outra é necessária atenção à organização dos personagens na trama, o cordel possui poucos personagens em suas narrativas, geralmente separados entre os bons e maus, com caracterização muito sucinta, descreve-se pouco a respeito do seu perfil moral e físico, os participantes da trama do cordel em geral não são ambíguos ou conflituosos. Agem de maneira linear, após sua definição de comportamento, atuam de forma invariável até o final da composição.
Os sentimentos e sensações não têm grande enfoque nessas narrativas. Em geral a superação de dificuldades será o ponto mais desenvolvido no texto, cujo eixo são as ações das personagens, as narrativas se concentram no desenvolvimento das ações.
Uma característica que demonstra o grau de popularidade desta literatura é o meio no qual ela é vendida, é possível encontrar estes folhetos inclusive em feiras livres, o que denuncia sua grande proximidade com o público. Para este a contextualização de uma obra é um dos requisitos mais importantes para sua compreensão. Essa proximidade é de grande relevância, pois é também com ela que se contextualiza a literatura de cordel.
Os cordelistas colaboram para a identificação do público com seus escritos, usam artifícios a fim de aproximar obra e público, são escolhidas expressões conhecidas pelo leitor, de forma que crie condições para que a obra seja compreendida e bem recebida.
Essa preocupação com a percepção do leitor em relação a cada folheto reflete na sua estrutura lingüística, apresenta linguagem com características orais, favorecendo a leitura em grupo tão utilizada pelos leitores do cordel, que dividem seus momentos de descontração e informação particulares com outras pessoas, sejam da família ou amigos, transformando-os em momentos coletivos, essa tradição vem junto com o cordel e apesar do avanço tecnológico ainda é conservada. Com essa forma de apreciar uma obra, os versos dos folhetos se tornam acessíveis até mesmo àqueles que não sabem ler, aguçando sua percepção de mundo, aumentando seus conhecimentos, informando e divertindo, num momento que também é de interação social.
3. Linguagem
O cordel por vir de uma tradição oral, conserva muitas características desse gênero do discurso. O narrador aproxima o escrito ao oral, dando-lhe liberdade para interromper a narrativa discorrendo sobre sua opinião. A oralidade se manifesta nos personagens sem conflitos na organização do enredo.
A aproximação da oralidade, característica dos folhetos, que empregam fundamentalmente a linguagem cotidiana conhecida pelo público, caracteriza bem o meio no qual esta foi desenvolvida e difundida. Entre sertanejos, um povo em sua maioria de linguagem simples.
Seus autores divergem dos estereótipos ligados à elite. Os escritores de cordel e os envolvidos com essa literatura, em geral são pessoas com pouca instrução formal, no entanto estão envolvidas no mundo das letras e ligados com a literatura, quer seja produzindo, lendo, vendendo ou ouvindo as narrativas do cordel. A linguagem acessível e os valores ideológicos de seus leitores fazem parte das narrativas, deixando à mostra a influencia que o leitor exerce nesta, sendo também influenciado pelo cordel.
A popularidade que possui o cordel da vazão a sua marginalização, o popular torna-se marginal, pois tal como se organiza nossa sociedade, hierarquicamente o popular não está beneficiado.
Possuímos por muito tempo uma literatura que cultuava o academicismo, ligado ao prestígio social. O processo de valorização de outras estéticas vem de certa forma, recentemente manifestar-se na literatura. Já iniciada anteriormente essa nova visibilidade obteve ascensão com a semana de arte moderna, 1922, a partir de então é que estéticas diferentes às das obras importadas e tradicionalmente cultuadas, puderam também estar presentes enquanto literaturas.
As peculiaridades da língua falada fogem à norma padrão estudada nas escolas através da tão conhecida e visitada gramática, pregada à risca e decorada por tantos alunos dentro da ideologia destas instituições, que repassa a idéia de poder pela aquisição da língua padronizada gerando parâmetros diferenciais na sociedade.
A época em que a gramática foi pensada e mantida, reservava valores que obedeciam ao contexto social de então, que são tidos em nossa conjuntura como sendo preconceitos. Segundo Marcos Bagno a gramática surgiu
Como produto intelectual de uma sociedade aristocrática, escravagista, oligárquica, fortemente hierarquizada, a Gramática Tradicional adotou como modelo de língua ”exemplar” o uso característico de um grupo restrito de falantes: do sexo masculino; livres (não escravos); membros da elite cultural (letrados); cidadãos (eleitores e elegíveis); membros da aristocracia política; detentores da riqueza econômica. (BAGNO, 2006).
Apesar de ter ciência da variação da linguagem, os criadores da gramática perceberam as variantes como erros. Diante das características descritas por Marcos Bagno, da língua tida como padrão, é possível constatar que a carga negativa ligada as variantes lingüísticas estão diretamente ligadas aos preconceitos sociais, pois remete-se uma imagem negativa as variantes vindas de camadas menos prestigiadas. No artigo citado anteriormente, Marcos Bagno fala da relação fala e escrita que os primeiros gramáticos fizeram chegando a seguinte conclusão:
A língua falada era caótica, sem regras, ilógica, e somente a língua escrita literária merecia ser estudada, analisada e servir de base para o modelo do “bom uso” do idioma. ... Comparando também a língua falada de seus contemporâneos e a língua escrita das grandes obras literárias do passado, eles concluíram que, com o tempo, a língua tinha se degenerado, se corrompido e que era preciso preservá-la da ruína e da deterioração.
Esse pensamento, apesar de retrógrado e de originado de um povo com um contexto social um tanto diferente do atual, ainda é considerado e perpetuado por alguns. O fato é que eram comparadas duas modalidades distintas do uso da língua sem considerar o amplo aspecto do uso desta, não dando notabilidade para os extremos entre esses os gêneros do discurso. Resultante disso a língua falada é marginalizada, tudo enquanto não faça parte do modelo padrão da escrita é tido como erro. Onde nasce uma forte estigmatização das variantes não-urbanas, não letradas, usadas por falantes excluídos das camadas sociais de prestígio.
Considerações finais
A língua falada, como resultado destes estigmas, passa a ser marginalizada, o que não faz parte do modelo padrão da escrita é tido como erro. A literatura de cordel, essencialmente marcada pela oralidade ficou submetida a esse subjulgamento. Seu discurso é caracterizado pelo meio social de onde advém, pois a fala, é em geral marcada por aqueles que a utilizam e estes por sua vez são influenciados pelo meio em que vivem, estas marcas se manifestam por sotaques, gírias ou neologismos, são marcas de seus usuários e do contexto social em que se encontram.
Enquadrando o meio em que o cordel é inserido e levando em consideração o preconceito lingüístico servindo de preconceito social, percebe-se que este tipo de literatura sofre estigmatização, por utilizar-se de variantes da língua que demonstram sua origem, também sofrendo a exclusão voltada para usuários das variantes características dos excluídos das camadas sociais de prestígio.
Referências Bibliográficas
ABREU, Márcia. Então Se Forma A História Bonita - Relações Entre Folhetos De Cordel E Literatura Erudita. Horizontes Antropológicos, porto Alegre, ano 10, n.20,p. 199-218, jul./dez.____.
ALBANESE, Mariana. Literatura de Cordel.Brasil Almanaque de Cultura Popular,São Paulo, Ano 8, n. 89, pág.19-23, ago.2006.
BAGNO, Marcos. Nada Na Língua É Por Acaso. Disponível em: http://www.marcosbagno.com.br/arq_textos.htm. Acesso em 15. set. 2007
BATISTA, Sebastião Nunes. Antologia da Literatura de Cordel. Fundação José Augusto, 1977.
SOBREIRA, Geová. A saga do Cordel 1. Derrepente, Teresina, Ano 13, n.58, pag. 15-17, jul./ago.2007.