Para enfeitar sua ausência
PENSE BEM - [ 17/08 ]
Para enfeitar sua ausência - Juliana Simonetti
http://www.cruzeirodosul.inf.br/materia.phl?editoria=87&id=210961
Na última sexta-feira, as chaves foram deixadas em minhas mãos: sinta-se à vontade, a casa é sua. E agora estou aqui. Não há ninguém em casa, mas me conforta um pouco pedir licença para entrar. Pensando bem, será que eu deveria mesmo estar por aqui? De qualquer forma, limpo bem os pés, recolho os jornais da soleira e mesmo sabendo que você nunca os lerá, organizo-os em cima da mesa da sala: apenas para tentar enfeitar sua ausência.
Entro nas pontas dos pés: quero que os vizinhos não percebam que estou por aqui, evitar pensamentos como quem é ela? E o que faz aqui?. Rezo para que o telefone não toque, não que fosse atender, é claro, mas já posso imaginar minha aflição ao ouvir alguém com saudade de você após o bipe.
Tem um par de sapatos no meio da sala, e como uma meia descalçada pode ser desconcertante! No varal, as roupas secas me espreitam em cima dos fios. A calça no avesso: não sei se estava preparada para as suas intimidades.
Mas, por outro lado, devo confessar que há também a curiosidade de ver o amigo do lado de lá, ou melhor, de cá. Abro os frascos de perfume que estão em cima da pia do banheiro. Confiro os discos nas prateleiras. Espio os retratos em cima da cômoda. Não, não abro nenhuma das gavetas e nem a geladeira. Juro.
Há uma história começada em cima do criado-mudo. Folheio com cuidado para não deixar cair o marcador de páginas e assisto, pelas frestas do dedo (como uma criança que espia o que não deve), às histórias já navegadas pelo amigo, o rio que já molhou seus pés. Nem sento na cama, mas leio algumas páginas: Consolava-me o fato de sentir que estava ocupando o mesmo espaço mental que ele ocupava - lendo as mesmas palavras, vivendo as mesmas histórias. Tendo talvez os mesmos pensamentos. Ali estava um consolo de Paul Auster, que nós tanto gostamos.
Depois de me certificar que as coisas pareciam no lugar, passo a regar as plantas. Calculando, com as pontas dos dedos, a sede de cada uma. Medindo as gotas para não ser demais e nem de menos.
Antes de sair, deixo um bilhete na porta da geladeira: Querido, fiz o que pude. Saio, mas deixo a luz acesa para o novo amigo que cuidará da sua casa na semana que vem.
E ao fechar a porta, fico imaginando o que você poderia querer cantar nesta segunda-feira.
Tem gente que vem e quer voltar
Tem gente que vai, quer ficar
Tem gente que veio só olhar
Tem gente a sorrir e a chorar
E assim chegar e partir...
Juliana Simonetti (juliana.simonetti@jcruzeiro.com.br) é jornalista do Cruzeiro do Sul e colaborou para a coluna Pense Bem nesta semana.
O colunista Anclar Patrick está de férias. - http://www.cruzeirodosul.inf.br/materia.phl?editoria=87&id=210961