BOMBA NO CABARÉ: QUANDO A ARTE IMITA A VIDA E OUTRAS ARTES

Resumo: o objetivo deste artigo é explorar as relações intertextuais da música “Bomba no cabaré”.

Palavras-chave: Bomba, violência, voz social, Frankenstein, forró.

Abstract: This article’s object is to explore the relationships of intertexto of the song “Bomba no cabaré”.

Keywords: Bomb, violence, social voice, Frankenstein, forró.

Este trabalho pretende aplicar um dos conceitos mais interessantes de Bakhtin, o qual fora nomeado, posteriormente, por uma de suas estudiosas Julia Kristeva: o de intertexto. Paralelo a este, outros conceitos como o de dialogismo e o de heteroglossia, com o qual iniciarei este discurso, também estarão presentes neste artigo.

Principiemos com uma análise sucinta sobre a letra e sua inserção num contexto social heteroglótico.

A indústria do forró movimenta vultuosas quantias e está cada vez mais se organizando, possui um mercado abrangente e diversificado, seu produto atinge a um público de todas as idades e classes sociais, e, aos poucos, vem perdendo a estigma de a “música das massas” e, em alguns estados, já é considerada a “música da elite”. Em suas origens no xote (Antiga dança de salão, talvez proveniente da Hungria, em compasso binário ou quaternário, e cujos passos se aproximam dos da polca), no baião (Pequeno trecho de música que acompanha o canto, nos desafios e cantorias, e que, desenvolvido independentemente da cantoria, originou um gênero musical sertanejo de canto e dança) e no xaxado (Dança masculina originária do alto sertão de Pernambuco e divulgada por cangaceiros até o interior da BA), o forró sempre foi uma expressão cultural das camadas paupérrimas da sociedade, dos flagelados, dos marginalizados, dos excluídos.

Uma curiosidade sobre a origem do nome forró, é que, em alguma versões, esta foi atribuída à expressão americana for all (para todos), pois, no início do século XX, os engenheiros britânicos, instalados em Pernambuco para construir a ferrovia Great Western, promoviam bailes abertos ao público, ou seja, for all. Assim, for all passaria a ser, no vocabulário do povo nordestino, forró (a pronúncia mais próxima).

O forró, apesar de um gênero estigmatizado e alvo de muitos preconceitos, é um fator de relevância cultural muito grande, para a região nordeste principalmente. O uso da linguagem não-padrão, a simplicidade poética e a pobreza das rimas denotam bem que o meio constitutivo deste gênero musical é o das camadas pobres, sem grande instrução acadêmica, porém, nem por isso sem um amplo conhecimento de mundo e capacidade criativa. É meio paradoxal que a classe dominante e privilegiada também se veja atraída por um produto cultural das classes baixas e estigmatizadas da sociedade, que se utiliza, como já citado, de uma linguagem geralmente simples e uma poética sem muitos artifícios para tratar de temas cotidianos como traições, abandonos, vida desregrada, etc., mas a questão é que, no Brasil, há uma tendenciosa predileção, isso por parte de todas as camadas sociais, pelo que é simples, de fácil acesso e divertimento e o forró assim o é. Um grande atrativo do forró é a identificação que ocorre por parte de quem o escuta com suas letras cheias de romance, sensualidade, fantasia, e também temáticas polêmicas. Quem nunca teve um amor platônico ou proibido? Quem nunca teve que abandonar alguém ou foi abandonado? Quem nunca bebeu para “afogar as mágoas” ou correu a um amigo para desabafar? Quem nunca fez uma declaração apaixonada a alguém ou... São temas comuns, rotineiros, mas que atingem e agradam a quase todo tipo de público. Como ao forró não se aplicam certos padrões e restrições moralistas que se percebe em outros estilos, essa permissividade gerou a criação de uma linha do gênero, a qual pertence “Bomba no cabaré”, chamado forró pornofonico, o qual se utiliza de enredos sensuais para atrair a atenção do ouvinte. Através do forró se percebe a identidade de uma camada social desprivilegiada que compartilha com todos aqueles que o ouvem suas mazelas, seus conflitos e seus sentimentos.

Apresentaremos agora a letra de música à qual será aplicado o conceito de intertexto, em seguida, uma dispersão teórica nos orientará sobre no que consiste o conceito abordado.

Bomba No Cabaré

Banda: Sensação do Forró

Composição: Indisponível

Jogaram uma bomba, no cabaré...

Voou pra todo canto pedaço de mulher

Foi tanto caco de puta voando pra todo lado

Dava pra apanhar de pá, de enxada e de colher!

No meio da rua tava os braços de Teresa,

No meio fio tava as “perna” de Raché,

Em cima das telha os “cabelo” de Maria,

No terraço de uma casa tava os peito de Isabé!

Aí eu juntei tudo e colei bem direitinho

Fiz uma rapariga mista, agora todo homem quer!

Pode jogar uma bomba lá no cabaré,

Que eu junto os cacos das puta

Pra fazer outra mulher!

Principiemos, pois, com o conceito de dialogismo, segundo Fiorin, conceito o qual ele define como sendo as relações de sentido que se estabelecem entre dois enunciados.

A noção de intertextualidade foi introduzida na Teoria Literária por Julia Kristeva em 1966 por influência da noção de dialogicidade que M. Bakhtin havia desenvolvido no seu livro Estética da Palavra. Para Bakhtin o texto está em diálogo com a tradição e com uma comunidade comunicacional. Kristeva expande essa noção que Bakhtin pensara a partir da Sátira e aplica-a à literatura como um todo. “(...) todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto”.(KRISTEVA, 1974, p. 64).

Sobre o conceito de intertexto, Fiorin diz que o termo “intertexto” não aparece na obra de Bakhtin, e que Kristeva chamou de “texto” o que o filosofo russo definira como “enunciado”, portanto, tal definição de intertexto refere-se na verdade ao dialogismo.

Sendo intertexto ou uma expressão dialógica, a questão é que “Bomba no cabaré”, apesar de pertencer a umas das categorias mais prosaicas do forró atual - o forró pornofonico -, se utilizar de uma linguagem não-padrão e um certo humor negro, refere-se, através de suas relações dialógicas ou intertextuais, a uma realidade sócio-cultural digna de uma observação mais científica.

O grotesco, o vulgar, aquilo que é de mau gosto no sentido ético e até mesmo estético é, em geral, um discurso que se opõe a discursos oficiais, às diferentes normas reconhecidas e praticadas num dado momento. É aquilo que rompe a superfície da norma e põe à mostra seus latentes subterrâneos. FARACO, C.A.; JEZZA, C; CASTRO, G. (orgs.).(20001, p.87)

Em uma primeira leitura “Bomba no cabaré” não ultrapassaria o limite semântico do lúdico. A ironia, o humor negro e o exagero quase carnavalizado presente na letra chocariam, escandalizariam e divertiriam ao ouvinte ou leitor, porém, perscrutando-a em uma análise mais sócio-filosófico-literária, perceberemos nela aspectos interessantes como seu diálogo com o momento histórico o qual vivemos (a iminência do terrorismo) e um clássico da literatura de terror, o livro Frankenstein de Mary Shelley.

Depois do atentado terrorista às torres gêmeas, ocorrido em 11 de setembro de 2001, na cidade de Nova York, nos Estados Unidos, o que desencadeou uma série de conflitos entre esta potência e países do Oriente Médio, espalhou-se o pânico em torno dos atentados terroristas. Aqui mesmo, no Brasil, a cidade de São Paulo presenciou há alguns meses atentados violentos por parte de criminosos envolvidos com o tráfico de entorpecentes como retaliação a prisão de alguns traficantes. Incendiaram ônibus, carros, pessoas e provocaram um verdadeiro terror na população, não só a paulistana, mas a brasileira como um todo. Esse contexto de tensões sociais também se reflete na cultura, na música, no forró. Através dessas letras simples, alegres e escandalizantes vem, mascarada de alienação, toda uma consciência e um temor que cerca as camadas desprivilegiadas, a música é uma das formas que têm para serem ouvidas, por isso vê-se o forró hoje, sob esse aspecto, como uma nova voz social, a voz das massas que compartilha também dos mesmos temores que a elite, mas sem os mesmos privilégios. As letras de forró também denunciam o processo de des-humanização da sociedade, onde o individuo vem perdendo cada vez mais o seu valor, e o de amoralização social, dos valores éticos e morais.

No próprio título da música, “Bomba no cabaré”, percebe-se este temor social à violência. A bomba é o símbolo bélico da guerra, o fato de ela ser jogada em um ambiente considerado de “diversão” para essa camada pobre, geralmente masculina, da população, denuncia o medo que se tem da perda total dos poucos prazeres que essa parcela desfavorecida possui, a inexistência de segurança para as classes baixas e as profissões mais estigmatizadas. A bomba poderia ter sido jogada em um restaurante fino, em um hotel de luxo, ou em qualquer lugar assim, mas, em vez disso, a letra diz que a bomba cai em uma casa de prostituição e as vítimas deste atentado são mulheres que vendem o corpo para sobreviver. Aproveitando-se deste infeliz incidente, o eu lírico da música colhe os restos mortais das prostitutas e os cola formando, segundo ele, “uma rapariga mista”, um novo ser, surgido a partir dos restos mortais de outros, o que nos leva à segunda relação intertextual que podemos encontrar nesta música, a relação com o monstro do livro de Mary Shelley, Frankenstein.

Frankenstein ou o Moderno Prometeu (Frankenstein; or the Modern Prometheus, no original em inglês), mais conhecido simplesmente por Frankenstein, é um romance de terror gótico com inspirações do movimento romântico, de autoria de Mary Shelley, escritora britânica nascida em Londres. O romance relata a história de Victor Frankenstein, um estudante de ciências naturais que constrói um monstro em seu laboratório. Mary Shelley escreveu a história quando tinha apenas 19 anos, entre 1816 e 1817, e a obra foi primeiramente publicada em 1818, sem crédito para a autora na primeira edição. Atualmente costuma-se considerar a versão revisada da terceira edição do livro, publicada em 1831, como a definitiva. O romance obteve grande sucesso e gerou todo um novo gênero de horror, tendo grande influência na literatura e cultura popular ocidental. Disponível em http// www. Wikipedia.com.org.br/Frankestein. Acesso em 18/ 09/2007.

O desafio à morte, a criação da vida, roubar o homem para si o poder sobre o que, segundo os princípios judaico-cristãos, é uma dádiva divina: a vida, são as temáticas e conflitos principais da obra Frankenstein, temáticas e conflitos também presentes na letra de música analisada, e indo mais a fundo na semelhança entre ambos os textos, eles possuem outra característica marcante em comum: a soberba. Victor Frankenstein fora destruído por seu imenso orgulho, e o eu lírico da música diz-se ter sido capaz de criar uma prostituta tão desejável que é capaz de despertar a cobiça de todos os homens.

Outra temática de cunho psicanalítico-social, também encontrada em “Bomba no cabaré”, é a apatia. “A apatia é a ausência da vontade e do amor, a declaração de que eles ‘não tem importância’, a suspensão do compromisso”. MAY (1969, p. 35).

Essa apatia fica expressa no final da letra de música quando o eu lírico enuncia: “Pode jogar uma bomba lá no cabaré, que eu junto os cacos das puta, pra fazer outra mulher!”. Ou seja, o descaso com a vida humana está já tão intrínseco na nossa sociedade, que se aproveitar de desgraças em beneficio próprio é algo que permeia o consciente e o inconsciente (tratando-se de um texto fictício, prepondera o inconsciente) da população.

Este trabalho procurou explorar a letra de música analisada sobre vários aspectos (social, psicanalítico, cultural, literário), extraindo de seu texto duas de suas relações intertextuais e confrontando-as com a realidade cultural e o momento histórico presentes.

Referências Bibliográfica

FARACO, C.A.; JEZZA, C; CASTRO, G. (orgs.). Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Ed. da UFPR, 2001.

FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as idéias lingüísticas do Círculo de Bakhtin. Curitiba, PR: Criar Edições, 2003.

FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.

BRAIT, Beth (org.) (2005). Bakhtin: conceitos chaves. São Paulo: Contexto.

KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Trad. Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 1974.

MAY, Rollo. Eros e repressão: amor e vontade. Trad. Áurea Brito Weissenberg. Rio de Janeiro: Editora vozes Ltda, 1969.

Caterine Araújo
Enviado por Caterine Araújo em 11/08/2009
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