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CRISE E CONSUMISMO EXAGERADO
«Está?! É a Sr.ª Maria Silva?» - perguntava com frequência uma voz mecânica, incumbida de uma missão diária desagradável, em troca de um ordenado ao fim do mês. Era uma voz insistente. Cansada de querer convencer. Esgotada de tantos argumentos, só para que o público aceitasse um sem número de ofertas maravilhosas, que aquela empresa teimava em proporcionar.
Com o tempo, a voz tornara-se num aborrecimento imediatamente constatado, dada a forma de tratamento utilizada. «Maria Silva» não era a identificação normalmente usada pela subscritora daquele número: esse era o nome registado na lista telefónica. Então, era um imediato inventar de desculpas, proferidas no tom mais cortante possível, porque a voz mecânica aumentava de decibéis e era bem capaz de entrar em curto-circuito, quando contrariada.
«Maria Silva» tinha ainda que dispor de muito tempo e paciência, em algumas das vezes que lhe batiam à porta. Com frequência, recusava produtos milagrosos, que podiam ser pagos em muitas prestações, para além de serem acompanhados de brindes e ofertas, cujo valor suplantava, em muito, a importância que dispenderia com a compra. Tinha ainda que falar baixo e ignorar as vizinhas que, de plantão nalguma varanda ou no interior de uma cúmplice janela, procuravam saber mais do seu quotidiano do que ela própria.
Era também Maria que, quase diariamente, esvaziava uma caixa de correio repleta de folhetos, ofertas por catálogo e propostas com promoções, apesar do autocolante visível onde manifestava o veemente desejo de não receber qualquer tipo de publicidade.
À noite, quando para descontrair ligava o televisor, verificava que os intervalos dos diferentes canais eram intermináveis e coincidentes no tempo, com uma precisão de fazer inveja aos melhores relógios suíços.
Quando as tarefas se prolongavam, «Maria Silva» espantava-se com o desespero tardio das apresentadoras que, em dois dos canais, não se cansavam de implorar: «Marque o nosso número, pague apenas 60 cêntimos mais IVA e ganhe 2000 euros!». E prosseguiam: «Oh! Não é essa a palavra! Gostava tanto de lhe dar o prémio mas... não desista, insista!». E com voz de quem pede esmola ou arruma viaturas, em contraste total com a maquilhagem e o penteado, continuavam em súplica: «Marque! Não me canso de repetir o número... Por favor, ligue!».
E Maria sentia agudizar-se um cansaço inexplicável, que não lhe parecia advir só das responsabilidades: era o seu espaço que se perdia, a insistência que sufocava, os cifrões que enganadoramente se apregoavam por múltiplas formas, esquecendo os valores, ultrapassando os direitos individuais, deixando-lhe uma sensação de vazio. Os Bancos acenavam infindáveis produtos financeiros, algumas Empresas impunham artigos inúteis, a Moda e as Marcas faziam com que tantos pobres de espírito se julgassem iluminados.
Num país tantos anos reprimido, onde a pobreza imperou, a nossa História recente revestiu-se de falsa ostentação e muitas aparências, com passos de gigante em pernas bem curtas, como os orçamentos!
«E que mal poderá fazer mais uma nova prestação ou um novo crédito?».
- Crise! - gritaram em uníssono os analistas, e em todas as línguas, que a Terra é, agora, uma aldeia global.
Muitas avenidas do consumo passaram, desde então, a desembocar em inesperados precipícios...
Tapar o Sol com a peneira torna-se cada vez mais difícil. Mesmo que a troco de muitos euros se vá para a televisão devassar a vida íntima e perder a réstia de dignidade a que alguns já desistiram de se agarrar. Tudo porque se julgou que a nossa importância poderia ser só avaliada pelos parâmetros do que tínhamos ou aparentávamos possuir. Agora, que a crise se instalou, muitos já não podem fazer crer ao Mundo que têm e, também, já não são!
ANTÓNIO CASTRO
Revista SABER
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