CONTINGÊNCIAS E MUDANÇAS (Opinião)
A alvorada engalanou-se para mais uma paleta de cores, para novos esvoaçares sonoros, para as contingências específicas de humidade e luz...
Assim acontece desde que o Homem pensa que o Mundo é Mundo, com fé ou com arrogância, em miséria ou em fartura, levanta-se e prepara-se para um novo dia de lazer ou de labuta.
Ao longo das nossas vidas, luares, estrelas e mágicos amanheceres emprestam-nos a importância de um espasmo ou de um sorriso, permitem-nos a descoberta mais íntima ou o segredo mais forte.
Ficamos assim convencidos: ao respirarmos com o Universo, ganhamos um pulmão comum com ele, que, embora não totalmente, julgamos dominar. E acreditamos tanto nisso que, mesmo sendo simples marionetas no circo da vida, parecemos felizes, senhores de certa autonomia e seres revestidos de alguma importância.
Bailarina natural, a Terra, através do seu esperado rodopio, preparou mais uma vez os seres, algures para o descanso e, aqui mais próximo, para um sopro de dia novo.
O espreguiçar, o duche contra-relógio, a chávena de café, o trânsito, o corre-corre, o pára-apita... Tudo a parecer imutável, intrínseco, tão normal como o almoço, tão azul como um céu de Verão, em que as nuvens se envergonham de ser tufos.
No entanto, as cores não são sempre as mesmas, nem o sol, que algum pintor iluminou para todos, brilha sempre de igual modo. Julgamos ter essa certeza mas apenas recortamos a ilusão, ou a penduramos ao peito, para nos sentirmos felizes com a nossa aparente segurança.
Como pancada surda, como sequência cadenciada no sino de uma igreja, impulsionadas por metálica alavanca, em segundos ou em outras ínfimas parcelas de tempo, o ar estremece por entre o silêncio, os suores frios borbulham e - num ápice - radicalmente a vida muda.
Da vidraça, a paisagem pode parecer intocável, lá fora, mas a nossa lareira interior mudou, inexoravelmente, de temperatura. Nada do que pensámos saber, querer, ter construído, assegurado, voltará a repetir a mesma trajectória...
Eras tu, por exemplo, o irmão que os meus anseios de búzios ouviam e que, sendo dez anos mais novo, já não voltarás a apresentar os fatos da tua elegância e o enigmatismo dos teus silêncios. Para lá da janela, ondas iguais e o mesmo mar, mas já sem ti, pois nunca mais te verei mergulhador por entre o sal dessa outra vida.
Os quotidianos prosseguem, como golfinhos alegres, porque há imponderáveis, paliativos, obrigações, a par de nuvens de poeira que inexplicavelmente se podem sempre desenhar, gerando acrobacias e transformando a confiança absoluta em imprevisíveis desertos. No entanto, importa viver, pois até nas areias os camelos caminham e os oásis se constroem.
"E tu, Pai, és o mesmo? Ou um palhaço incompetente se apoderou definitivamente do teu humor e do teu sorriso, foi para a pista e deixou-te sentado num camarim de dor e de silêncios magoados?!"...
Os dias seguem percursos e horas, alegrias e ilusões, e tudo parece já não vir a mudar de cor tão cedo, olhamos os jardins e voltamos às certezas de não existirem rosas negras, nem vivendas de gelo, nem profissões de papel.
"E tu definhas, meu pai. Acredita que procuro cumprir o dever que me ensinaste, para depois ter toda a areia da praia para te dar um abraço".
Finalmente volto e já não há luz nos teus olhos, mas ainda há muito fogo de artifício social, macabro, insensível, ainda exorcizado de cultos que se tornam imperativo de mudança.
Cremado, como desejas, procuro pedir a esse dia - para os demais tão rotineiro - apenas o tempo necessário para poder ver, nas tuas cinzas, ser plantada uma rosa, já que o meu próprio aroma esmorece...
Interiormente, inicio uma maratona imparável, numa coroação de cometas. E já não vejo a tua rosa, troco-a por um enfarte, choques eléctricos, transfusões e operação de alto risco.
Lá fora, crianças ensaiam os primeiros passos nos jardins e já correm, vacilantes, para um futuro que julgam ser sempre solarengo e colorido. Quando a chuva as molhar, quando a poeira resistir, tornar-se-ão melhores e mais fortes, porque sensibilidade e valores são precisos com urgência. E uma aprendizagem colectiva, sã, verdadeira, nobre, necessariamente credibilizada por uma prática coerente e genuína.
Eu também ainda não desisti: ainda guardo o número onde essa rosa, do teu pó, meu pai, se levantou. E espero recuperar-me, também para colher da existência esse outro e especial perfume, aprendendo - finalmente - o valor da Matemática que, ao longo da vida, para o mal e para o bem, nunca - até agora - me interessou.
ANTÓNIO CASTRO
Revista Saber
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