Algumas considerações sobre a relação Estado X Produção artística e Cultural

"DIRIGISMOS (???)"

(Carta que os jornais não publicaram)

Sou, a princípio, contrário a toda e qualquer cartilha, venha ela de um crítico, jornalista, padre, chefe de partido, ou ministério. E creio que a liberdade de expressão, de criação e pensamento devam ser direitos soberanos e inalienáveis de todos os seres humanos.

Mas, acho curioso que a “classe artística” (leia-se nicho de artistas famosos e com espaço na grande mídia), diante de outras medidas, no mínimo, polêmicas do atual governo, tais quais, a taxação dos inativos, a liberação dos transgênicos, etc. só tenha se manifestado agora, quando o sapato aperta o próprio pé...

Embora eu discorde, como já disse, do chamado “dirigismo”, pondero que quem se beneficia de recursos públicos deve compreender que, de alguma forma, contrai uma espécie de dívida com o contribuinte. E que o governo, representante, legitimado pelo voto, do povo que paga impostos (cada vez maiores, por sinal), tem o direito - e, de certa forma, até o dever - de cuidar para que esses recursos possam ser revertidos da melhor maneira possível para o país. Quais são os critérios? Isso é outro assunto.

É claro que eu não concordo com a cartilha ideológica, mas será que é assim tão diferente do que acontece com o recurso privado? Ou alguém acha que, digamos, a Sadia iria apoiar um filme que difundisse o vegetarianismo? Ou que a Shell investiria seus petrodólares para financiar um seminário sobre energia solar, se ela mesma não desenvolvesse um projeto nessa área? Enfim, não sejamos ingênuos, quem se vale de recursos alheios, já começou a abdicar, ao menos parcialmente, de sua autonomia.

Para nós, artistas sem fama, sem patrocínio, sem voz na mídia, que já nos acostumamos a viver à margem e a prescindir de recursos públicos ou privados, esse grito soa um tanto retardatário e unilateral.

Nós, que produzimos (quando conseguimos) com o suor de nossos corpos, e a limitada fonte de nossos orçamentos de mortais que somos; nós, a imensa maioria anônima, mas não necessariamente, menos qualificada, pagamos esse alto preço para mantermos nossa autonomia e não nos sentirmos estuprados por cerceamentos, cartilhas, ou (como preferem alguns) “dirigismos”, sejam eles de direita ou de esquerda, públicos ou privados, ideológicos ou mercantilistas.

Pois, quantos de nós não viram seus laboriosos projetos serem aprovados, após longa espera, nas demagógicas leis de incentivo, para em seguida serem recusados pelos patrocinadores, que preferem empregar seu dinheiro nos "medalhões" famosos e consagrados pela mídia, a arriscar uma proposta nova. Chamam a isso democracia cultural?

É claro que a cultura – e falo aqui, especificamente neste caso, da produção artística – apenas reproduz o padrão macrocósmico dominante: de um lado alguns poucos bem sucedidos, podendo produzir suas “obras de arte”; de outro, uma multidão de indigentes, atuando amadoristicamente, batendo de porta em porta, de pires na mão, à espera de que respinguem algumas migalhas de oportunidade, quase sempre sendo forçados a abrirem enormes concessões estéticas, quando não, ideológicas e éticas, para sobreviverem de sua profissão. Será isso democracia cultural??? Creio, sinceramente, que não.

E, por favor, não me venham falar em competência e qualidade, pois relacionar qualidade ao sucesso num país de xuxas, tchans e faustões chega a soar patético.

Enfim, o que pergunto é: se há muito vivemos essa situação de injustiça, e favorecimento de uma minoria em detrimento de muitos, por que só agora se alevantam as vozes? Por onde andavam essas personalidades que ora se manifestam? Receio que toda essa justa e bela insurreição idealista e libertária, com a qual, aliás, me identifico a priori, se confunda um pouco, nesse caso, com o desespero de quem, acostumado às benesses do sistema, teme perder, mesmo que em parte, o seu reinado. Espero que eu me engane...

Mas... esses senhores, no topo da pirâmide, o que fizeram pela democratização da cultura no país?

O que seria dos seus altos ideais artísticos, concretizados em onerosas e bem cuidadas produções, sem a presença do astro da novela das oito? O que seria de suas esfuziantes bilheterias sem as carinhas (sempre as mesmas) que invadem nossos lares, diariamente, através da emissora cuja rede apoiou o golpe de 64, e que, graças a uma bem urdida máquina de manipulação, soube instalar – e derrubar - o governo que quis, quando quis. Democracia cultural, isso...???

Enfim, não são só os “stalinismos” que devemos combater, mas também, as outras formas mais melífluas e não menos autoritárias de “dirigismos” e cerceamentos culturais, como a que temos experimentado nos últimos anos. Sim, pois, a exigência implícita da presença de nomes famosos, ou de astros da "telinha", que condiciona os patrocínios, não são, do mesmo modo, "contrapartidas" autoritárias e intervencionistas?

Ora, não sejamos simplistas. Este caso não tem solução. Ou, pelo menos, uma solução que agrade a todos. As relações entre poder (político ou econômico, estatal ou privado) e criação artística sempre foram, e penso que sempre serão, delicadas e complexas, insolúveis mesmo.

Se a arte é, por princípio, subversiva, iconoclasta, libertária, não cabendo em formatos e conceitos rígidos (apesar de alguns críticos insistirem no contrário), o poder, no entanto, se faz de substância bem mais pragmática...

Na verdade, se há uma saída para esse impasse (e eu gostaria de acreditar que há) ela talvez se inicie por um amplo debate abrangendo o máximo de setores da sociedade ligados à produção artística e cultural. Penso que de nada adianta chamar celebridades para o ministério. Que sabem eles dos artistas de rua, dos grupos de periferia, das pessoas que criam e lutam para sobreviver de sua arte no país inteiro?

Acho justa a reivindicação de mais verbas para a cultura. No entanto, pergunto: quem se beneficiará delas? Sempre os mesmos???

Pois, que gritemos: LIBERDADE!!! Sim, liberdade de expressão, de criação, de produção, sem amarras quaisquer que sejam!

Mas...

que essa liberdade...

seja para todos...

Antonio Sciamarelli

(Ator, Músico e Escritor)

Rio, Outubro de 2004

Antonio Sciamarelli
Enviado por Antonio Sciamarelli em 10/06/2006
Reeditado em 10/06/2006
Código do texto: T172967