Roberto Carlos: Os 50 anos de carreira de um ícone da música popular brasileira.
O Brasil, embora sendo uma República, adora títulos de nobreza. Existem reis e rainhas para tudo ou quase tudo. É o que ocorre na música popular. Francisco Alves foi considerado o “Rei da voz”, Luiz Gonzaga, o “Rei do baião”, Carmélia Alves, a “Rainha do baião”, Ademilde Fonseca, a “Rainha do chorinho”, , Luiz Vieira, o “Príncipe do baião”, Claudete Soares, a “Princesa do baião”, Marinês, a “Rainha do xaxado”, o tecladista Zezo, o “Príncipe dos teclados”, e Roberto Carlos, nos anos 1960, o “Rei da Juventude”.
Roberto Carlos, cuja carreira fonográfica iniciou-se em 1959 quando de suas primeiras gravações, ainda no antigo sistema de discos em 78 rotações por minuto, ostenta ainda hoje o título, agora, já passados tantos anos, resumido simplesmente a “O Rei”. Fazer 50 anos de carreira, na verdade um pouco mais, já que, desde pelo menos 1957, ele fazia apresentações em pequenos shows e programas de Rádio, já é em si um desafio que poucos lograram conseguir. E fazer 50 anos de carreira ainda ocupando amplos espaços na mídia sem perder a majestade é realmente uma façanha. Ainda mais se pensarmos no quanto a mídia cria e destrói ídolos numa voracidade mortal.
A coroação de Roberto Carlos como o “Rei da Juventude” se deu no bojo do sucesso do programa Jovem Guarda, apresentado por ele, Erasmo Carlos e Wanderléa na TV Record. A partir daí, sua carreira foi uma profusão de sucessos que se acumularam ao longo das décadas e não adianta aqueles que não apreciam sua arte dizerem que tudo foi fruto da época, de jogada de marketing ou mesmo de apoio da Rede Globo. Tudo isso certamente contribuiu, pois não há como entender a trajetória de qualquer artista dentro da cultura de massas, sem que se verifique todo o complexo jogo que envolve cada face da produção artística, desde a criação, até a divulgação e, logicamente, o consumo dessas obras, no caso dele, músicas gravadas em discos e posteriormente CDs, além de participação em shows e filmes nos quais, evidentemente, aparece cantando, pois muito embora sua imagem também se torne um produto a ser consumido, essa pouco representaria, se absolutamente, dissociada da música.
Mas aí é que mora o segredo do sucesso que ninguém sabe qual é, e que Roberto Carlos esbanja com tal naturalidade que encanta seus súditos que o elegeram jovens como ele, nas domingueiras de jovem guarda e que amadureceram cantando suas canções, acompanharam seus sucessos e passando a seus filhos e netos o gosto por sua música. Como manter o sucesso por tanto tempo seguido, mesmo tendo, ao longo desse tempo, sofrido ataques da crítica musical de boa parte da mídia? Sim, porque, se por um lado, foi a ele outorgado o título de “Rei”, não foram poucas as vozes que o criticaram ainda na época da jovem guarda, diminuindo seu talento de cantor e compositor ou, simplesmente, acusando-o de ser desde o representante de uma música alienígena no Brasil, no caso o rock, até o de alienar a juventude. Depois, quando o movimento da jovem guarda chegou ao fim e ele mudou seu estilo, assumindo o lado romântico de suas composições, tornando-se então um cantor romântico, novamente contra ele pedras foram atiradas. Ser chamado de repetitivo foi o mínimo que se ouviu.
Mas, o tempo passou e Roberto continuou firme no gosto popular. E aí está a chave do mistério de seu sucesso e de sua permanência. O gosto popular tem caminhos desconhecidos e sabe muito reconhecer seus verdadeiros ícones. Isso mesmo, ícone, porque Roberto Carlos, mas do que um ídolo é um ícone popular e da música brasileira. Seu canto, seu jeito de ser, sua maneira de expressar de forma derramada as emoções são genuinamente populares e cada homem ou mulher do povo, que batalha o dia a dia e supera as mais ferrenhas adversidades, se identifica na amorosidade de suas músicas.
Durante esse tempo, ele tem sido o grande intérprete da canção brasileira aquele que sem se deter num determinado gênero musical, já que não ficou marcado nem como cantor de samba, nem de bossa nova, nem mesmo de rock conforme foi em seu início de carreira, criou ele mesmo um estilo próprio de interpretação e embora se atendo à canção romântica mostrou inúmeras vezes a capacidade ímpar de interpretar qualquer música de tal maneira, que dificilmente uma composição gravada por ele consegue ter relevo se posteriormente regravada por outro intérprete. Assim sendo, interpretações suas das composições de Caetano Veloso, “Como dois e dois”, “Força estranha”, e “Muito romântico”, por exemplo, tornaram-se clássicos inigualáveis. E o mesmo aconteceu com outras interpretações suas para canções que viraram clássicos e que mostram sua inigualável capacidade interpretativa. E aqui podemos citar gravações suas para músicas como “Negro gato”, de Getúlio Cortes, “Ciúme de você”, de Luiz Ayrão, ou “E não vou deixar você tão só”, de Antônio Marcos, ainda no período da jovem guarda, ou então “Outra vez”, de Isolda, “O moço velho”, de Sylvio Cesar ou ainda o tango “El dia em que me quieras”, de Carlos Gardel e Alfredo Le Pera. Roberto Carlos trouxe definitivamente a modernidade no canto masculino brasileiro, e se outros cantores para isso também muito contribuíram, ele estabeleceu parâmetros definitivos. Sua voz tem o alcance certo e a colocação exata fazendo com que o canto enquanto emissão sonora, e a interpretação, enquanto leitura vocal de um texto poético musical se casem de forma perfeita.
É certo que ao falarmos de Roberto Carlos, o grande intérprete, não se pode separar o Roberto Carlos, grande compositor e nem tampouco esquecer seu parceiro de composições Erasmo Carlos que, juntamente com ele, ajudou a moldar, desde a época da jovem guarda, toda uma maneira nova de falar do amor e dos relacionamentos amorosos, introduzindo uma nova poética que superou o amor sofrido dos sambas canções e estabeleceu novos padrões para o romantismo musical. E isso, desde o tempo de “Quero que vá tudo pro inferno”, quando convida a namorada para aquecê-lo no inverno, ousadia grande naqueles idos de 1965. Ou então ao negar o casamento em “Não é papo pra mim”. Ousadia essa que se aprofundaria em 1968, quando, no LP “O inimitável”, na música “É meu, é meu, é meu” proclama sobre a amada a posse, sentimento comum em nossa sociedade patriarcal, introduzindo, porém, a pitada de humor e irreverência tão comum em suas composições, e quebrando o peso da declaração de posse, “Da sua cabeça até a ponta do dedão do pé/Tudo o que falei e o que eu não falei também/É meu, é meu, é meu”. Assim, mesclando romantismo e humor em inesperados trocadilhos seus versos iam apontando para o que faria no começo da década seguinte.
Se seu estilo nessa primeira fase, inaugurava uma nova maneira de falar de amor, este vai sofrendo mutações, até chegar ao momento de transição definitiva em sua carreira, quando, em 1971, lança um LP com músicas como “Detalhes” e “Amada amante”, composições que inauguraram uma nova fase na canção romântica brasileira, possibilitando abordagem mais explícita do tema amoroso, ultrapassando em muito, qualquer patamar platônico. “Detalhes tão pequenos de nós dois”, por sinal, um dos versos da música “Detalhes”, passou, inclusive, a fazer parte do vocabulário nacional. Da mesma forma, outras canções da dupla Roberto e Erasmo Carlos foram incorporadas ao repertório da canção romântica nacional, como foram os casos de “Café da manhã”, “Despedida”, ou então “A distância”, de versos como “E na distância morro todo dia sem você saber”, que, provavelmente, num futuro mais ou menos distante, poderão vir a ser citados como exemplos da poética popular nacional, assim como até hoje são citados os versos da ”Canção do exílio”.
É certo que sua obra poético musical possui outras facetas identificadoras do gosto popular, mas a romântica é certamente a principal, e nela podemos verificar o quanto suas canções comungam com a alma popular. Roberto Carlos, além de exímio compositor, é o grande intérprete dessa alma popular. Num brevíssimo apanhado, podemos verificar que suas canções vão de encontro aos sonhos do homem e da mulher comum, atarefados e atribulados na dura luta pela sobrevivência diária. É para eles que o “Rei” canta e alimenta em seu cantar os sonhos desse homem comum. É o que se pode ver, por exemplo, em canções como “Café da manhã”, que fala de momentos além da rotina, vividos por um casal em um hotel: “Pensando bem, amanhã eu nem vou trabalhar”, versos que vão direto ao âmago do desejo da classe trabalhadora, sujeita a trabalhos quase sempre alienantes e mal remunerados e que vive a sonhar com o “dia de não trabalhar”. Dá perfeitamente para imaginar esse trabalhador cantarolando essa canção e sonhando com tal dia, fácil no sonho e muito difícil na realidade.
Em 1972, Roberto Carlos gravou a balada “Rotina”, feita em parceria com Erasmo Carlos, e nela podemos verificar versos como “A mesma condução, a mesma hora”, e mais adiante “Estou chegando para mais um dia/De trabalho que começa/Enquanto lá em/casa ela desperta/Pra rotina do seu dia.” Toda a canção vai contrapondo a rotina do homem em seu trabalho esperando o momento supremo do retorno para a casa onde lhe espera a amada, que certamente também está envolta em sua própria rotina, mas que nos devaneios do poeta é uma rotina de espera da volta do amado. Esse devaneio, esse fantasiar da rotina novamente vai de encontro ao homem comum esmagado pela rotina certamente cruel de seu dia, mas que pode no devaneio da canção sonhar com situações que certamente não pode vivenciar, mas que nas canções do Rei ele pode encontrar o lenitivo para seguir adiante.
É interessante ainda notar que a mulher, que na mesma canção é descrita como aquela que “esconde tudo aquilo num vestido”, o que certamente se entendo como o corpo amado, o prazer, o desejo. Assim é o seu canto. Vai de encontro ao âmago popular cujo espírito foi tão bem retratado pelo compositor Gonzaguinha no verso “a galera só deseja ser feliz”. Talvez por isso, de modo geral, o amor cantado por Roberto Carlos em suas músicas é o amor mais de realização do que de sofrimento e quase nunca canta a separação e a desilusão apontando quase empre para a esperança e para novas possibilidades. Assim foi crescendo com seu público, saindo da fase adolescente e jovem para ingressar na fase adulta com casamnetos e filhos. Realidade essa retratada na canção “Quando as crianças saírem de férias”, quando então o casal, finalmente descansando das atribulações diárias poderia então “se amar um pouco mais”.
O amor cantado por ele sai assim da esteira do amor platônico ou não realizado para o patamar do amor vivido e desfrutado. Por isso ele inaugurou uma nova fase do amor plenamente relizado corporalmente e não apenas insinuado. E se isso já havia sido anunciado no final da década de 1960, será plenatmente cantando na década de 1970 em canções como “Os botões da blusa”, que ao se desabotoarem “iam pouco a pouco me deixando ver/no meio de tudo um pouco de você”, ou ainda nas maiss ousadas “Vavalgada” e “Concavo e convexo”.
Da mesma forma, o tratamento dispensado por ele à mulher é de absoluto respeito e admiração, parceira e amante, colocando-a num patamar especial que certamente contribui para uma adoração especial a ele devotada pelo público feminino.
Não são poucas as canções em que a mulher é colocada nesse patamar especial, como em “Amada amante” cujos versos dizem: “Nesse mundo desamente/Só você/Amada amante/Faz o mundo de nós dois”. Nesse sentido, Roberto retoma a herança dos românticos no culto à figura da mulher, tão presente nas cantigas medievais e nos versos de poetas românticos como Castro Alves e Álvares de Azevedo. Esse culto ele muito bem resumiu na composição “Amante à moda antiga” que diz: “Eu sou aquele amante apaixonado, que curte a fantasia dos romances/
E fica olhando o céu de madrugada sonhando abraçando a namorada/
Eu sou do tipo de certas coisas, que já não são comuns nos nossos dias”, e que conclui dizendo “Porque sou aquele amante à moda antiga, do tipo que ainda manda flores”.
Com tudo isso, cantando os sonhos populares, sua obra vai se perpetuando na memória afetiva brasileira. E essa perpetuação na memória popular, esse reconhecimento de sua majestade por parte do povo que canta e recanta suas canções é o reconhecimento maior que pode ter um artista popular, pois, seu modo de cantar e interpretar o amor e as relações amorosas é um modelo que se espraiou pelo país à fora, talvez de uma maneira que somente pode ser comparada com a penetração que o espírito do romantismo em seu sentido mais amplo teve na sensibilidade brasileira em especial na primeira metade do século XX.
Em resumo, Roberto Carlos não é evidentemente uma unanimidade nem poderia sê-lo, ninguém o foi e ninguém jamais o será, mas ele é certamente o grande ícone da música popular brasileira, aquele a quem uma multidão de fãs concorda que seja o “Rei”, o grande compositor e mais ainda o grande intérprete de nossas canções e das emoções populares.
Paulo Luna