Luc Ferry e a burca

Em entrevista à Folha de São de Paulo desta segunda feira (27.07.2009), o filósofo Luc Ferry, que foi Ministro da Educação da França (2002-2004), interpelado sobre o famoso caso da proibição do uso das burcas nas escolas francesas, se pronunciou reafirmado seu luminoso universalismo. Abaixo uma parte da entrevista com meus comentários na sequência.

FOLHA - O debate sobre a burca [véu muçulmano que cobre inteiramente o corpo da mulher] na França traz à tona a questão do relativismo cultural: impor um modo de pensar como sendo melhor que outro não contribui para acirrar o choque de civilizações previsto por Samuel Huntington?

FERRY - Muita gente atribui um monte de besteiras a Samuel Huntington sem ter lido seu livro ("O Choque das Civilizações e a Recomposição da Nova Ordem Mundial"), que na verdade é ótimo.[...] Mas é fato que existe, sim, um verdadeiro choque com o islã radical, e a burca, ao contrário de uma opinião comum totalmente errada, não tem nada de símbolo religioso. Ela não consta em lugar nenhum na lista das obrigações determinadas pela religião muçulmana às mulheres. A burca é um sinal de vínculo ao fundamentalismo. Ela significa que as mulheres não devem ter lugar na esfera pública e que elas devem ficar em casa. Se saírem, elas têm de se dissimular. Devemos aceitar essa concepção do lugar da mulher? Respondo tranquilamente não, cem vezes não. E eu não digo isso porque defendo uma tradição cultural ocidental, mas porque penso que as mulheres simplesmente fazem parte da humanidade. Nesse tema, o relativismo é sempre cúmplice dos totalitarismos.

Tendo a discordar de Luc Ferry. As alegações de que a burca não faz parte da “lista das obrigações determinadas pela religião muçulmana às mulheres” e de que ela é um “sinal de vínculo ao fundamentalismo” não servem como bons apoios para a proibição estatal do seu uso. Essa é minha posição em linhas gerais. E ela já é suficiente para discordar de Luc Ferry. Com efeito, as declarações dele sugerem a existência de razões para a proibição irrestrita das burcas (coisa pela qual alguns franceses lutam). O elemento complicador aqui é o fato da proibição ser aplicada ao domínio de escolas estatais. O Estado teria o direito de estabelecer regras sobre o uso de símbolos religiosos (sim, símbolos religiosos, pois mesmo sendo fundamentalista ainda é um fundamentalismo religioso) dentro das escolas visto que as escolas são suas, isto é, são instituições estatais de ensino. Isso parece evocar a ideia de contrapartidas. Ou seja, se crianças, jovens e seus pais são beneficiários de ação estatal, então seria cabível licitamente ao Estado cobrar obediência às regras para o gozo desse benefício representado por um ensino gratuito (pelo menos não diretamente pago, e pago indiretamente por um preço bem baixo, supondo que o número de cotizados seja bem maior que o numero de beneficiários).

Mas a se adotar essa linha de raciocínio, qual seria o limite para a ação do Estado (nas “suas” escolas)? O representante do Leviatã poderia dizer: quem não gostar que não matricule seus filhos nas escolas públicas. É claro que, rigorosamente, o princípio normativo libertário rejeita o ensino estatal. Mas, dada a existência do ensino estatal, o que um libertário poderia dizer sobre a proibição do uso das burcas? Acho que deveria fazer ecoar o brado retumbante apontando que é um abuso da coerção estatal. Razoável é tirar todos os crucifixos de salas de aula. Porém, o que um indivíduo quer colocar em seu corpo, eis um problema que pertence apenas ao indivíduo (no caso de crianças, a elas e a seus pais).

O interessante nessa conversa é esse tom universalista. Essa pose antirelativista. Ora, nossos juízos morais não devem ter a mesma extensão que nossos juízos políticos. Quer dizer, do fato de achar moralmente errado uma mulher ser humilhada não se segue que considere legítima uma lei que procure resolver essa imoralidade (algo parecido seria: o adultério é imoral, mas não cabe ao Estado entrar na parada). Tenho de admitir que há algo mal colocado no caso das burcas. Alguém poderia argumentar que a vítima da humilhação é coagida a padecer o confinamento imposto pela religião fundamentalista a que pertence. Mas se ela é coagida, ela precisa reclamar. Seria correto o Estado intervir mesmo sem reclamação? Não penso apenas na reclamação direta pela própria vítima, mas nas reclamações que poderiam vir de amigos e parentes. O Estado teria de agir como protetor dos humilhados e coagidos? Notem que uso o termo humilhação aqui no sentido que Luc Ferry sugere, isto é, da condição das mulheres serem obrigadas a usar a burca tendo em vista que o lugar estipulado pela religião a que pertencem não ser a esfera pública. Se elas fazem isso voluntariamente, não tem legitimidade a intervenção do Estado. O verdadeiro tolerante tolera a intolerância (no domínio político). O que o tolerante não deve tolerar é a violência e a fraude.

Antes me referi ao fato de que a existência do ensino público está dada. Alguém poderia protestar dizendo: “sim, está dada, mas a proibição do uso da burca também está dada. Por que lutar antes contra a proibição do uso de burcas e não contra o ensino público?” Aqui entra em cena algo que o bom senso político não tem dificuldades em assumir. Nem todas as lutas podem ser empreendidas ao mesmo tempo. Algumas até podem; elas podem correr paralelas, mas provavelmente com o empenho assimétrico de forças. Pois bem, lutar contra o ensino público é uma luta que não se resolverá (se é que algum dia se resolverá) a não ser em 5 ou 6 décadas (numa previsão otimista). Diferentemente é o caso das burcas. Nesse caso, é mais fácil que um número considerável de pessoas reconheçam procedência nas premissas que balizam a discussão sobre a legitimidade da sua proibição.

Ah, em tempo: que fique bem claro que, embora eu não seja um demissionário, sou evidentemente favorável à privatização da UEL.