O Chalom - Sermo XLVI
O CHALOM
Deixo para vocês a paz! Eu lhes dou a minha paz!
A paz que eu dou a vocês não é a paz que o mundo a dá.
(Jo 14,27)
Nos tempos atuais, de tanta agitação, violência e incerteza, cresce a demanda por uma reflexão sobre a paz, como construí-la, como recuperá-la e mesmo mantê-la. De fato, nunca se falou tanto em paz, mesmo assim nunca se praticou tantos atos que desvirtuam esse sentimento. O mundo fala em paz, mas enfermo de sentimentos e atitudes, carece de paz.
Na verdade, a paz nos dias de hoje é uma riqueza avidamente buscada e raramente atingida. Acho que não é atingida porque é buscada entre as coisas sofisticadas ou funcionais, e ela é simples. É pretendida pelos poderosos e ela é livre. Ambicionada pelos ricos, mas ela é gratuita.
Paz, no mundo moderno é uma das expressões que tiveram seu sentido mais deturpado e pervertido. Em nome dela quantas injustiças foram cometidas. Quanta violência já aconteceu; quantas lágrimas derramadas...
Por incrível que pareça, o termo paz vive cercado de um desconcertante paradoxo. O menino olha atônito, os veículos militares passarem cheios de artefatos bélicos e pergunta ao pai o por que de tudo aqui. Isto é – diz o pai, cheio de gravidade – para manter a paz. Isto é paz?
Outro homem chega a um aprazível sítio de lazer, disposto a passar um ótimo fim-de-semana com a família, junto da natureza, louco por desfrutar do convívio de outras pessoas, para gozar de alguns momentos de calma e paz. Entre os outros objetos, traz um enorme rádio a pilhas, que liga a todo volume, abafando os outros ruídos do campo. Isto é paz?
Depois de uma semana de greves, represálias e retaliações, patrões e empregados se reúnem em uma “missa de ação de graças” no pátio da fábrica. Lá pelas tantas, a um comando, e mecanicamente, todos trocam o “abraço da paz”. Isto é paz?
Zangada, a mulher começa a bater nos filhos. Aprendam, dizia ela, a não perturbar a minha paz. Ao invés de reconciliação, aquele casal fez uma breve trégua em suas hostilidades, por ocasião do Natal, e aproveitou para trocar presentes e mensagem de paz. Isto é paz?
Há tempos, na preparação das meditações para um encontro, eu fazia uma análise do termo hebraico Shalom tão em voga nos meios cristãos, especialmente nos movimentos eclesiais católicos. Para começo de conversa, cabe informar que eu prefiro usar Chalom, uma vez que no português não temos o “sh”. Transliterado, o verbete com š aparece como šalom, com o mesmo significado. Mas, dizia, não estava contente com as explicações dadas pelos dicionários e pelas obras de teologia, que em geral traduziam o termo apenas por “paz”. Meu coração me fazia intuir que por detrás do verbete seco havia uma riqueza maior a ser garimpada.
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Nessa busca, fui procurar um amigo, um rabino judeu, conhecido meu, que muito gentilmente me recebeu.
– Falar de Chalom é penetrar em algo muito importante, disse-me ele. Talvez seja um dos termos hebraicos mais carregados de sentido e força que temos em nossa língua. É certo que traduzir simplesmente por “paz” empobrece muito o sentido da palavra original. Como legítimo dom de Deus o Chalom é mais rico, um mistério quase incompreensível para a percepção humana.
Enquanto ele falava, calmamente, pegou um copo vazio e tomando uma jarra com água, foi colocando o líquido no copo muito devagar, deixando soar o borbulhar da água. O copo foi enchendo, e quanto mais chegava perto da borda, ele ia mais cuidadosamente derramando ainda água...
– Veja bem, não cabe mais nada. Nem uma gota de água neste copo. Se eu colocar mais, vai derramar, vai transbordar. É quando tudo está completo, é a plenitude. Está me entendendo?
Balancei a cabeça em sentido negativo, olhando para o copo cheio de tal modo que não coubesse mais nada.
– O Chalom é isso, meu irmão. É assim que deve iniciar nossa reflexão, a partir do máximo que pode caber. Quando eu desejo um Chalom a alguém, eu desejo todo o bem, tudo de bom, tanto bem que mais do que isso é impossível desejar. Trata-se de um sinal da quitação, quando não existe nada mais a pagar. É uma palavra hebraica que tem mais de quarenta significados. Estás entendendo?
– Sim, agora entendi o que é o Chalom!
– Não ainda, meu irmão. Para entender bem o sentido do Chalom é preciso receber o Chalom; é preciso ter o Chalom... Posso ver em você algumas dúvidas, perturbações, conflitos internos... Para você ter o Chalom é preciso que você tenha a harmonia interna, que você equilibre dentro de você as forças, que se sinta bem, que você esteja em harmonia consigo mesmo, que esteja em paz com os outros e equilíbrio com o universo.
– Agora entendi...
– Ainda não... Não se apresse! É cedo ainda para compreender. Você não está sozinho neste mundo. Você convive com pessoas. As pessoas são importantes na nossa vida. E devemos estar em relação de harmonia com elas. Harmonizar-se com as pessoas que estão perto de nós; harmonizar-se com as pessoas que amamos e queremos bem; harmonizar-se com as pessoas que não gostamos e que às vezes nos fazem mesmo o mal; harmonizar-se com as pessoas que estão longe; harmonizar-se com as pessoas que necessitam de paz, de ajuda, que vivem em dificuldades, que são excluídas, que passam fome, dor, solidão... Quando nos harmonizamos com as pessoas, então, sim, temos o Chalom.
– Entendi...
– Mais um pouco não se apresse! Não estamos sozinhos no mundo. Vivemos rodeados pelas criaturas de Deus. Você está sentindo a cadeira onde está sentado? Sente o chão onde firma os seus pés? Sente o ar que está respirando? Escute! Aposto que não está ouvindo a beleza do canto do passarinho, o cachorro que late, o grito da vida e da natureza, a suavidade do vento... Estar em harmonia com o Universo, a Criação, com as Criaturas, com a Vida... Isso é também ter o Chalom.
– Acho que agora estou entendendo...
– Tenha ainda um pouco mais de paciência, meu irmão. Você é uma criatura, não o Criador. Como um ser criado, você deve estar em harmonia constante com Deus. O Deus que te amou, e que pensou em ti no momento da Criação. Para ter o verdadeiro Chalom, você deve estar em sintonia e em plena harmonia com Deus, nosso Criador... Harmonize e vibre a sua vida com Ele, deixe obedientemente que Ele guie os teus passos. E então, terás o Chalom.
– Acho que nunca vou entender o que é o Chalom...
– Não! Agora você começou a entender o verdadeiro sentido desta expressão hebraica. Nenhuma palavra das línguas modernas pode traduzir toda a força e o conteúdo do Chalom da nossa língua mãe. Mas só quando conseguirmos harmonizar dentro de nós estas quatro dimensões (paciência, sintonia, harmonia e obediência na fé) é que poderemos dizer que temos o Chalom; só então é que poderemos desejar verdadeiramente um Chalom. Estar como um copo cheio onde não cabe mais nada; deixar o outro como um copo repleto de bênçãos.
Ele me abraçou e, olhando-me nos olhos, me desejou um Chalom do tamanho do mundo...
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Em nossos dias, nunca se falou tanto na necessidade de termos paz. Lamentavelmente, nunca se violou tanto a paz... Nos tratados, nas enciclopédias e nos ensinos acadêmicos, a palavra Chalom, é geralmente traduzida como paz. Ela significa um tipo de paz entre duas entidades (geralmente duas nações) ou a paz interior de um indíviduo. Também é utilizada como cumprimento dentro da comunidade judaica à semelhança do salaam árabe.
Em meu livro “A conquista da paz” (Ed. Paulus, 1986, 2ª. edição) eu disse que o grande inimigo, e ao mesmo tempo meta do ser humano, é um conjunto de coisas que, numa criação relativamente nova de palavras, dizemos ser a idolatria do egoísmo, onde o ter, o poder e o prazer seriam as vigas de sustentação de seu templo. Na verdade, ter, poder e prazer nâo são coisas novas.
Por elas o povo que marchava no deserto rumo à terra prometida sofreu castigos. Por elas muitos se perderam; por elas, até hoje, muita gente se corrompe, se vende e se degrada, justamente porque imagina com essas três coisas comprar a vida, possuir o mundo, desfrutar de títulos e bens materiais, fabricar a felicidade, conquistar a paz... Que grande engano...
A esse respeito Jesus lamentou:
Ah! se os homens soubessem de onde pode lhes vir a paz!
Antes disto, o profeta Isaías sentenciou:
A justiça produzirá a paz!
Olhando bem, podemos descobrir nas palavras do profeta qual a fonte da paz. Todas as crises que vemos no cotidiano são originárias de uma ponderável falta de paz. Os operários em greve prejudicam o processo produtivo do país, criam um clima de intranquilidade, de revolta e até de violência. Isto por quê?
Justamente porque, em um determinado momento, faltou-lhes a justiça. Nunca se poderá pensar na paz se esta não vier associada à justiça, à misericórdia e ao perdão. Vemos que, em nossa vida, quanto mais a gente se esforça por ser bom, por ser amigo e parceiro, por praticar a justiça e a equidade, a paz acontece, mesmo sem muito dinheiro, sem amigos influentes, sem falsas posições sociais e sem tapinhas nas costas.
A paz se torna uma conquista da sociedade – repito o que frisei em meu livro mencionado – na exata medida que esta sociedade é matriz e nutris da verdadeira justiça. Um filho saiu pelo mundo recebendo as lágrimas e os abraços do pai e da mãe. Como o “filho pródigo” seus projetos fracassaram e ele retornou à casa paterna, triste e envergonhado. O pai perguntou-lhe: “Por que nâo vendeste aquele diamante que na despedida coloquei em teu bolso?”. O rapaz nâo havia notado; passou fome e frio com uma valiosa jóia no bolso. Assim é a justiça. Apesar de tê-la conosco, nâo permitimos que esse parto aconteça, e ela fica lá dentro, como uma joia desaproveitada. E o mundo com sede de justiça... e a paz precisando da justiça para florir
Dentro do hebraico, a palavra Shalom é utilizada em diversas expressões, como Shalom Aleikhem (a paz sobre vocês) e Shabbat shalom, cumprimento comum usado no Shabat (sábado) sendo muito utilizado em Israel e na maioria das comunidades, como Mizrahi e Sefaradi.
Jesus Cristo, quando desejava a paz aos seus amigos, usava o Chalom como medida de todos os bens espirituais e materiais que a eles desejava: “Dou a vocês a minha paz!”. O ser humano, homem, mulher, idoso, criança, tornado instrumento de paz pela graça de Deus, pelo amor de Jesus e pela ação do Espírito Santo, cria em sua vida uma trilha positiva de amor e de virtudes positivas, que iluminam seu caminho e o de todos os seus irmãos, ensejando a justificação de suas faltas. A paz é um dom de Deus. A paz, portanto, nos aproxima de Deus e, nessa aproximação, inicia ou desenvolve nosso processo dinâmico de conversão ao projeto de Deus.
Etimologicamente, a palavra shalom, já que o hebraico é constituído basicamente de consoantes, deriva da raiz formada por três letras hebraicas, shin-lamedh-mem (SH.L.M), que nas línguas semíticas aparece com o sentido de ser completo, ser cheio ou ser pleno, aparecendo em diversos textos com o sentido de paz, salvação e prosperidade de indivíduos e nações.
Não se pode falar em Chalom sem mencionar Jerusalém, pois a composição de seu nome, Yé-uru-shalem quer dizer “a cidade da paz de Deus”. A cidade de Jerusalém é muito antiga. Descobertas arqueológicas dão conta da existência de um povoado cananeu desde o ano 3000 a.C. A verdade é que Jerusalém continuou cananéia até Davi (séc. X a.C.), quando este conquistou a cidade, escolheu-a como capital de seu reino, fazendo dela também o centro religioso, pela transladação da Arca da Aliança (cf. 2Sm 5).
Abaixo, o Chalom escrito em hebraico. Se o seu computador não tiver as fontes “Hebraico”, “Symbol” ou “Bwhebb” talvez não consiga reproduzir. A palavra é lida como chlom, da direita para a esquerda;

Jesus Cristo, o Czar Chalom, Príncipe da Paz, consolida nossa relação com o Pai, criando pela fé a justificação de nossos erros. Esta paz, capaz de criar tão poderoso vínculo com o Alto, nasce da vida, reta, da solidariedade, da preocupação com os males do outro, num total abandono nas mãos de Deus. Tudo isto nos confere vida, e vida em abundância, bem diferente dos instintos egoístas, cujas aspirações levam à desunião, ao conflito e à morte.
Nas equilibradas palavras de São Paulo temos o roteiro capaz de estabelecer o caminho correto de nossa vida cristã:
No que depender de vocês, vivam em paz uns com os outros!
Embora dom de Deus e obra do seu Espírito, a paz deve ser buscada, deve ser tenazmente perseguida como um bem de sumo valor, pois sua vivência cria laços indestrutíveis, com Deus e com os homens. Os incentivadores da paz serão chamados de filhos de Deus. Na homilia da “Missa dos Quilombos”, celebrada em Pernambuco, em 1982, um verdadeiro marco da espiritualidade latino-americana, Dom Helder Câmara pediu a Mari-ama (Maria, mãe de Jesus) que pedisse ao Filho para que acabasse, de uma vez por todas, a maldita fabricação de armas, enfatizando que ao mundo seria necessário aprender a fabricar a paz. Guerra, quase todo mundo sabe fazer; poucos se dispõem a serem artífices da paz...
As riquezas do mundo não compram paz, saúde, tranqüilidade e vida. A paz pode acontecer em nossas vidas, se andarmos na luz do amor, do perdão, da fraternidade e da justiça. Eu conheço uma família pobre que, embora sem cultura e sofrendo toda a sorte de ameaças e hostilidades, conseguiu fabricar para si uma paz que não a roubam ladrões e nem a cassam poderosos, pois é uma forte paz interior, nascida do coração, onde, aliás, se guardam as coisas mais caras e valiosas. Seu endereço? Nazaré! E não é passado. Se você desejar, eles o ensinam a viver aqui e agora a paz e a segurança de quem nada teme. Façamos de nossas vidas uma academia de paz...
Seja Shalom ou Chalom, é isto que desejo aos que me ouvem e aos que haverão de ler este texto espiritual: paz, muita paz!
Que o Deus da esperança encha vocês
de alegria e paz! (Rm 15,13).
Trecho da meditação realizada pelo autor na Comunidade Canção Nova, em abril de 2009. O autor é um Teólogo leigo, Biblista e Doutor em Teologia Moral.