A espiritualidade no conflito

A ESPIRITUALIDADE NO CONFLITO

Vivam em harmonia uns com os outros.

Não se deixem levar pela mania de grandeza,

mas se afeiçoem às coisas modestas (Rm 12,6).

As pessoas, em geral, têm dificuldade de compreender o sentido da palavra “espiritualidade”. E é justamente por causa desse equívoco que não conseguem desenvolver adequadamente um cristianismo eficaz, de acordo com seu estado de vida. Muitos a confundem com “espiritismo” ou “espiritualismo” e apontam para algum modo evasivo de vida espiritual, sem saber conceituar nem tampouco avaliar como se desdobra esse tipo de vivência. Por ser a espiritualidade uma forma muito rica de relação com Deus, ela aponta para um estilo de vida. De vida cristã.

Nesta reflexão vamos estudar a superveniência da espiritualidade nos conflitos que atingem os cristãos no mundo todo, especialmente nas regiões de contenda entre os lavradores e o latifúndio. Como envolve uma questão da moral cristã, vamos iluminar nosso trabalho com a carta de São Paulo aos romanos, um tratado espiritual que privilegia sobremodo a reflexão cristã à luz da Teologia Moral.

A ambigüidade da vida humana

O grande desafio da espiritualidade cristã é compatibilizar uma vida voltada para os apelos do Espírito na ambigüidade das limitações da vida material a que todos estão sujeitos. Não é possível a ninguém, alienar-se de sua vida material, social, profissional, familiar, política, etc. É justamente nessas circunstâncias de nossa existência que devemos nos encontrar com Deus, sem fugir do mundo, mas relacionando-nos com o Infinito conforme nosso estado de vida. Reside aí o desafio: viver uma vida cristã, espiritualizada e voltada para o alto, sem furtar-se à vida material e à dimensão sócio-fraterna inerente a esse tipo de vida.

Na oração de despedida Jesus reconhece essa ambigüidade e pede ao Pai que proteja seus amigos (cf. Jo 17,9). Na magnificência da misericórdia, Deus vem ao nosso encontro, ignorando nossas limitações, incapaz de nos rejeitar, reconhecendo em nós a continuidade de seu projeto na história. A esse respeito chega-nos a palavra inspirada do apóstolo:

É o que continua acontecendo até hoje: sobrou um resto, conforme a livre eleição da graça. E isso acontece pela graça, e não pelas obras: do contrário a graça já não seria graça (Rm 11, 5s).

A espiritualidade de cada estado de vida

É fundamental que se insista na necessidade que os cristãos têm, cada vez mais, de descobrirem eles próprios os caminhos de sua espiritualidade, de acordo com a forma de vida abraçada por cada um, sem que um queira viver em sua vida o tipo de espiritualidade do outro, ou simplesmente se omitindo. Deus quer que eu me envolva com ele, sem, no entanto, fechar os olhos à injustiça que sofre o irmão, o vizinho, o companheiro de caminhada. Essa opressão é uma tônica gritante fora do âmbito das grandes capitais do Sul-Sudeste. Em tudo ocorrem conflitos e desacertos. Na psicologia, vemos conflito, segundo as teorias behavioristas, como um “estado provocado pela coexistência de dois estímulos que disparam reações mutuamente excludentes”.

Simplificando, há quem defina, igualmente o conflito como “profunda falta de entendimento entre duas ou mais partes”. A vida humana e a existência dos cristãos não estão imune, ocorre no meio dos conflitos. O conflito possui diversos estágios, desde não-percebido, em potencial, latente e manifesto. Na antítese do conflito surgem a misericórdia e a temperança como forma de organizar a vida cristã, mesmo sob o fogo do conflito. A atitude cristã, como ensina São Paulo é a resposta à misericórdia de Deus. Ela abrange toda a existência concreta do homem. As propostas do mundo são variadas. Algumas delas são boas e outras conduzem ao conflito. Nessa conjuntura cabe a cada cristão oferecer a si mesmo como sacrifício vivo à vida e à justiça, sem se deixar contaminar pelo mal.

Não se amoldem às estruturas deste mundo, mas transformem-se pela renovação da mente, a fim de distinguir qual é a vontade de Deus: o que é bom, o que é agradável e ele, o que é perfeito (Rm 12, 2).

O sentido da vida

Por sentido de vida entende-se o ato de imprimir à existência um rumo que a valorize, que faça a todos felizes e transmita essa alegria aos demais. Esse sentido constrói os fundamentos de uma vida feliz e produtiva. Uma vida com sentido é algo que se elabora com o tempo, com esforço e dedicação. É preciso saber organizá-la para tirar dela o melhor que ela tem a oferecer. A busca de um sentido para nossa vida é árdua e laboriosa, mas possível.

É preciso que o ser humano se conheça. O homem tem três referenciais de encontro: com Deus (que eu te conheça... conforme Santo Agostinho), consigo (gnôti s’eautón = conhece a ti mesmo, de Sócrates) e com o outro, em suas necessidades (eu tive fome e me deste de comer...). O homem se realiza através desses três encontros. A vida com sentido começa por esse tipo de atitude. É por aí que começa a escolha de um bom caminho.

Ás questões usuais, como “Por que vivo?”, “Tem sentido a minha vida?”, têm respostas na necessidade de cada um encontrar o significado para a sua existência. Para a descoberta de um sentido, a vida precisa ser plena em seu sentido ontológico, devendo ser construída em três planos: a) físico – retrata o lado instintivo, onde só os apelos do corpo decidem e ordenam; b) sensível – enfoca o sentimentalismo: o indivíduo sonhador forma seu viver e agir em um campo de simpatias, gostos e paixões; d) sobrenatural – consciente de sua origem e destinação, o espírito torna-se livre para tomar as decisões mais importantes da vida.

O aspecto espiritual, o lado místico do ser humano é um importante aliado ao desenvolvimento do projeto da vida. Nosso projeto nunca terá sucesso se não colocarmos vida nele. A nossa vida. Não colhe quem não jogou primeiro o grão na terra. Assim ocorre com a nossa felicidade. Deus dá seus dons, como sementes férteis e valiosas, mas o ser humano precisa aprimorá-las, colocá-las na terra fértil e ter paciência para deixar crescer e frutificar.

Se de um lado a morte é o salário do pecado, de outro, o

dom gratuito de Deus é a vida eterna em Jesus Cristo

(Rm 6,23)

A radiografia dos conflitos

Por conflito, como vimos, se entende aquela profunda falta de entendimento entre duas ou mais partes. Como sinônimo de choque ou enfrentamento o conflito subentende um ato, estado ou efeito de grupos estabelecerem divergências que se manifestam acentuadamente ou de se oporem como interesses irreconciliáveis. No campo social, o conflito de caracteriza pela contestação recíproca entre dois grupos pelos mesmos valores, a que julgam ter direito, competência ou atribuição. O conflito, segundo a psicologia e a sociologia, pode ser não-percebido, latente ou manifesto.

Os conflitos por causa da terra

No meio das comunidades, especialmente no interior do país, e mais ainda no eixo norte-nordeste, ocorre a grilagem e o choque com os posseiros, contrastando com o coronelismo, a extração irregular de madeira e minérios, a falta de demarcação de terras indígenas, ameaças ao meio-ambiente, doenças e endemias tropicais, subemprego, violência (e não-raro mortes) contra sindicalistas, líderes comunitários e ministros da Igreja. Isto sem falar nos “reflorestamentos” de árvores que só produzem celulose, plantações de maconha, etc.

A isto se soma a falta de saneamento básico, um sistema educacional deficiente e famílias que se desestruturam por problemas sociais, econômicos e de migração compulsória. Há, por causa desses conflitos, uma perda de fé e de referenciais humanos. Mesmo à vista de todos esses problemas, geradores de inúmeros conflitos, não se pode esquecer do amor de Deus, que é quem nos sustenta.

Quem poderá nos separar do amor de Cristo? A tribulação, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada? Como diz a Escritura (cf. Sl 44,23) : “Por tua causa somos postos à morte o dia todo, somos considerados como ovelhas destinadas ao matadouro”. Mas, em todas essas coisas somos mais do que vencedores, por meio daquele que nos amou (Rm 8, 35ss).

Na Igreja urbana

Na “igreja urbana” os conflitos têm origem nas discordâncias pessoais ou de pequenos grupos, com certa “disputa de beleza” para saber quem sabe mais, quem pode mais, quem agrada mais à “chefia” ou quem trabalha melhor. Isso ocorre, em certos locais, nos “conselhos”, nos “movimentos” e nos “serviços” paroquiais e grupos de ministérios leigos, onde há muita luta pelo posto de coordenador, etc. O confronto também pode surgir em disputas entre leigos e religioso (a)s. Nessas comunidades o conflito pode ter sua gênese a partir de ideologias políticas, perfis religiosos, desejo de conquistar hegemonias ou motivado por algum tipo de divergência ou disparidade socioeconômica.

Se for possível, naquilo que depende de vocês, vivam em

paz com todos (Rm 12,8).

Na Igreja das periferias

Nas periferias o desafio de viver a fé é mais complexo, pois a par de um certo abandono espiritual, constata-se a escalada da violência e a marginalidade (tráfico de drogas, armas e pessoas), além dos problemas sociais como falta de saúde, habitação, escola e segurança. As autoridades parecem não se importar com a vida do povo das periferias, e isto redunda na formação de – em alguns casos – de uma “terra de ninguém”, onde impera a lei do mais forte, e onde ávida humana não tem o valor de sua dignidade. Enquanto as chamadas “seitas eletrônicas” crescem nessas áreas, como uma espiritualidade de evasão, milagreira e visando quase que exclusivamente a arrecadação de dízimos e ofertas, resultando numa ponderável ausência de obras, as Igrejas tradicionais, como a nossa, por conta da estrutura pesada das paróquias não consegue atingir essas regiões. A Igreja não vai onde o povo está. Esse distanciamento ajuda a fermentar o conflito social.

Ser Igreja na zona rural

No campo a atuação das Igrejas é mais tênue, pois inflete mais no trato espiritual e sacramentalista (batizados, casamentos e exéquias) deixando de prestar aquela assistência social ao camponês, que oprimido pela pobreza e pela inércia do Estado, fica a mercê da violência do latifúndio, dos grileiros e da desastrada política agrícola e fundiária dos governos, que só atentam para o bem-estar do produtor, do rico e das cooperativas. Na zona rural o conflito – como notei aqui no interior da Bahia – é mais percebido, eclodindo em violência, desapropriações de terras dos pequenos agricultores e desrespeito ao direito dos mais fracos. A resposta a esses desmandos gera conflito que acaba resultando em violência e morte. A atuação das “pastorais rurais” ainda não logrou aquela eficácia preconizada pelas “cartilhas” da CNBB. e Dioceses.

Palavra e fé

O cristão, mesmo sob o conflito, deve ser afável, amante da justiça e semeador da verdade. Tudo deve ter início, a partir da iluminação da fé, pela Palavra de Deus, numa formação bíblica e doutrinária adequada, assim como a descoberta de uma nítida consciência crítica, não jungida a outros modelos que não sejam os de vida cristã, adequados à vida concreta de cada pessoa, conforme sua missão no meio do mundo. A fé e o estudo da Palavra de Deus são ponderáveis pilares da espiritualidade dos cristãos. Hoje em dia o modelo social, político e econômico pretende impor certos padrões, como verdade incontestável, capazes de se tornar paradigma para todos. É a esse respeito que Paulo nos adverte:

Ninguém pode colocar outro alicerce diferente daquele que

já foi posto: Jesus Cristo (1Cor 3,11).

Sendo a espiritualidade a forma como nos relacionamos com Deus, é importante que deixemos de lado certo tipo de cristianismo desvinculado com a vida e o mundo, demasiadamente angelista, sem o compromisso com as transformações que o evangelho de Jesus não cansa de nos exortar.

A Palavra (de Deus) está perto de você, na sua boca e no seu coração. Isto é a palavra de fé que nós pregamos (Rm 10,8).

Ao profeta cabe denunciar

Toda a religião vivida de modo alienado torna-se alienante, para quem a pratica e para tantos quantos interajam com pessoas que assim atuam. Além disto, a vivência de uma espiritualidade incoerente é capaz de, pelo negativo do testemunho, desviar muitas pessoas do caminho reto, da amizade com Deus, da Igreja e do convívio com os irmãos. Os profetas davam alento ao povo sofredor por causa da coragem de seu testemunho e de suas denúncias. Ninguém melhor que eles soube sobreviver no meio do conflito. São Paulo denunciou os caminhos do pecado e da dissolução da sociedade sob o egoísmo do poder:

Vivamos honestamente, como em pleno dia: não em orgias

e bebedeiras, adultério e libertinagem, brigas e ciúmes. Mas

vistam-se do Senhor Jesus Cristo e não corram atrás dos

desejos dos instintos egoístas (Rm 13,13s).

Diferentes tipos de cultura

Para quem conhece o Brasil fica a constatação da existência de um conflito, entre o ser-cristão de muitos e a figura paulina do “espírito do mundo”. O conflito se instala, muitas vezes, dentro das Igrejas, com motivação político-ideológica, social e por causa da busca de poder, intentada por determinados grupos. Para quem, como eu, reside no Sul do país, onde se vive sob o foco de uma religião de corte nitidamente europeu, burocrática, sacramentalista, demasiadamente hierárquica, que forma uma “Igreja sentada”, estática, pouco missionária e, geralmente acomodada, muitas facetas do conflito passam despercebidas.

O poder que gera conflito

Em alguns lugares do Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil viver a fé é estar no meio do conflito, pois os obstáculos, como a natureza hostil, as pressões políticas, o descaso oficial e as ameaças dos poderes sociais contra as pessoas, especialmente pobres, humildes e sem voz, faz emergir a necessidade de um profetismo militante.

A convivência com os negros e os índios, cada um segregados à sua maneira, a sobrevivência sob o tacão da opressão, seja ela representada pelo patrão, pelo senhor dos engenhos ou do latifúndio, impõe a esses grupos de excluídos, certas necessidades de viver a fé, de relacionar-se com Deus,

Por conta desses problemas, o povo deve ir se organizando, fomentando um espírito crítico, sem apelar para a violência e sem a tentação de quebrar os paradigmas da paz e do perdão. A própria Justiça, que em tese deveria ser cega, dispensa a cada grupo um quinhão proporcional a sua representatividade social.

Dois tipos de erro

Querendo devolver olho-por-olho as injustiças sofridas, muitos abandonam a fé, por não saberem desenvolver uma “espiritualidade no conflito”. Muitos erram alienando-se dos problemas; outros por querer revidar as agressões. Em alguns lugares do Brasil, os crentes vivem uma espiritualidade cômoda, sem riscos; em outros, têm que desenvolvê-la no meio do conflito. Só com fé, espírito de oração, e desejo de concórdia é possível conviver com o conflito sem se deixar contaminar por seus efeitos negativos. Caso contrário estaríamos, ao invés de pacificadores, nos tornando incentivadores do conflito e da discórdia, gerando ódios e confrontos, que nos afastam totalmente da piedade cristã.

A vida humana, por causa do pecado que existe no mundo, nos impõe sofrimentos a partir dos tantos conflitos que são deflagrados no dia-a-dia. Uma espiritualidade discernida e orientada pela Palavra é capaz de nortear os rumos de quem insiste em ser cristão e viver sua fé no meio do conflito que, por exemplo, nas regiões mais ínvias, é permanente.

Vivam em harmonia uns com os outros.

Não se deixem levar pela mania de grandeza,

mas se afeiçoem às coisas modestas

A solução para entender o conflito está em refletir a Palavra de Deus e sua aplicação aos fatos do cotidiano. A forma de resolver as questões da violência indica a necessidade de o povo se organizar para defender, na justiça, os seus direitos. A espiritualidade no conflito indica a necessidade desse tipo de providências.

O autor é Teólogo leigo, Biblista e Doutor em Teologia Moral.

Excerto de uma pregação a padres, religiosos e líderes comunitários, levada a efeito pelo autor, na zona rural da Bahia (Santo André), no mês de novembro de 2007.