TEMPOS OBSCUROS

Os dois mil e quinhentos anos de reflexão e prática ética não conseguiram, até hoje, produzir consensos para a solução de todos os problemas e dilemas da vida humana concreta. Isto se tornou, mais uma vez, patente, meses atrás, com a interrupção da gravidez daquela menina de 9 anos, em Pernambuco. Para que este fato ocorresse conjugaram-se diversos males, originários de uma série de anomalias sociais: família pobre, desestruturada; pais ignorantes; criança sem a devida escolaridade; alimentação e atendimento de saúde deficientes; perversão sexual de um padrasto estuprador; abuso sexual de menores; vida em perigo; necessidade de aborto. Diante de tantas ausências de bem, a quem apelar? Nestes momentos de perplexidade devem entrar em ação o bom senso, a razão e a experiência humana pragmática e espiritual. Primeiramente, toda esta polêmica deveria ter sido resolvida no âmbito da justiça e da saúde, sem a exposição desta menor ao noticiário nacional e internacional. Mas o caso serviu de motivo para acirrar ânimos. Recordações escabrosas e periogosas do passado vieram à tona: Idade das trevas, inquisição, fogueiras, excomunhão, intolerância religiosa, holocausto, bênção de armas pela Igreja, separação entre Igreja e Estado, conflito entre Leis de Deus e Leis civis. Em tudo isto alteraram-se tradicionais obrigações funcionais: os religiosos, diante dos males do mundo, deveriam propor soluções a partir dos valores da misericórdia, do amor, da compaixão, da bondade, do perdão, da caridade, da solidariedade, da benevolência, da tolerância, da comunhão para com os que sofrem ou sofreram as consequências dos malefícios; os médicos, no que a eles se refere, se tornam responsáveis pela vida biológica e psíquica mais plena dos cidadãos; os políticos e juízes pelo reto ordenamento da convivência de todos com todos. Lamentavelmente, quem menos falou em amor, misericórdia e compaixão no caso desta criança, engravidada fora das leis de Deus e das leis civis, foram os religiosos. Mas, felizmente, estas virtudes motivaram falas e ações de outros profissionais.

Embora os males do mundo já tenham sido definidos por Santo Agostinho, há 1500 anos, como ausência de bem, os denominados males, mesmo sem consistência ontológica, causam consequências negativas na vida concreta. E entre estes males há os maiores e os menores. Desde sempre a ética ensinou e sancionou o princípio de que diante de males inevitáveis, muitas vezes, somos obrigados a optar por males menores. Por mais santo que o homem seja, não poucas vezes na vida é obrigado a praticar males menores.

Por mais que se discuta, eticamente o aborto é um mal. Mas, o caso do aborto induzido de gêmeos na menina pernambucana de 9 anos, e subdesenvolvida, foi um mal menor indispensável. Por isto, querer afligir os envolvidos, neste caso, com excomunhões e ameaças com um inferno incandescente, é demonstração de extrema insensibilidade espiritual. O cristianismo, justamente, entrou na civilização ocidental e a transformou por causa de sua misericórdia, sua solidariedade, seu amor e sua compreensão dos problemas humanos. É verdade, em certos momentos da história, muitos cristãos se afastaram dos ensinamentos de seu Mestre. Por exemplo, quando papas e bispos tinham a seu serviço exércitos, que participavam de guerras, e cujas armas a Igreja abençoava. Hoje, felizmente, a consciência cristã não tolera mais que as armas da morte sejam abençoadas, mesmo que alguns religiosos desvairados ainda o façam. Mas, ao menos, as autoridades supremas da Igreja católica já não abençoam mais armas de guerra. Mas o paradoxo acontece quando aqueles que criticam, com toda razão, a Igreja por ter abençoado armas, hoje a criticam por não abençoar os instrumentos do aborto. A Igreja jamais poderá fazer isto diante de políticas abortivas. O que não é o caso do Brasil, que apenas permite o aborto quando a lei permite um mal menor para sanar males maiores. Diante da obscuridade dos tempos atuais, é preciso bom senso, razão, valores humanitários, com sensibilidade espiritual, para que consigamos viver em paz e harmonia: religião e Estado, fé e razão, o ideal e o real.

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