ESCÁRNIO.

Posto aqui o artigo de Miguel Reale Jr., publicado hoje na "Folha de São Paulo". Bom proveito.

Escárnio

MIGUEL REALE JÚNIOR

EM ASSOMO de arrogância o presidente Lula, falando aos moradores de palafitas em Manaus, pediu aos seus adversários que aprendam a perder, a ser derrotados. Pediu, ainda, para aprenderem que a sabedoria do ser humano não está na quantidade de anos na escola, mas "na capacidade do sentimento, de sua consciência e de seu coração". Pediu mais: "Quero que coloquem CPI na televisão todo dia, que coloquem as torturas que eles fizeram com muita gente lá. Quero que o povo veja".

Lula, como Collor, pisoteou sobre o que nos resta de sentimento de dignidade, ferido pela lamentável prática do mensalão

O presidente conseguiu, contrariamente ao que diz, não traduzir o sentimento que perpassa pela maioria dos brasileiros, induzido em erro, como está, pela vantagem na intenção de votos revelada pelos institutos de pesquisa. Há uma indignação em estado de repouso diante da deslavada corrupção de seu governo, que pode aflorar a qualquer instante. Lula, como Collor, desafiou o senso de honestidade do povo, dos humildes aos ricos, e pisoteou sobre o que nos resta de sentimento de dignidade, ferido pela lamentável prática do mensalão, que comprometeu por inteiro o jogo democrático. Com arrogância própria da segurança filha da certeza da impunidade, o presidente desafiou: "Coloquem CPI na televisão todo dia, que coloquem as torturas que eles fizeram com muita gente lá". Os seus íntimos companheiros de governo, uma vez apontados por ele como traidores, mas elogiados ao saírem dos cargos mais elevados da República, e depois réus em ações criminais, agora se transmudam em vítimas de "tortura". Pela CPI dos Correios, desfilaram os fatos mais chocantes de uma corrupção que se transformou em forma do exercício do poder, visando a perpetuá-lo pela via da compra de consciências. A farsa presidencial foi contínua: ora afirmou que pretendia que se investigassem os fatos, ora, com a liberação de verbas para emendas parlamentares, buscou diretamente retirar assinaturas de deputados para impedir a continuidade da CPI dos Correios. Desafia agora a que se mostrem as cenas da CPI, na repetida tática da desqualificação de todas as circunstâncias desabonadoras, tentando empulhar as pessoas ao transformar uma investigação séria, base da denúncia do Ministério Público, em prática de tortura. Vale-se o presidente da artimanha de vitimizar os companheiros, corruptores e corruptos, seus ministros próximos e altos dirigentes do seu partido, que fizeram da democracia a arte de governar por meio da corrupção do Congresso. Só um conivente e beneficiário do sujo sistema implantado poderia agora, montado nas pesquisas de opinião, querer enganar a Nação, ao travestir os réus em vítimas de "tortura", com a ousadia própria dos impunes. Esquece-se o presidente que a impunidade será possivelmente breve. A população pode ser recordada, por exemplo, do testemunho da secretária Fernanda Karina Sommagio, que indicou ter havido inexplicáveis saques de valores elevados de agências do Banco Rural, transportados em carro forte para suítes de hotéis em Brasília, onde eram distribuídos para parlamentares ou seus assessores. Deve a população ser lembrada das revelações feitas na CPI acerca dos saques em agência de um banco em shopping de Brasília, freqüentada por assessores parlamentares às vésperas de votações de interesse do governo no Congresso. Cumpre recordar que a CPI mostrou ter Marcos Valério acompanhado diretores do BMG, dias depois de empréstimo fictício feito pelo banco ao PT, em reunião com então chefe do Casa Civil, José Dirceu, tendo o BMG se tornado o agente financeiro do crédito consignado aos aposentados. Os 17 milhões de aposentados receberam carta pessoal do presidente Lula sugerindo que se servissem desse crédito consignado, apenas operado pelo BMG. Deve-se rememorar a quebra do sigilo do caseiro Francenildo, a mando do poderoso ministro da Fazenda, acobertada por outros membros do governo, ocupando o ministro durante esses dias, no Palácio do Planalto, a sala vizinha à do presidente da Nação. Cumpre trazer à tona a cena dos governistas, inclusive o presidente, que para a imprensa apenas sorriam e diziam "esperem", logo após as revelações do caseiro, certos de que uma "novidade" comprometeria a grave acusação de Francenildo. Essas lembranças mostram que a impunidade, existente na Câmara ao absolver os deputados mensaleiros, pode, ao final, não ser festejada como foi no discurso de Manaus. A irresponsável dança das palavras presidenciais foi mais aviltante que a dança lúgubre da deputada Ângela Guadagnin: atingiu a inteligência e a hombridade dos brasileiros.

MIGUEL REALE JR. , 62, advogado, é professor titular da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Foi secretário da Segurança Pública (governo Montoro) e da Administração (governo Covas) do Estado de São Paulo e ministro da Justiça (governo Fernando Henrique).