MÉDICOS ESCRITORES

Sérgio Martins Pandolfo*

"Não fazem mal as musas aos doutores"

Antônio Ferreira, poeta e jurisconsulto luso quinhentista

Por que será que os médicos gostam tanto de escrever? Foi o que se perguntou, há mais de quatro décadas, o Dr. Eurico Branco Ribeiro, ilustre cirurgião paulista, entusiasmado com a profusão e a qualidade das obras literárias cometidas por médicos, assim em verso como em prosa. Por isso que tomou a iniciativa, então, de criar uma entidade onde esses profissionais bivalentes pudessem trocar idéias, conhecimentos, difundir e obter incentivo às suas produções. Assim nasceu a Sociedade Brasileira de Médicos Escritores – SOBRAMES, a 23 de abril de 1965, hoje presente em praticamente todas as unidades federativas da Nação.

Milton Hênio Gouveia, um sobramista alagoano que presidiu a Regional de Alagoas e foi, também, o 14º presidente da SOBRAMES Nacional, crê que essa veia literária peculiar aos esculápios se manifesta porque "os médicos, compartilhando a todo instante do sofrimento alheio, aliviando os que se desesperam com as dores cruciantes, tentando impedir a queda de vidas que se debruçam nos abismos da morte, vivendo entre gemidos e dores, sentem uma necessidade imperiosa de aliviar essas horas de tensão que nossa profissão provoca”. Buscaria o profissional, segundo ele, sublimar toda essa carga tensional, a inquietação das esperas e das vigílias, enveredando pelos caminhos, íngremes às vezes, do verso, da música, da prosa, da pintura e, acrescentaríamos, das manifestações diversas das artes plásticas. Faz sentido!

Pessoalmente julgamos que, sem ponta de dúvida, uma das motivações mais fortes, se não a máxima, dessa extrusão literária advém do alteado somatório de conhecimentos auferidos no decurso do labor profissional, quer pelo estudo continuado, diuturno, das ciências médicas e de conhecimentos afins que alicerçam e dão confiabilidade às suas ações, quer pela experiência recolhida no dia-a-dia de seu ministério assistencial no consultório, ouvindo confissões e revelações as mais diversificadas e surpreendentes, quantas vezes inimagináveis; à beira do leito hospitalar, examinando, ponderando, percutindo; manipulando vísceras e tecidos, vasos, nervos, sangue e outros humores, no recôndito das salas de cirurgias, quanta vez em condições de extrema adversidade. Tudo isso - é bom de ver! - redunda na imperiosa necessidade de repassar, de transmitir, de incutir nos que lhe seguirão (acadêmicos, médicos em treinamento) essa gama de novos conhecimentos e constatações, visando, preponderantemente, ao desenvolvimento e engrandecimento da Medicina, para que seja possível, cada vez mais e melhor, servir à Humanidade, proteger e melhorar a vida do cidadão, pois, como já o dissemos alhures, a arte de curar, aliada ao dom de escrever, propicia e viabiliza o dever de transmitir. Ademais, aquele que não passa para o papel o fruto de suas vivências profissionais, de seu saber específico, de sua erudição, de suas emoções, está fadado ao ostracismo, ao rápido e inexorável esquecimento.

A arte de escrever, assim na seara médica, como no terreno não-técnico, é uma só e, como todo humano engenho, pode ser aprimorada, burilada com a continuidade, com a repetição. O dom inato de cada indivíduo, é claro, também conta muito. A literatura técnico-científica e a escrita artística, em prosa e/ou verso, são veios de um mesmo filão cultural e, diríamos mais, conexas, interpenetráveis. Transitar de uma vertente à outra, eis tarefa que aos médicos, talvez mais que a qualquer outra categoria, atrai, encanta, seduz.

Parece ter sido assim desde sempre. Papiros dos mais remotos tempos relatam normas de conduta técnica e ética, prescritas por médicos para serem observadas por seus seguidores e até sugerem cominações para os que delas se desencaminhassem. Já Hipócrates, o mais ilustre médico da Antiguidade, o “pai da Medicina”, nascido circa 460 a.C. deixou perenizada para os pósteros em seu “Corpus Hipocratium”, encorpada coletânea de mais de uma centena de livros e tratados, toda sua doutrina e seus ensinamentos sobre a arte de curar, incluindo aforismos que até hoje persistem e fez ditar as regras deontológicas que norteiam a profissão, codificadas em seu Juramento, atual e vigente até os nossos dias. Caracterizou estigmas como o fácies hipocrática e apartou a Medicina do misticismo.

São Lucas, nosso patrono, foi médico e primoroso escritor, inscrevendo em seu evangelho, o terceiro , assim como nos Atos dos Apóstolos, páginas belíssimas, sob o aspecto da literatura universal, em que se percebe a erudição e o refinado trabalho com as letras, à leitura da Ave Maria, do Ângelus, do Magnificat, do Benedictus.

Cosme e Damião, médicos e os santos mais populares da Idade Média, possivelmente irmãos gêmeos, deixaram muitas de suas prescrições e observações escritas.

Todas essas reflexões nos acudiram aquando da eleição (31/10/2003), por unanimidade, para a Academia Brasileira de Letras, o mais alto silogeu literário nacional e um dos mais respeitados, mundialmente, do médico e escritor Moacyr Scliar. Gaúcho de Porto Alegre, o então novo imortal, 67, era médico sanitarista e Professor de Medicina Preventiva da UFRS e já houvera publicado nada menos que 65 livros, alguns deles traduzidos para até doze idiomas, o que se constitui em prova cabal e insofismável de que as duas atividades se entrelaçam e se completam.

São infindáveis os exemplos que poderíamos apontar em favor dessa assertiva. O português Antônio Lobo Antunes, vencedor do Prêmio Camões em 2007 e tido por muitos como o maior escritor lusitano após Eça de Queiroz, exerceu grande parte de sua atividade médica integrando as tropas lusas em Angola. Em passado recente proeminam, entre os exemplos notáveis de doublés de médicos ilustres e escritores famosos, Guimarães Rosa, que se notabilizou pelo ineditismo de uma criação vocabular e fraseológica sem similar em língua portuguesa, impregnada de forte configuração estética, entremeada na tessitura de “Grande Sertão: Veredas” (obra príncipe), “Sagarana”, “Corpo de Baile” e outras. Foi membro da Academia Brasileira de Letras. Osvaldo Cruz que, ademais de cientista consagrado mundialmente, por sua obra escrita mereceu e logrou entrar para a ABL. O grande Pedro Nava, Professor de Reumatologia na UFRJ, “o maior de todos os memorialistas brasileiros”, no dizer de Carlos Drummond de Andrade, legou-nos jóias literárias do quilate de “Baú de Ossos”, “O Círio Perfeito” e “Galo das Trevas”. Nava pertenceu à Academia Nacional de Medicina e foi, também, para orgulho nosso, membro da SOBRAMES-RJ. Mário Kröef, gigante na luta contra o câncer, para além de seus escritos e livros de cirurgia publicou “Imagens do meu Rio Grande”. Juscelino Kubitschek, a par de seu trabalho ciclópico como médico militar, cirurgião de escol e mais tarde Presidente da República, um dos maiores, se não o maior que este País já teve, deixou-nos, dentre outros muitos escritos, nada menos do que cinco volumes de suas memórias e pertenceu à Academia Mineira de Letras.

Da plêiade paraense bastaria por citar Clovis Meira, refinado cirurgião que, sobre atuar no jornalismo, como articulista assíduo, tem obra editada das mais respeitáveis e encorpadas, sobressaindo, talvez, “Introdução à Literatura Paraense”, em parceria com José Ildone e Acyr Castro, integrantes, os três, da Academia Paraense de Letras.

Nos dias correntes grandes nomes cintilam no universo médico-literário e poderíamos repertoriar, como bons exemplos: Dráuzio Varela, oncologista de primeira plana, que pontifica por sua didática e aptidão para destrinçar assuntos médicos de intrincada aparência, em programas televisivos da Rede Globo, e deu a lume, não há muito, “Estação Carandiru”, abordando as mazelas do malsinado presídio paulista, de triste memória.

Ivo Pitangui, o médico mais conhecido dos brasileiros por suas habilidades com o bisturi na correção das deformidades e defeitos corporais, cirurgião plástico de notoriedade internacional é, também, renomado escritor e membro da ABL. Da vastidão literária de sua obra consta “Aprendendo com a Vida”. Jorge de Rezende pontificou décadas na Obstetrícia brasileira e mundial como Mestre consumado e sua decantada habilidade e refinamento com as letras são de todos sabidos. Integrou a Academia Nacional de Medicina.

Como de sobejo ficou visto, o manuseio magistral do bisturi, do estetoscópio ou de instrumentos e/ou equipamentos de refinada tecnologia, com vários fins, não são incompatíveis com o ato de bem escrever e transmitir, em benefício da prática médica e da excelência literária.

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(*) Médico e Escritor. ABRAMES/SOBRAMES

E-mail: serpan@amazon.com.br

Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 10/07/2009
Reeditado em 11/07/2009
Código do texto: T1693274
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