Separações e outros bichos-de-pé
 
Separações foi a mesa 2 da Flip, para a qual, eu nem tinha pegado ingressos antecipados, pois, embora reconheça o trabalho de Rodrigo Lacerda autor de entre outros: O fazedor de velhos e Domingos de Oliveira, dramaturgo e cineasta, que fez o lindo filme: Separações — presumi que este é um tema velho e conhecido meu, quer por vida quer por escrita lida ou composta.
Mas não é que mais uma vez eu estava errada? Quantas vezes a presunção me atacar, quantas vezes a ciência do quão ignorante sou revidará. A mesa tinha afeto, o Rodrigo e o Domingos provocam isto e então, me afetaram. Aqui sou bicho-de-pé, para quem não sabe é um inseto, cuja fêmea fecundada entra na pele do homem e a inflama — assim me sinto, fêmea fecunda pronta para inflamar.

Rodrigo falou sobre a importância de se extrair um significado profundo dos acontecimentos banais, enxergar a tragédia latente no comum, sob pena de virar prisioneiro da própria mediocridade. Ele observou que em 99% da vida somos acometidos de coisas banais, ir ao banco, almoçar, tomar banho, e sem ressignificar estes acontecimentos, a vida torna-se insuportável. Enquanto ele falava isso, me lembrei de uma mulher em entrevista num jornal (minha memória está péssima, sei que é rica, talvez socialite mas me foge o nome), a mulher falava que só em cotidiano de novelas existem as palavras: esposa, deslumbrante e mordomo; na vida real é: mulher, gostosa e copeiro.

Domingos já entrou rebatendo: não há banalidade no mundo, a banalidade é só aparente, todas as pessoas são um turbilhão incompreensível, com um comportamento social escondido, nada banal. Segundo ele, a missão do escritor é enxergar isso mais de perto ou mais de longe, e disse que os acontecimentos do livro do Rodrigo (Outra vida) são absolutamente excepcionais, nunca acontecidos antes. Uma história de amor você vê cem vezes no cinema, você vê mil, e continua gostando se for boa, volta com mais vida para casa. Domingos citou que alguém disse que não se precisa conhecer a vida para conhecer a arte, mas através da arte se conhece a vida. Mesmo alguém que por ventura nunca amou, ou não sabe o que é o amor, pois o amor é uma grande confusão, uma coisa extremamente complexa, ao ver na arte uma história de amor, sabe o que é este sentimento. A função do artista é esta, segundo ele, explicar a vida numa linguagem muito superior a outras linguagens.

Ele contou algo que acontece com ele, comigo e que na manhã seguinte soube, que com o Marcelino Freire também, sobre quando se ouve uma frase, se vê uma cena, e aquilo martela, martela, martela na cabeça e quer sair, precisa ser dito para mais alguém, algo que seria bacana, útil se partilhado com outros, e o artista não descansa enquanto não cria uma expressão para aquela situação, a ideia que o persegue.
Quando criamos a nossa arte queremos ser compreendidos, a ideia tem que ser clara, Domingos disse perseguir esta clareza: clareza é a cortesia do filósofo, ele disse. Sob este aspecto ainda estou confusa, o escritor angolano Ondjaki, entre tantas coisas na mesa literária com o Marcelino sobre o acordo ortográfico, disse que lê e relê Clarice Lispector e gosta embora não entenda nada e que acredita que deva mesmo ser assim: é bom ter certas coisas que nunca serão entendidas. 
 
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Em minha missão de trabalhar com a arte, deparei-me com a análise que prometi fazer de um texto sobre separações, de um autor iniciante, que começava assim: “Os relacionamentos amorosos atuais não comportam mais o sentimento de posse sobre o parceiro ou parceira” — concluí que o mesmo deveria ser mais bem trabalhado, algum dia o relacionamento amoroso a isso comportou? Se sim, em que bases? Não acredito que possamos afirmar que hoje em dia não comporta, pois o comportamento das pessoas nas relações depende muito da sua faixa etária, do passado que carrega, classe social, se vive no urbano ou no rural, as verdades são praticamente uma para cada gente.
Depois vinha: “Estar com alguém hoje é a única garantia que se tem de se estar com alguém, amanhã não se pode garantir mais nada.” — Essa sempre foi a condição da vida, o amanhã só a Deus pertence...
No meu texto: “A responsabilidade da cultura alternativa” eu cito uma análise sobre um escrito da Lya Luft e falo como hoje em dia, pelo menos para mim, é confusa esta ideia de divórcio como solução de conflitos.
Longe de se esgotar novas possibilidades, algumas observações eu fiz ou vivi sobre as separações: é mais prático criar filhos com o cônjuge com quem você os teve, em minha opinião grande parcela da população brasileira ainda não sabe separar-se e manter uma responsabilidade pátria com as crianças e muito dos maus comportamentos ou falta de educação de crianças e jovens é pela ausência dos pais.
Por que estes estão ausentes?
Parte, porque na vida adulta, madura, além de todas as responsabilidades que têm com o sustento, a preparação de uma segurança para a velhice, ainda estão sós, à procura de companhia, ou a algo que lhes preencha um vazio que um companheiro não deixaria existir. Os que como eu assumem toda a carga sozinho de educar o melhor que puder os filhos, acabam sendo pessoas altamente responsáveis, mas tão autosuficientes que só a solidão é quem suporta a convivência. Há uma linha muito tênue que separa o comportamento das pessoas que valorizam a individualidade do das pessoas egoístas, tênue mesmo, como saber de que lado se está?
Aliás, como tudo na vida, não há o mal ou o bem, apenas se não houver o equilíbrio, um dos dois existe.
Li naquele texto que analisava, certa crítica à base religiosa para a celebração de casamentos... Poxa vida, seria injusto que em nenhuma fase da vida tivéssemos essa inocência de acreditar no amor eterno abençoado por Deus. Quem se predispõe a isto, está apaixonado e naquele momento é a realidade que lhe parece, eu creio que isso é uma dádiva, um presente, pois geralmente nos leva quase aos céus, esta embriagues. Se depois o amor acabar, passado as máximas da separação, o momento em que se esteve apaixonado vira uma sublime lembrança. Hoje em dia, não somos mais ingênuos a ponto de acreditar que aquela inocência será eterna, mesmo assim, eu não abriria mão dela, sob pena de não poder mais sonhar.
Os relacionamentos longos duram e existem apenas por uma condição: a decisão — eu decido amar aquela pessoa, todos os dias, sob todas as mudanças e dificuldades, quando a relação é longa, significa que eu escolhi aquela pessoa em cada um dos dias da vida e ela também me escolheu. No meu texto "Eu te amo e ponto final" trato da decisão de amar.
Conheço casais que estão há muito juntos, passaram por várias fases, inclusive traição, desejo por outros (alguns resolveram essa questão através do suingue), e o motivo de não trocarem de parceiro é por quererem superar as dificuldades estando lado a lado. Há outros que mal se unem e se separam, provavelmente não tinham noção no que estavam se metendo.

Acho o amor um tema bacana que nunca se esgotará, como nenhum outro sentimento nos afeta ao bem, ao mal, às emoções. Eu acredito, e o Domingos de Oliveira me confirmou, uma obra de arte quer seja pintada, encenada ou escrita só valerá à pena se causar emoção. Por isso replico abaixo a homenagem que o Rodrigo Lacerda generosamente fez ao Domingos lendo o texto O homem lúcido.

O homem lúcido sabe que a vida é uma carga tamanha de acontecimentos e emoções que nunca se entusiasma com ela, assim como não teme a morte.
O homem lúcido sabe que viver e morrer são o mesmo em matéria de valor, posto que a Vida contém tantos sofrimentos que a sua cessação não pode ser considerada um mal.
O homem lúcido sabe que é o equilibrista na corda bamba da existência. Sabe que, por opção ou acidente, é possível cair no abismo, a qualquer momento, interrompendo a sessão do circo.
Pode também o homem lúcido optar pela Vida. Aí então, ele esgotará todas as suas possibilidades. Passeará por seu campo aberto e por suas vielas floridas. Saberá ver a beleza em tudo. Terá amantes, amigos, ideais. Urdirá planos e os realizará. Resistirá aos infortúnios e até às doenças. E, se atingido por algum desses emissários, saberá suportá-los com coragem e mansidão.
Morrerá o homem lúcido de causas naturais e em idade avançada, cercado por filhos e netos que seguirão sua magnífica aventura. Pairará então, sobre sua memória uma aura de bondade. Dir-se-á: aquele amou muito e fez bem às pessoas.
A justa lei máxima da natureza obriga que a quantidade de acontecimentos maus na vida de um homem iguale-se sempre à quantidade de acontecimentos favoráveis. O homem lúcido que optou pela Vida, com o consentimento dos Deuses, tem o poder magno de alterar esta lei. Na sua vida, os acontecimentos favoráveis estarão sempre em maioria.
Esta é uma cortesia que a Natureza faz com os homens lúcidos.

Texto Caldaico(*) do VI século a.C., belamente encenado no filme: Separações de Domingos de Oliveira.

Obrigado, vida, obrigado, Deus, tive tempo para viver aqueles dias de FLIP, conhecer esses homens e hoje me pôr a escrever na busca da lucidez.
Eliana de Freitas
Enviado por Eliana de Freitas em 10/07/2009
Reeditado em 14/07/2009
Código do texto: T1691749
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