A concupiscência SERMO XLIII

A CONCUPISCÊNCIA

O mundo passa com as suas concupiscências,

mas quem cumpre a vontade de Deus permanece eternamente

(1Jo 2,17).

A expressão concupiscência vista pelo stricto sensu aponta para alguma forma de desejo. Figuradamente aparece como cobiça de bens materiais e anelos de prazeres sensuais. No agostinismo, surge como luxúria carnal, desejo libidinoso e coisas semelhantes. Já no tomismo medieval, a palavra concupiscência indica o desejo de um prazer gerado por uma realidade física, material, que pode ser pecaminosa ou não. Tanto assim que na teologia pura ela é definida como:

a) uma aspiração humana de bens naturais ou sobrenaturais;

b) o movimento de amor em direção a Deus e aos homens;

c) num sentido pejorativo, a cobiça natural do homem pelos

bens terrenos, conseqüência do pecado original e que

produz desordem dos sentidos e da razão.

Mesmo assim, nos dias de hoje, na maioria dos textos da produção teológico-literária, a palavra concupiscência é vista como uma das coisas negativas do mundo. O Novo Testamento fala em concupiscência:

Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não vem do Pai, mas sim do mundo. Ora, o mundo passa, e a sua concupiscência; mas aquele que faz a vontade de Deus, permanece para sempre (1Jo 2,16s).

Assim, penetrando no latu sensu do verbete, chega-se a um sentido mais amplo, a concupiscência é entendida como um pecado grave e que pode conduzir a outros pecados. Há, no entanto, alguns teólogos que afirmam que a concupiscência em seu estágio inicial não é um pecado, mas uma tendência à prática do mal.

Eu, porém, digo a vocês que todo aquele que olhar para uma

mulher para cobiçá-la, já em seu coração cometeu adultério

com ela (Mt 5,28).

Nessa perspectiva, as Escrituras estão cheias de advertências que indicam que o homem concupiscente, no sentido de quem se dedica às “obras da carne” pagará pelas conseqüências desses atos.

Porque o preceito é uma lâmpada, a instrução é uma luz e

a repreensão que corrige é caminho de vida. Eles

protegerão você da mulher má e da língua suave da

estrangeira. Que seu coração não cobice a beleza dela,

nem se deixe prender por seus olhares. A prostituta

procura um pedaço de pão, mas a mulher casada vai à

caça de uma vida. Pode alguém carregar fogo no peito sem

queimar a própria roupa? Pode alguém caminhar em cima de

brasas e não queimar os próprios pés? O mesmo acontece

com aquele que procura a mulher do próximo: quem a toca,

não ficará sem castigo (Pv 6, 23-29).

Vista a concupiscência como um sinônimo de pecado dos sentidos, a graça de Deus dá-nos o poder e a ajuda espiritual para dizermos não a essa tendência desordenada.

Porque a graça de Deus se manifestou, trazendo salvação

a todos os homens, ensinando-nos, para que, renunciando

à impiedade e às paixões mundanas, vivamos no presente

mundo, sóbria, justa e piamente (Tt 2,11s).

Objetivamente, o que é concupiscência? É desejo carnal incontrolável. Diz respeito não apenas aos apetites sexuais, mas a bens e gozos materiais. É o desejo, sem domínio, de saciar a qualquer custo a vontade do corpo, da carne.

A concupiscência dos olhos indica o desejo de ver ou presenciar cenas de violência, tumultos, pornografias, filmes eróticos, obscenidades, etc. A concupiscência dos ouvidos é desejo de ouvir piadas imorais, ouvir músicas profanas, de dar ouvidos a boatos que agridem a privacidade e a moral das pessoas.

O mundo passa com as suas concupiscências,

mas quem cumpre a vontade de Deus,

esse permanece eternamente

A concupiscência dos lábios indica o desejo de dizer palavras imorais, chulas, indecentes (“palavrões”). Trata-se do desejo de comentar e conversar sobre a intimidade das pessoas, das famílias, das autoridades. Concupiscência do estômago é o apego excessivo às boas iguarias, ao bom prato, ou a determinada espécie de comida. O glutão peca por esse tipo de concupiscência (cf. Gl 5,16-21). Concupiscência, nesse aspecto, torna-se sinônimo de avidez, cobiça e ganância.

Não amem o mundo, nem o que há no mundo. Se

alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele. Pois tudo

o que há no mundo, a concupiscência da carne, a

concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não é do Pai,

mas do mundo (1Jo 2,15s).

Concupiscência, essa palavra curiosa, cujo sentido às vezes é desconhecido de muitos, aparece em várias passagens da Bíblia (Antigo e Novo Testamento) sempre apontando para o sentido de um desejo eivado de pecado, ambição e ruptura com a lei de Deus. Para ajudar a nossa reflexão, vamos transcrever abaixo algumas citações bíblicas sobre o tema:

Entregaram-se à concupiscência no deserto, e tentaram a

Deus na solidão (Sl 105,14).

Mas, havendo ambos retrocedido, encontraram-se novamente no mesmo lugar. Perguntando um ao outro qual o motivo de sua volta, confessaram-se sua concupiscência. Combinaram então um encontro onde a pudessem surpreender sozinha (Dn 13,14, no episódio da “casta Susana”).

Afastaram o homem. Daniel mandou vir o outro e disse-lhe:

Filho de Canaã! Tu não és judeu: foi a beleza que te

seduziu, e a concupiscência que te perverteu (Dn 13,56).

Que diremos, então? Que a lei é pecado? De modo algum.

Mas eu não conheci o pecado senão pela lei. Porque não

teria idéia da concupiscência, se a lei não dissesse: Não

cobiçarás (Rm 7,7; cf. Ex 20,17).

Foi o pecado, portanto, que, aproveitando-se da ocasião que

lhe foi dada pelo preceito, excitou em mim todas as

concupiscências; porque, sem a lei, o pecado estava morto

(Rm 7,8).

Pois os que são de Jesus Cristo crucificaram a carne, com as

paixões e concupiscências (Gl 5,24).

Também todos nós éramos deste número quando outrora

vivíamos nos desejos carnais, fazendo a vontade da carne e

da concupiscência. Éramos como os outros, por natureza,

verdadeiros objetos da divina ira (Ef 2,3).

Renunciem à vida passada, despojem-se do homem velho,

corrompido pelas concupiscências enganadoras (Ef 4,22).

Cada um é tentado pela sua própria concupiscência, que o atrai

e alicia (Tg 1,14).

A concupiscência, depois de conceber, dá à luz o pecado; e o

pecado, uma vez consumado, gera a morte (Tg 1,15).

Baste a vocês que no tempo passado tenham vivido segundo os

caprichos dos pagãos, em luxúrias, concupiscências,

embriaguez, orgias, bebedeiras e criminosas idolatrias (1Pd 4,3).

Por elas, temos entrado na posse das maiores e mais preciosas

promessas, a fim de se tornarem este meio participante da

natureza divina, subtraindo-se à corrupção que a concupiscência

gerou no mundo (2Pd 1,4).

Saibam antes de tudo o seguinte: nos últimos tempos virão

escarnecedores cheios de zombaria, que viverão segundo as

suas próprias concupiscências (2Pd 3,3).

Porque tudo o que há no mundo – a concupiscência da carne, a

concupiscência dos olhos e a soberba da vida – não procede do

Pai, mas do mundo (1Jo 2,16).

O mundo passa com as suas concupiscências, mas quem cumpre

a vontade de Deus permanece eternamente (1Jo 2,17).

Todo o corpo doutrinário da Igreja, por séculos afora não cansou de combater todas as formas de pecado, especialmente as que têm sua gênese a partir da concupiscência e da sensualidade. Nós somos tentados naquilo que somos mais fracos. Igualmente o Catecismo da Igreja Católica é pródigo em referências e advertências a respeito da concupiscência da carne e de seus efeitos danosos à vida, material e espiritual dos cristãos.

João distingue três espécies de cobiça ou concupiscência: a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida. Conforme a tradição catequética católica, o nono mandamento proíbe a concupiscência carnal; o décimo proíbe a concupiscência dos bens alheios (CIC 2514).

O Batismo confere àquele que o recebe a graça da purificação de todos os pecados. Mas o batizado deve continuar a lutar contra a concupiscência da carne e as cobiças desordenadas. Com a graça de Deus, alcançará a pureza de coração:

• pela virtude e pelo dom da castidade, pois a castidade

permite amar com um coração reto e indiviso;

• pela pureza de intenção, que consiste em ter em vista o fim

verdadeiro do homem; com uma atitude simples, o batizado

procura encontrar e realizar a vontade de Deus em todas as

coisas;

• pela pureza do olhar, exterior e interior; pela disciplina dos

sentimentos e da imaginação; pela recusa de toda

complacência nos pensamentos impuros que tendem a

desviar do caminho dos mandamentos divinos: "A

concupiscência desperta a paixão dos insensatos" (Sb 15,5);

• pela oração (2520)

Muitos sucumbem por julgar que a vida reta depende só de suas próprias forças. Há no ser humano uma razoável força que o ajuda a vencer as tentações. No entanto, é prudente que se saiba que sem ajuda de Deus e a força do Espírito Santo, nada podemos fazer (cf. Jo 15,4). É preciso buscar ajuda do Alto para lutar contra a concupiscência

No momento em que fazemos nossa primeira profissão de fé, recebendo o santo Batismo que nos purifica, o perdão que recebemos é tão pleno e tão completo que não nos resta absolutamente nada a apagar, seja do pecado original, seja dos pecados cometidos por nossa própria vontade, nem nenhuma pena a sofrer para expiá-los. (...) Contudo, a graça do Batismo não livra ninguém de todas as fraquezas da natureza. Pelo contrário, ainda temos de combater os movimentos da concupiscência, que não cessam de arrastar-nos para o mal. (978).

No batizado, porém, certas conseqüências temporais do pecado permanecem, tais como os sofrimentos, a doença, a morte ou as fragilidades inerentes à vida, como as fraquezas de caráter etc., assim como a propensão ao pecado, que a Tradição chama de concupiscência ou, metaforicamente, o “incentivo do pecado” (fomes peccati):

Deixada para os nossos combates, a concupiscência não é

capaz de prejudicar aqueles que, não consentindo nela,

resistem com coragem pela graça de Cristo. Mais ainda: 'um

atleta não recebe a coroa se não lutou segundo as regras'

(1264. Cf. 2Tm 2,5).

A conversão a Cristo, o novo nascimento pelo Batismo, o dom do Espírito Santo, o Corpo e o Sangue de Cristo recebidos como alimento nos tornaram "santos e irrepreensíveis diante dele" (Ef 1,4), como a própria Igreja, esposa de Cristo, é "santa e irrepreensível" (Ef 5,27).

Entretanto, a nova vida recebida na iniciação cristã não suprimiu a fragilidade e a fraqueza da natureza humana, nem a inclinação ao pecado, que a tradição chama de concupiscência, que continua nos batizados para prová-los no combate da vida cristã, auxiliados pela graça de Cristo. É o combate da conversão para chegar à santidade e à vida eterna, para a qual somos incessantemente chamados pelo Senhor (1426).

A luta contra a cobiça carnal passa pela purificação do coração e pela prática da temperança (2530).

Na doutrina da Igreja, nas pregações e homilias, e, sobretudo nos Dez Mandamentos encontra-se advertências contra a concupiscência, conforme menciona o Catecismo:

O nono mandamento adverte contra a cobiça ou concupiscência carnal (2529).

O décimo mandamento desdobra e completa o nono, que se refere à concupiscência da carne. Proíbe a cobiça dos bens dos outros, raiz do roubo, da rapina e da fraude, que o sétimo mandamento proíbe. A "concupiscência dos olhos" (1 Jo 2,16) leva à violência e à injustiça, proibidas pelo quinto preceito. A cupidez tem sua origem, como a fornicação, na idolatria proibida nas três primeiras prescrições da 1ei. O décimo mandamento se refere à intenção do coração e resume, junto com o nono, todos os preceitos da Lei (2534).

O Catecismo estabelece uma estreita relação entre pecado e concupiscência:

Assim, o pecado toma os homens cúmplices uns dos outros, faz reinar entre eles a concupiscência, a violência e a injustiça. Os pecados provocam situações sociais e instituições contrárias à bondade divina. As "estruturas de pecado" são a expressão e o efeito dos pecados pessoais. Induzem suas vítimas a cometer, por sua vez, o mal. Em sentido analógico, constituem um “pecado social” (1869).

É levantada, também, uma relação de nexo causal entre o Pecado original e a concupiscência:

Pela irradiação desta graça, todas as dimensões da vida do homem eram fortalecidas. Enquanto permanecesse na intimidade divina, o homem não devia nem morrer nem sofrer. A harmonia interior da pessoa humana, a harmonia entre o homem e a mulher e, finalmente, a harmonia entre o primeiro casal e toda a criação constituíam o estado denominado “justiça original” (376).

A harmonia na qual estavam, estabelecida graças à justiça original, está destruída; o domínio das faculdades espirituais da alma sobre o corpo é rompido; a união entre o homem e a mulher é submetida a tensões; suas relações serão marcadas pela cupidez e pela dominação (cf. Gn 3, 16). A harmonia com a criação está rompida: a criação visível tornou-se para o homem estranha e hostil. Por causa do homem, a criação está submetida “à servidão da corrupção”.

Finalmente, vai realizar-se a conseqüência explicitamente anunciada para o caso de desobediência: o homem “voltará ao pó do qual é formado”. A morte entra na história da humanidade (400).

Embora próprio a cada um, o pecado original não tem, em nenhum descendente de Adão, um caráter de falta pessoal. É a privação da santidade e da justiça originais, mas a natureza humana não é totalmente corrompida: ela é lesada em suas próprias forças naturais, submetida à ignorância, ao sofrimento e ao império da morte, e inclinada ao pecado (esta propensão ao mal é a “concupiscência”).

O Batismo, ao conferir a vida da graça de Cristo, apaga o pecado original e faz o homem voltar para Deus. Porém, as conseqüências de tal pecado sobre a natureza, enfraquecida e inclinada ao mal, permanecem no homem e o incitam ao combate espiritual (405).

Ainda no mesmo Catecismo da nossa Igreja encontramos diversas “pistas” para a purificação do coração e do espírito contra a concupiscência:

O coração é a sede da personalidade moral: “É do coração que procedem más intenções, assassínios, adultérios, prostituições, roubos, falsos testemunhos e difamações” (Mt 15,19). A luta contra a concupiscência da carne passa pela purificação do coração e a prática da temperança (2517): Conserva-te na simplicidade, na inocência, e serás como as criancinhas, que ignoram o mal destruidor da vida dos homens.

A luta contra a cobiça carnal passa pela purificação do coração e pela prática da temperança (2530).

A graça de Deus nos dá o poder para dizer não à concupiscência. A Bíblia nos diz que

Porque a graça de Deus se manifestou, trazendo salvação a

todos os homens, ensinando-nos, para que, renunciando à

impiedade e às paixões mundanas, vivamos no presente mundo

sóbria, justa, e piamente (Tt 2,11s).

Em outro trecho (a Carta de São Tiago) lemos que

Que ninguém, quando for tentado, diga: “Minha tentação vem

de Deus”. Pois Deus não pode ser tentado a fazer o mal e a

ninguém tenta. Cada qual é tentado por sua própria

concupiscência, que o arrasta e seduz (Tg 1,13-14).

Olhando atentamente alguns trechos do Novo Testamento, veremos que o verbete epithimia é empregado, tanto para expressar o ato natural de desejar alguma coisa, como também pode se referir a uma coisa má, como um desordenado desejo carnal.

Para São Paulo, a concupiscência é uma força atuante dentro do homem não-convertido que pode levá-lo ao pecado (cf. Rm 1,24-32; 7,7s; Gl 5,16-26). Em paralelo, Tiago afirma (1,14s) que a concupiscência é a causa dos atos pecaminosos dos homens que se desviam da doutrina do evangelho.

O mundo passa com as suas concupiscências,

mas quem cumpre a vontade de Deus,

esse permanece eternamente

No sentido etimológico, a concupiscência, como já vimos, pode designar qualquer forma veemente de desejo humano. A teologia cristã deu-lhe o sentido particular de moção do apetite sensível que se opõe aos ditames da razão humana. O apóstolo Paulo a identifica com a revolta que a carne provoca contra o espírito. Provém da desobediência do primeiro pecado. Transtorna as faculdades morais do homem e, sem ser pecado em si mesma, inclina-o a cometê-lo. Jesus identifica os desejos obscuros como inspiração maligna:

Vocês têm por pai ao diabo, e querem satisfazer os desejos (epithymia) do pai de vocês. Ele foi homicida desde o princípio, e não se firmou na verdade, porque não há verdade nele. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso, e pai da mentira. (Jo 8,44)

São Paulo, referindo-se à desordem dos desejos carnais, neste texto em especial à homossexualidade, fala em “desonra do corpo”:

Por isso também Deus os entregou às concupiscências

(epithymia) de seus corações, à imundície, para desonrarem

seus corpos entre si (Rm 1,24); não reine, portanto, o

pecado em vosso corpo mortal, para lhe obedecerdes em

suas (epithymia) concupiscências (Rm 6, 12); Porque tudo o

que há no mundo, a concupiscência (epithymia) da carne, a

concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não é do Pai,

mas do mundo. E o mundo passa, e a sua concupiscência;

mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para

sempre. (1Jo 2,16s).

A maldade é plantada pelo diabo, como sementes daninhas, em corações que relaxaram a vigilância. Jesus um dia disse aos seus ouvintes:

O que sai do homem, isto é o que torna o homem impuro. De

fato, é do interior, é do coração do homem que saem as más

intenções, desregramentos, furtos, homicídios, adultérios,

cupidez, perversidades, astúcias, inveja, injúrias, vaidade,

insensatez (Mc 7,20ss).

Essas “sementes” da maldade já existem em nós; se não as utilizamos é porque, pela graça de Deus, não estão florescendo. Satanás já as semeou e tenta cultivá-las em nós. É do coração do homem que saem as más intenções que o tornam impuro.

Concupiscências são sementes do mal que têm força e querem florescer em nós. Em determinado momento, é a ganância; em outro, é a inveja; ainda em outro, é a impureza... e assim por diante. A respeito disto São Paulo nos diz claramente:

Sei que em mim – quero dizer em minha carne – o bem não

habita: querer o bem está ao meu alcance, não, porém,

praticá-lo, visto que faço o bem que quero, e faço o mal,

que não quero. Ora, se faço o que não quero, não sou eu

quem age, mas o pecado que habita em mim (Rm 7,18-20).

Não podemos ser ingênuos! Existe muita tentação que o demônio nos apresenta, mas a pior delas já existe em nós: a concupiscência. Ela age de duas maneiras: violenta e jeitosa. Com a primeira, ela arrasta sem medo a pessoa para o pecado. Com a outra, mais comum – a concupiscência jeitosa – vai chegando de mansinho, com sedução, piscar de olhos, “sorrisinhos” marotos, e você vai o atraindo qual o pássaro para a boca da serpente, até cair.

O mundo passa com as suas concupiscências,

mas quem cumpre a vontade de Deus,

esse permanece eternamente

A Palavra de Deus esclarece: não é o maligno, é a própria concupiscência armada por ele que nos arrasta e seduz. O diabo apenas se utiliza dela para nos derrubar.

Uma vez fecundada, a concupiscência dá à luz o pecado, e

o pecado, tendo atingido a maturidade, gera a morte

(Tg 1,15a).

Quando o pecado amadurece e cria raízes em nós, fica difícil de nos livrarmos dele. Somente pelo arrependimento e pela confissão, Deus o arranca pela raiz, mas mesmo assim temos de ficar atentos, porque a concupiscência continua dentro de nós, como semente.

A concupiscência é “sem-vergonha”. Depende de você aceitá-la ou não para o pecado se concretizar.

É interessante observar que o conceito da concupiscência é usado em sentidos diferentes por católicos e luteranos. Nos escritos confessionais luteranos, concupiscência é vista como cobiça da pessoa em busca de si mesma e que, à luz da lei entendida espiritualmente, é considerada pecado.

Na compreensão católica, a concupiscência é uma inclinação, que permanece nas pessoas também após o batismo, que provém do pecado e tende para o pecado. A despeito das diferenças aqui inerentes, pode ser reconhecido a partir da perspectiva luterana que a cobiça pode tornar-se a porta pela qual o pecado ataca. Devido ao poder do pecado, a pessoa humana toda carrega em si a tendência de opor-se a Deus.

Essa tendência, de acordo com a concepção luterana e católica, “não corresponde ao desígnio original de Deus para a humanidade” (Declaração conjunta católico-luterana sobre a Doutrina da Justificação, 30). O pecado é de caráter pessoal e como tal leva à separação de Deus. Ele é a cobiça egoísta da velha criatura e falta de confiança e de amor para com Deus.

São Francisco de Assis enfrentou a tentação duas vezes de maneira agressiva. Uma das vezes, quando sentiu o “fogo” da tentação, passou dias lutando contra a concupiscência dentro dele. Quando ele não agüentava mais, jogou-se no meio das roseiras cheias de espinhos. Ele deu a vitória a Jesus, e Jesus deu a vitória a ele. Hoje, em Assis, ainda vemos essas roseiras que não têm mais espinhos. Aqueles espinhos foram embora porque a intercessão de Jesus uniu-se à vontade firme de Francisco em dizer: Não, eu não vou pecar!

De outra feita, Francisco foi novamente tentado violentamente, em sua concupiscência. Tudo começou com um sentimento bom: o desejo de ser pai. Enquanto ele olhava para um bonequinho de neve que havia feito, a concupiscência dentro dele o provocava:

“Você poderia ser pai de uma criatura assim, muito mais bonita do que essa”.

Quando Francisco percebeu a violência da tentação agindo sobre sua sexualidade, empurrando-o para o pecado, ele não teve dúvida: tirou a roupa e rolou na neve para apagar o “fogo” provocado por ela. Isso é que é ser homem. Isso é que é ser santo!

Ceder à concupiscência qualquer fraco o faz. Mas aqueles que são realmente homens e mulheres de Deus vencem a tentação, movidos pela vontade de dar ao Senhor a vitória. A concupiscência pode afoguear seu corpo, seus sentimentos, seus afetos, sua imaginação. Mas você não precisa ceder; não pode deixá-la se enraizar no seu coração.

Não se deixem enganar, meus irmãos muito amados! (Tg 1,16).

O inimigo de Deus sabe que tudo está em nossa vontade, somos nós que decidimos. Ele não consegue penetrar em nosso coração, mas pode excitar a nossa vontade. Por isso decidiu miná-la e anular nossa capacidade de decisão. Muitos acabaram “indo na onda” dos outros e se afundaram.

Por esta razão, na hora da tentação não tema! Peça ao Deus da Vida que fortaleça sua vontade. O poder divino está acima das forças infernais. Abra o coração para que o Divino Espírito Santo e revele a ele o perigo das concupiscências que pesam sobre você, orando vigorosamente.

As palavras do “discípulo amado” ditas há 2000 anos, que ilustram esta refkexão, continuam fretenindo em nossos ouvidos, e devem servir de alento na luta contra o assédio do mal:

O mundo passa com as suas concupiscências,

mas quem cumpre a vontade de Deus,

esse permanece eternamente

(1Jo 2,17).

Resumo de uma meditação que o autor realizou em um retiro de religiosos, no interior do RS em maio de 2006.

Galvão (67 anos) é teólogo leigo, biblista com especialização em exegese e Doutor em Teologia Moral.