Michael Jackson – Do Circo a Nietzsche
Michael Jackson está morto. Essas foram as palavras que me chocaram quando as ouvi pela primeira vez no jornal das oito. Sabem, nunca fui fã de Michael Jackson – MJ, para abreviar. Mas foi após sua repentina deixa que comecei a ler mais sobre ele, a assistir seus clipes, ouvir suas músicas, a querer entender mais sobre sua vida. Peguei-me parafraseando Machado de Assis: Está morto, agora podemos homenageá-lo. “Michael Jackson – Do Circo a Nietzsche” foi a forma que encontrei para tentar compreender este ícone artístico do século XX, talvez o maior deles. Procurei discutir sobre a relação entre a cultura de massa e o esforço pessoal de um artista para alcançar realização e superação de suas expectativas.
Desde os tempos mais remotos, os europeus ensinavam ao mundo que o show da vida real dava um bom espetáculo para as massas. Desde a antiguidade, as execuções e torturas em praça pública atraíam multidões. Os romanos deram um passo a frente e inventaram o coliseu, com suas lutas de gladiadores, com prisioneiros entregues aos leões, tudo com a participação da platéia: polegar para cima, polegar para baixo; e também aperfeiçoaram o circo, com apresentação de animais domesticados, números de malabarismos e de desafios ao perigo. As execuções permaneceram como atração pública durante a idade média, e só mais tarde outros espetáculos foram ganhando apreço, como o esquecido circo, que continuava sob o tema da apresentação de animais exóticos domesticados e números que desafiam o perigo. Com o declínio das execuções públicas na idade moderna, o circo concentrou o papel de show para as massas. No início do século XX, o rádio e o cinema acompanharam a era industrial e entraram como veículos de entretenimento das massas. Nos meados do século XX a televisão logo se popularizou e, com isso, o show poderia ser transmitido para todos os lares: um circo sem sair de casa. A televisão abriu o leque de divertimento e informação. Novos programas foram sendo desenvolvidos, como concursos de cantores e dançarinos, o que possibilitava a abertura de fama e carreira para muitos talentos. Na segunda metade do século XX, as indústrias fonográficas e cinematográficas já faturavam muito dinheiro com o ramo do entretenimento.
Hoje, quando assistimos aos chamados Reallity Shows (Shows da Realidade), com brigas de pessoas comuns televisionadas ou escândalos entre as celebridades, ou quando assistimos a baixarias ridículas, reais ou forjadas, pense que só o formato mudou, só a tecnologia que evoluiu, mas o esquema de se oferecer circo e show para as massas é o mesmo desde a antiguidade. Desde o século XX, o caminho para formar uma grande indústria do entretenimento é praticamente o mesmo: você começa como um empresário do ramo da comunicação, sabe fazer dinheiro com o público, passa a dirigir um jornal, e depois compra um canal de televisão e uma produtora de música. Também vemos isso no Brasil. Roberto Marinho, Sílvio Santos e Edir Macedo, cada qual em seu ramo original, seguiram o caminho da indústria do entretenimento de massas, no modelo jornalismo-e-diversão. Ao maior estilo "Cidadão Kane".
No ramo do entretenimento, antes mesmo do advento da televisão, as massas sempre se encantaram com a magia, com o show: quanto mais ousado o espetáculo melhor. É nesse meio que surgiu Michael Jackson.
Quando Michael se mostrou um grande talento mirim, a indústria da música tratou logo de ir separando-o de seus irmãos e da influência de seu pai, para formar nele um produto de sucesso da indústria musical. Conforme Michael Jackson adquiria maturidade artística, se tornava cada vez mais seu próprio produtor, até ter dinheiro e fama suficientes para dirigir sua própria carreira. MJ interiorizou toda a fantasia e toda a realidade da indústria da música, e decidiu, segundo suas próprias palavras, que sua vida seria o maior espetáculo da terra. E então quando vemos MJ no palco, reinventando James Brown e Fred Astaire; unindo o Soul com o Hip Hop; unindo o sapateado com efeitos visuais eletrônicos estonteantes; e promovendo seus álbuns com clipes hollywoodianos, percebemos o quanto ele estava falando sério.
Só que quando você é apenas um produtor da indústria do entretenimento e está nos bastidores, você é só um apresentador, um dono do circo, sua vida não entra no show, você é só o comerciante do espetáculo. Mas se você É o show, é o produto do espetáculo, então sua vida pessoal se mistura com a atração. Seu passado sombrio, suas manias e suas excentricidades se tornam o show, o limiar entre o pessoal e o público se perde, e a fronteira entre o real e a fantasia se torna mais um show, e toda a massa quer assistir. O produtor-produto se torna uma infeliz vítima do sistema em que resolveu fazer carreira. Michael Jackson era este produto. Sua vida pessoal e seu passado começaram a fazer cada vez mais parte do espetáculo, mesmo contra sua vontade.
A fama é um jogo de enganação para os reles mortais. Ela faz a nós e ao famoso pensar que ele é um deus, e cobra um preço que só um deus poderia pagar. Mas somos mortais, e esse preço é sempre inalcançável, impossível. O que nos levaria a pensar: Vale a pena estragar a vida pessoal de alguém só para termos entretenimento, só porque é em nome da arte? Claro que a indústria do entretenimento nunca se fará essa pergunta, pois ela lucra bilhões com o show da vida. Mas este dinheiro vem da platéia. Nós que temos o poder de escolha de consumir o circo deles ou não. Enquanto não formos criteriosos quanto ao nível de show que queremos ou que aceitamos, vários outros astros mirins ou precoces irão pagar com o preço de suas vidas, de suas infâncias perdidas, só para termos nossa cota esporádica de entretenimento pessoal e coletivo. É como a jornalista Margo Jefferson escreveu: Nós conseguimos nos perguntar se Michael Jackson realmente abusava ou não de criancinhas, mas ninguém se pergunta se nós também abusamos de crianças quando damos audiência aos astros mirins e precoces, que sofrem todo o abuso da indústria cultural, em nome do nosso entretenimento, em nome da realização de pais que querem se realizar nos filhos, e em nome do dinheiro que os produtores ganham com o comércio do entretenimento. Se nós adultos caímos na magia, na fantasia, na ilusão do entretenimento, imaginem uma criança.
Michael Jackson entrou ainda criança neste ramo e sofreu todas as conseqüências, boas e ruins, para sua identidade e visão de mundo. É aí que tentamos entender como funcionava esta genialidade artística misturada com excentricidade à beira da loucura.
Nietzsche concluiu (o que no caso de MJ, e aqui fica a ironia, na obra com o título original: “O nascimento da tragédia no espírito da música”) que os gregos antigos haviam sido inigualáveis em sua cultura não APESAR de terem sido uns pervertidos em seu íntimo, mas sim justamente PORQUE eram uns pervertidos em seu íntimo. Mas se eram pervertidos como foram tão geniais? Porque, para Nietzsche, eles usaram a prática da SUBLIMAÇÃO. Sublimar é um duro exercício que compreende converter toda sua energia potencializada em seus traumas, medos, aversões - e que você ou extravasaria em práticas sombrias e escusas ou se lamentaria pelo resto de sua vida tentando reprimi-las-, para práticas louváveis e grandiosas. Os gregos antigos tiveram êxito em suas sublimações, expressadas em sua cultura. Aliás, o meio mais comum de expressar seu íntimo sombrio e ao mesmo tempo exorcizá-lo é através da ARTE. Claro que aqui há uma condição nietzschiana: você precisa ter o potencial e a energia suficiente para ter êxito em sua sublimação. A maioria das pessoas que conhecemos não tem grandes traumas e grandes medos para acumular tanta energia a ponto de ser um gênio em potencial pela sublimação. Na verdade, a maioria de nós convive com esses traumas e medos reprimindo-os em neuroses ou sublimando-os em nossas escolhas profissionais e afetivas, ou praticando hobbies, como pintar um quadro, escrever poesias, colecionar coisas, enfim, praticando arte. Também fique claro que nem toda genialidade provém da sublimação de nosso lado obscuro, mas sim que o êxito na sublimação de um grande impulso obscuro, na arte, por exemplo, produz grandes gênios, como Michael Jackson.
Michael Jackson, assim como muitas outras pessoas no mundo, teve uma infância traumatizada, por um pai violento e pela infância perdida; no seu caso, tanto na profissão precoce na indústria da música como na negação do contato com outras crianças que lhe tirassem o tempo e a atenção dos ensaios. Só que MJ tinha o potencial de sublimação, ele tinha seu talento musical como ferramenta para a genialidade. E entre ficar como os artistas que se afundam jovens nas drogas e destroem suas carreiras em vidas suicidas ou ficar entre os gênios a um passo da anormalidade, Michael escutou Nietzsche e ficou com a segunda opção.
Mas é claro que no meio do caminho para o super-homem nietzschiano nós nos encontramos várias e várias vezes com Freud. Segundo Freud, não importa como você tratará de seus traumas da infância, eles sempre estarão com você, lá no fundo, mesmo em suas escolhas mais nobres. E basta conhecer a vida de MJ, principalmente sua infância, que conseguimos perceber os pontos traumáticos de sua vida, pelo menos o que ele sentiu que vivenciou, expresso em seu estilo de vida, em seus clipes, nas letras de suas músicas.
Michael já disse várias vezes, em entrevistas e em letras de suas músicas, que compensava nas crianças sua infância perdida. Ao ajudar crianças do mundo inteiro Michael as livrava do sofrimento, aliviando a dor delas e a sua própria. Seu engajamento nas causas sociais foi o meio nobre que encontrou para extravasar todo seu impulso concentrado em sua infância, ou na idéia que tinha de sua infância. É como se seu lema fosse: "Veja, nós não podemos evitar que coisas ruins aconteçam, mas se nos unirmos nós podemos curar o mundo, nós somos o mundo, nós somos as crianças".
Mas não só Nietzsche estava com ele, também estava Freud. Michael considerava a si mesmo um Peter Pan, criou sua própria Terra do Nunca, o rancho Neverland, com seus brinquedos, parques e jardins, onde passou a conviver com seus animais de estimação e as crianças que convidava para passar os dias, e as noites íntimas. Michael dizia que só se relacionava com animais e crianças porque só eles eram puros e inocentes, não exigiam nada em troca. Esta idéia fantasiosa do que é uma criança e de que ele mesmo era uma eterna criança com o dever de compartilhar todo seu amor com outras crianças, principalmente as mais carentes, acompanhou o astro até o fim.
O mesmo se deu com sua aparência. Todos nós já ouvimos o quanto o jovem Michael sofreu com as implicâncias que seu pai, irmãos e primos infligiam sobre sua aparência. Michael não só se transformava em seus clipes e em suas performances nos palcos como modificou sua própria aparência, transformando-se cada vez mais em um produto de sua própria fantasia, mas um produto real. E foi sua obsessão real para ser o artista perfeito, oferecer o espetáculo perfeito, ser a criança perfeita, ser o pai perfeito, e que, ao julgar a si mesmo ainda em perfeição, pressionando-se em ter de fazer mais e mais - uma exigência paterna e da indústria da música que ele internalizou desde criança-, que o levaram ao uso de uma série de medicamentos para compensar suas limitações físicas e da idade. Sua dependência química foi o resultado de toda uma vida dedicada à sublimação. A sublimação é um jogo duro. Não se pode ter este poder o tempo todo. E, sem o poder, ele é só um ser humano, frágil e carente, sem nada a nos impressionar. Michael Jackson era um produto de seu próprio estrelato. E o preço para mantê-lo, conforme o astro envelhecia, tornava-se mais e mais caro. Mas Peter Pan não pode envelhecer, tem que permanecer jovem, alegre. Mas no mundo real as pessoas envelhecem. E, mesmo por motivos os mais banais, elas morrem.
Como na obra de Orson Welles, “Cidadão Kane”, Michael morreu na cama de sua mansão, em sua Xanadu, em sua terra da fantasia, dos prazeres, criada para si mesmo. Como em “Cidadão Kane”, eu me coloco no lugar dos investigadores alheios à sua vida e pergunto a mim mesmo qual teria sido o seu último pensamento, qual terá sido a última imagem que teria passado por sua mente, que zona de conforto ele teria escolhido, qual teria sido o seu “Rosebud”. Teria Michael se lembrado das vezes em que olhava pela janela de sua humilde casa e via meninos brincando no parque enquanto ele ensaiava? Teria ele se lembrado dos esparsos momentos em que esteve carinhosamente com sua mãe, quando ela lhe ensinava a bíblia, quando era criança?
A fama nos engana. Ela faz a nós e ao famoso pensarmos que os deuses existem, que são imortais. Todos jogamos o jogo. Mas no mundo real, os deuses morrem.