Arte X Comércio

Com a dificuldade de inserção dos filmes europeus e asiáticos nas salas de exibição em função da predominância do filmes hollywoodianos, criou-se então o rótulo “cinema de arte” para essas produções marginais ao mainstream. Esse artifício – surgido graças também ao advento da Nouvelle Vague –, de caráter marcadamente mercadológico, acabou surtindo efeito em parte do público, criando um nicho de mercado; e, mais do que isso, enraizou-se no senso-comum, levando o público a acreditar que realmente existe um cinema “de arte”, não contaminado por questões financeiras e comerciais, como as produções hollywoodianas.

O primeiro equívoco quando se pensa essa distinção é nitidamente conceitual: existe sim, a arte do cinema, não o cinema de arte; pode-se julgar um filme como melhor que outros, mas todos são produções cinematográficas e, portanto, frutos de uma mesma forma de expressão, o cinema.

O segundo erro é pensar a produção artística possível de forma completamente autônoma, livre de quaisquer amarras ou constrições. No campo cinematográfico, que é o foco deste estudo, especificamente, todas as produções possuem uma dimensão material – financeira, mercadológica etc – e uma dimensão artística – criativa, estética etc. O que varia de uma obra para outra é o grau de atuação de uma ou outra dimensão, não sua natureza.

Tal pensamento equivocado serviu apenas para reforçar preconceitos, de ordem ideológica – uma das formas mais descartáveis de julgamento – e estética contra Hollywood, principalmente. Diz-se, por exemplo, que um filme é dispensável por ter exigido uma produção cara, por ter um sujeito como Spielberg, Zemeckis ou algum americano típico na direção, por não conter mensagens ideológicas ou existencialistas, além de uma série de outras exigências tolas e infundadas.

Mesmo antes do advento da Indústria Cultural o campo artístico não poderia ser considerado livre e autônomo. Os artistas – que nem sempre tiveram o status atual – já foram dependentes dos mecenas, da Igreja, dos Senhores e Nobres, e hoje dependem de um outro tipo de “entidade”: o mercado, essa esfera de troca na qual depende-se primordialmente da demanda.

O fato é que entre os séculos XVII e XIX os artistas passaram a ser vistos como atores diferenciados no corpo social. Ultrapassaram a condição de meros artesões, técnicos, que construíam objetos que tivessem valor de uso, que refletissem as idéias da Igreja ou contribuíssem para legitimar figuras sociais de destaque, como os aristocratas. Houve uma sacralização da obra artística, destruída no século XX, segundo Walter Benjamin, para o qual a obra de arte perdeu a aura na época de sua reprodutibilidade técnica. Com essa sacralização, entrou em voga a concepção do artista enquanto ser iluminado, que cria por si só, alheio as contaminações mundanas, como a interferência do capital.

Com a inserção aparentemente plena da arte no campo mercantil pela Indústria Cultural, muitos – principalmente os frankfurtianos, como Benjamin – entenderam que a arte foi maculada, deixando de ser a velha arte, estética por excelência, bela, fruto de um trabalho criativo de uma mente livre. Os artistas, no entanto, continuam fazendo uso de sua criatividade e conhecimento linguístico para compor suas obras, mas para atingirem os possíveis apreciadores têm de seguir certas regras do jogo mercadológico, que impõem certos limites, certos tipos de formatos e conteúdos. Repetindo, o que varia é o grau de atuação de cada um desses dois lados da produção artística. Em suma, a rígida distinção entre arte e comércio é uma falácia; há sim um embate, uma negociação entre as duas esferas, mediada por artistas e produtores culturais.

Ainda com relação a Hollywood, um fator que sempre contribuiu para o – apenas aparente – esvaziamento estético de Hollywood é o chamado star system. A glamourização dos atores, transformando-os, na verdade, em personagens que interpretam outros personagens, apenas reforça o forte caráter mercantilista das relações de produção do mundo do cinema. O fato é que tal expediente é adotado em diversas outras produções de outros países, ainda que em grau, em geral, muito menor.

A relativização e o questionamento desse senso-comum se fazem de suma importância. A Indústria Cultural – cuja definição de Adorno e Horkheimer pode e deve ser problematizada – não transformou por completo a obra de arte em produto mercantil, nem tampouco os artistas já foram seres especiais, que produziam em um estado de alheamento ascético do mundo. Um filme não é necessariamente descartável pelo simples fato de ser resultado de uma empreitada cara, fruto de uma visão mercadológica para atingir um público-alvo, mas também não é garantia alguma de qualidade a suposta liberdade que tem um cineasta ao realizar filmes com pequeno orçamento e fora do esquema hollywoodiano.