São Paulo - O apóstolo universal - SERMO XLII

SÃO PAULO, O APÓSTOLO UNIVERSAL

Esse homem é um instrumento que eu escolhi

para anunciar o meu nome aos pagãos,

aos reis e ao povo de Israel.

(At 9, 15).

O apóstolo Paulo de Tarso é uma figura notável. Depois do Deus Trino e da Virgem Maria, ele é a pessoa mais importante do cristianismo. Eu sempre digo, como seria difícil falar em Jesus, pregar o evangelho, pensar em Igreja e desenvolver uma atitude missionária se não tivéssemos o modelo de cristão o-peroso que ele nos deixou.

Em uma audiência geral do fim de junho de 2008, o papa Bento XVI citou a vida de Paulo de Tarso como proposta de ensinamento para nós, cristãos do terceiro milênio. O papa destacou a sua originalidade, além do fato de Paulo compartilhar sua cultura e o ambiente em que vivia. Diante de aproximada-mente oito mil fiéis, Bento XVI destacou a tripla formação de Paulo (judaica, helenista e romana), anunciando que proferirá novas alocuções, no decorrer do período 2008/2009 a respeito do apóstolo, em alusão ao “Ano Paulino”, quando se comemora dois mil anos de seu nascimento.

“Ao grande apóstolo é consagrado este ano litúrgico porque ele é uma fi-gura distinta e inimitável, mas sempre estimulante diante de nós, como exem-plo de grande abertura à humanidade e às suas culturas”, afirmou o papa. Nessa alocução, o papa ilustrou ao público a relação entre São Paulo e o seu ambiente romano, onde os judeus eram minoria (na Roma antiga, não chega-vam a 3% da população), e também falou das várias passagens de sua vida, como seus famosos discursos em Atenas, que teriam influenciado correntes es-tóicas daquele tempo.

Um dos livros que mais me impressionou foi “Os santos que abalaram o mundo” (R. Füllop-Miler, 1948) no qual o autor destaca a vida e a obra de cinco santos: Antão, Agostinho, Francisco, Inácio e Teresa de Jesus. Sem querer ser polêmico, me permito discordar de uma nominata da qual Paulo de Tarso não faça parte. É impossível falar de humanismo e cristianismo sem citar a pessoa e a obra de São Paulo, chamado com muita propriedade de o maior depois do Úni-co. Ele, mais do que ninguém abalou o mundo.

A teologia paulina é um tratado, especial e privilegiado, sobre a graça de Deus. Lá encontramos inúmeras referências ao dom da salvação, gratuitamente colocado à disposição de quem crê, pelo Deus rico em misericórdia, que nos ar-rancou da morte e nos deu uma vida abundante.

São Paulo é um comunicador por excelência. Ele rompe o círculo vicioso da pregação religiosa de seu tempo, em que os sacerdotes não saiam dos tem-plos. Ele fez uma coisa que ainda há necessidade hoje em dia: saiu para ir onde o povo estava. Por esta razão, o papa Paulo VI disse certa vez que, se São Paulo vivesse hoje, certamente seria jornalista ou repórter. Dentro dessa perspectiva é preciso ler sua obra como uma reportagem que nos relata a grandeza de Deus e o grande amor do gesto redentor de Cristo.

Assim como um crítico especializado tenta, através de apologias, nos convencer do valor de um livro, de um filme ou de uma ideologia qualquer, assim o apóstolo viveu, viajou, pregou, fundou igrejas e deixou documentos para mostrar a todos a eficácia do evangelho da salvação.

Compreender Paulo e sua obra é sedimentar nosso conhecimento sobre o cristianismo. Depois da Virgem Maria, ninguém amou mais a Jesus que o após-tolo de Tarso. Ele é uma figura decisiva para a fé cristã e para a Igreja.

Os antecedentes de Paulo

Para que se tenha uma visão bem nítida de Paulo como apóstolo de Cristo é preciso que se verifique seus antecedentes, desde o seu nascimento até o dia em que ele conheceu Cristo, na visão que teve a caminho de Damasco. Paulo é um judeu nascido em Tarso, na região da Cilícia (Ásia Menor), hoje Turquia. Sua data de nascimento oscila de autor para autor, mas sabe-se que se situa entre 6 e 9 de nossa era. Um judeu nascido fora da Palestina? De fato, embora curioso, não é algo tão raro assim.

Trata-se de uma realidade daquela época. No ano 63 a.C. o general romano Pompeu invadiu Jerusalém. Muitos judeus fugi-ram, num movimento migratório que ficou conhecido como diáspora. Os nasci-dos de famílias judias, mesmo nascidos ou residentes em outras terras, para fins de raça e credo religioso eram considerados judeus.

Paulo se apresenta como “israelita da tribo de Benjamim, circuncidado ao oitavo dia, hebreu filho de hebreus, quanto à lei, fariseu: quando ao zelo, perse-guidor da Igreja; quando à justiça que há na lei, irrepreensível. Mas o que era para mim lucro, eu tive como perda, pelo amor de Cristo” (cf. Fl 3,5s). Paulo foi martirizado em Roma, decapitado fora da cidade, em Ad Aquas Salvias, por vol-ta do ano 68. Nesse local situa-se hoje a Basílica São Paulo Extra-muros, onde repousam os restos mortais do apóstolo.

Saulo ou Paulo?

Embora se trate da mesma pessoa, há algumas confusões com relação ao emprego de um ou de outro nome. Há quem afirme que o judeu Saulo (ou Saul) passou a se chamar Paulo depois de convertido ao cristianismo. Embora sem-pre fizesse questão de dar ênfase às suas origens judaicas, o apóstolo de apre-senta sempre com o nome de Paulo (Paulus), mesmo quando se dirigia às co-munidades israelitas.

Em Saint Paul en son temps, o autor E.Cothenet afirma que “o uso de dois nomes era muito comum naquela época, na bacia do Mediterrâneo. Saulo era um nome hebraico de pronúncia ambígua entre a cultura grega da época. Com-preende-se por isso que, no limiar de suas relações como o mundo greco-romano, o jovem judeu de Tarso se fizesse chamar Paulo”. Até nisto se eviden-cia a capacidade de comunicação do apóstolo.

Para tornar-se mais conhecido e assim divulgar melhor o evangelho de Cristo, ele modificou seu nome a fim de inserir-se de forma mais efetiva nas comunidades que visitava ou a quem enviava cartas. O comunicador sempre adota um “nome artístico” que o identifique melhor com o tipo de comunicação que ele pretende desenvolver. Com Paulo aconteceu de certa forma, a mesma coisa.

De perseguidor a apóstolo

O termo apóstolo, de origem grega tem um significado semelhante a envi-ado. A grande virada da vida de Paulo ocorre quando ele se dirige a Damasco para prender pessoas simpatizantes do cristianismo. Na entrada da cidade ele é tocado pela luz de Cristo e cai ao chão, cego pelo esplendor de Jesus.

Muitos falam em “cair do cavalo” mais num gesto figurado, pois a Escritura não infor-ma se ele viajava a cavalo, a pé ou em algum tipo de carro ou liteira. Abatido pelo poder de Jesus, Paulo não explica os porquês de sua conduta, nem tenta se justificar, apenas pergunta: “Senhor, que queres que eu faça?”.

Acabava aí a carreira de um fariseu bem-intencionado e começava a mis-são de um apóstolo apaixonado, de alma de fogo, que se consagrou sem limites a um ideal. A conversão de Saulo, o perseguidor, foi um acontecimento de suma importância para a Igreja nascente, porque foi ele quem lançou bem longe a re-de do evangelho. Com Paulo instaura-se um tempo de atividade missionária, o que era desconhecido até então.

A teologia paulina

A teologia de São Paulo é eminentemente cristológica. Embora use pou-quíssimas vezes a expressão “filho de Deus”, Paulo sabe que esse título significa simultaneamente a cristologia (ontologia) trinitária e a função salvadora de Cristo. Toda a cristologia de Paulo é soteriológica (refere-se à salvação) em torno do mistério pascal, que abarca a paixão, morte e ressurreição de Jesus. Acres-cente-se aqui duas categorias típicas de Paulo para indicar, no crente, o fruto da obra salvadora: a reconciliação e a justificação.

É interessante observar que em sua teologia, Paulo emprega alguns “títu-los cristológicos” bem reveladores, através dos quais exprime sua fé no Ressus-citado e sua forma de entender as realidades e expectativas soteriológicas. Va-mos recordar alguns desses títulos, revendo seu significado e ambientação cul-tural de cada um:

1. Cristo

É empregado por Paulo mais de quatrocentas vezes, mais que Jesus (usado 213 vezes); o Cristo-Messias dos judeus perde em Paulo o cará-ter nacionalista para significar somente o salvador escatológico de to-dos os homens;

2. Senhor

Utilizada cerca de 275 na literatura paulina, essa expressão kyrios (Senhor) foi transmitida a Paulo pela comunidade primitiva (cf. Fl 2,11; 1Cor 12,3; Rm 10,9). Esse título, em Paulo, é objeto de profissão de fé, e está ligado ao quadro da parusia (segunda vinda de Cristo), especialmente em 1Ts 3,13; 4,15s; 5,23;

3. Filho de Deus

Trata-se de uma expressão empregada muito menos (15 vezes) que as duas anteriores e indica uma relação íntima de Jesus com Deus-Pai. A ressurreição e a exaltação de Jesus tornam manifesta a sua condição de Filho de Deus.

Um estudo mais aprofundado é capaz de nos revelar algumas “fases teo-lógicas” da obra de São Paulo, de acordo com sua caminhada espiritual. Suas preocupações de recém-convertido não são as mesmas de quem se sente voca-cionado desde a primeira hora a testemunhar o ressuscitado até os confins na terra. Nem sua produção literária epistolar de homem livre assemelha-se à do cativo do imperialismo romano. Nesse particular a cristologia paulina vem re-presentada, através de seus escritos, por três etapas:

1. 1Ts e 1Cor 15

Aqui seu pensamento corresponde à fé da comunidade primitiva. No centro de 1/2Ts estão a ressurreição e a parusia próxima do Senhor. Da mesma forma em 1Cor 15 que insiste mais na ressurreição final, essencialmente ligada a Cristo. A mensagem escatológica exprime a fé em Cristo que era professada pela Igreja que se iniciava;

2. Gl. Rm, 1 e 2Cor

A segunda etapa refere-se ao tempo de permanência de Paulo em Co-rinto, e corresponde às grandes cartas paulinas (Rm, 1/2Cor e Gl). A eficácia atual e salvífica da morte/ressurreição de Jesus traz para o mundo um novo princípio, uma nova criatura (cf. Gl 6,15; 2Cor 5,17), a justiça de Deus, a sua graça presente em Cristo. Este é o centro de interesse do segundo passo da cristologia paulina;

3. Fl, Cl e Ef

A terceira fase da teologia paulina está relacionada com a permanência de Paulo na Ásia Menor, em Éfeso. A esta etapa pertencem as assim chamadas “cartas do cativeiro” (Fl, Cl e Ef). Esse terceiro estágio do pensamento paulino oferece-nos a síntese mais completa da cristologi-a, que recolhe e completa em um novo plano todos os materiais das construções anteriores;

Fica claro que o amor (a Cristo, à Igreja e às pessoas) é o centro da teolo-gia paulina. Para o apóstolo, o caminho mais excelente, que ultrapassa a tudo, na busca do bom maior é viver a plenitude do amor, como a virtude mais im-portante (cf. 1Cor 13,13) que o cristão deve cultivar em sua vida.

Jesus é o enviado do amor (cf. Jo 3,16) e o fundamento da boa notícia da salvação. Paulo intui essa realidade com seu coração, tornando-a manifesta em seus escritos, sua pregação e sua vida. Para ele é impossível viver o cristianismo sem o amor capaz de responder adequadamente aos problemas da vida e às necessidades das pessoas.

O amor é paciente, o amor é prestativo, não é invejoso, não se ostenta, não se incha de orgulho. Nada faz de inconveniente. Não procura seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê,tudo espera, tudo suporta.O amor ja-mais passará. (1Cor 13,4-8).

As viagens missionárias

Antes de subir aos céus, Jesus determinou a seus discípulos e apóstolos a necessidade de pregarem o evangelho a toda criatura (cf. Mt 28,19), batizando a todos que crerem e buscarem a salvação (cf. Mc 16,16), exortando-os a se tor-narem suas testemunhas em todo o mundo, até os confins da terra (cf. At 1,8). Estava estabelecida a ruptura ideológica com o judaísmo. A Igreja sobrepunha-se à sinagoga.

Paulo, mesmo não sendo um apóstolo da primeira hora, uma vez que não conheceu pessoalmente a Cristo, logo assumiu em seu ministério a urgência de anunciar o evangelho universalmente a toda criatura. Coerente com sua vocação de enviado, ele iniciou suas viagens, pregando a Palavra de Deus, dando testemunho do ressuscitado e fundando comunidades cristãs.

Primeira viagem (45 a 48 d.C.)

Partiu de Antioquia, foi a Chipre, Panfília, Licaônia (cf. At 13, 1–14,28; 15,1-19; Gl 2,1-10) pregando o Caminho e fundando igrejas. Foram per-corridos aproximadamente mil quilômetros (o equivalente à distância en-tre Porto Alegre e São Paulo);

Segunda viagem (50 a 53)

Da Licaônia foi a Trôade, Macedônia (Filipos e Tessalônica), Atenas, Co-rinto, retornando a Antioquia, via éfeso (cf. At 15,36-41; 18,22). Neste pe-ríodo escreveu 1/2Ts e confirmou pessoas e comunidades na fé. A viagem durou três anos e foram percorridos por volta de mil e quatrocentos qui-lômetros (Rio a Porto Alegre);

Terceira viagem (53 a 58)

Nesta terceira viagem Paulo visitou, pregou e fundou igrejas na Galácia, Éfeso, Macedônia e Corinto. Retornou a Jerusalém via Macedônia e Mile-to. No regresso a Jerusalém seria preso. Durante esta viagem de 1.700 quilômetros (distância de São Paulo a Salvador) foram escritas as “gran-des cartas” (cf. At 18,23; 21, 17; 23,31) Gl e 1Cor (em Éfeso), 2Cor (em Fi-lipos) e Rm (em Corinto). Após o regresso da terceira viagem, Paulo seria preso, quando escreveu (no ano 62) as famosas “cartas do cativeiro” (Ef, Fl, Cl e Fm).

As cartas de Paulo

As chamadas “epístolas paulinas” situam-se hoje, ao lado dos textos do evangelho como os documentos ético-religiosos mais importantes do cristianis-mo. Ao lê-las o cristão precisa atentar para alguns cuidados, como saber as realidades sociais, político-econômicas e religiosas daquele tempo. Quais os problemas que aparecem por detrás de cada texto. É preciso estar atento ao fato de as cartas serem eminentemente pastorais, isto é iluminam com fatos da vida de Cristo e com preceitos morais a caminhada das comunidades de todos os tempos.

É preciso, igualmente saber que algumas epístolas de Paulo foram escri-tas antes dos evangelhos. 1/2Ts por exemplo, foram escritas por volta dos anos 49-50, enquanto o evangelho mais antigo, o de Marcos, data do ano 56-60, a-proximadamente. A discussão sobre as cronologias bíblicas não é unânime.

A colocação das cartas de São Paulo no Novo Testamento, de Rm a Fm segue não uma ordem cronológica, como se verá adiante, mas prende-se a seu volume. A epístola aos romanos é a maior, enquanto a endereçada a Filemon, a menor. Séculos afora os biblistas e estudiosos das Escrituras levantaram dúvi-das quanto à autoria de Hb. Por esta razão, quando foi fechado o cânon do No-vo Testamento, ela ficou situada no fim das obras paulinas. A cronologia, como foi dito, não é muito exata, variando de autores, editoras e de confissão religio-sa. Vamos, portanto, à descrição das quatorze cartas.

Primeira carta aos Tessalonicenses – 1Ts (ano 49/50)

É a mais antiga carta de Paulo, endereçada aos cristãos de Tes-salonik (Salônica), na Grécia. Toda a epístola é construída na expectativa da se-gunda vinda de Cristo e anuncia a instauração dos tempos escatológicos que caracterizam a parusia.

“Esta é a vontade de Deus: a santificação de vocês! (4,3); Deus não nos chamou para a impureza, mas para a santidade (v. 7); Mas nós, que somos da luz, este-jamos sóbrios, revestidos da couraça da fé e da caridade, tendo por elmo a espe-rança da salvação” (5,8).

Segunda carta aos Tessalonicenses – 2Ts (50)

Trata-se de uma carta escrita um ano depois da anterior, na qual Paulo cumprimenta a comunidade por seu crescimento espiritual e para conso-lá-los diante de grandes perseguições. É um complemento da anterior, também de nítido caráter escatológico. Nesta carta, o apóstolo acalma a comunidade acerca do dia do Senhor (2,1-12).

“Mas nós devemos sempre dar graças a Deus por vocês, irmãos queridos, porque Deus os escolheu, como primícias, para a salvação, pela santificação no Espírito e pela verdadeira fé, à qual os chamou por meio do evangelho, para fazê-los al-cançar a glória de Nosso Senhor Jesus Cristo” (2,13s).

Por evangelho não se entende aqui o conjunto literário (Mt, Mc, Lc e Jo) que é posterior, mas o anúncio verbal da boa notícia.

Primeira carta aos Coríntios – 1Cor (55)

Escrita em Éfeso, tem 16 capítulos e 437 versículos, e é destinada aos ju-deus convertidos de Corinto. Aqui Paulo procura encarnar o evangelho nos problemas concretos da vida das comunidades, assediada pelo paganismo e pelos costumes dissolutos dos gregos. Paulo viveu dezoito meses em Corinto. Esta carta visa corrigir alguns erros da comunidade, como divisões, imoralidades, falsa de senso comunitário, desrespeito à Ceia do Senhor e indiferença aos carismas recebidos. Um dos textos mais emble-máticos da epístola se refere à cruz de Cristo:

“...nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para

os judeus e loucura para os pagãos” (1,23).

Segunda carta aos Coríntios – 2Cor (56)

Esta epístola é como que uma repetição da primeira, se bem que mais e-nérgica. Nela o apóstolo reitera, à mesma comunidade, os termos do es-crito anterior. Em todo o documento a dignidade, a devoção, a fé serena e a apaixonada consagração do apóstolo se destacam com intenso esplen-dor e abrandam o coração de todos, exceto alguns indiferentes ou de co-ração empedernido. A carta situa-se numa linha de admoestação na fé e de correção fraterna. Em suma, a mensagem central de 2Cor é sintetizada abaixo:

“E é por isso que eu me alegro nas fraquezas, humilhações,

necessidades, per-seguições e angústias, por causa de

Cristo. Pois quando sou fraco, aí é que sou forte” (12,9s).

Os estudiosos dos escritos de Paulo fazem referência a uma outra carta aos coríntios, a “epístola das lágrimas”, escrita entre a primeira e a se-gunda. Este documento teria sido extraviado.

Carta aos Gálatas – Gl (56/57)

Esta carta foi endereçada ao povo da região da Galácia (hoje território da Turquia), por onde Paulo passou em sua segunda viagem missionária (cf. At 16,6) e aí fundou comunidades. A epistola pode ser encarada como um “hino à liberdade cristã” e denota, de certa forma, a indignação do apósto-lo quanto a fatos contrários à doutrina cristã. Paulo sustenta que os cren-tes, tanto originários do judaísmo como do paganismo desfrutam de com-pleta salvação em Cristo. São justificados (3,6-9), adotados (4,4-7), reno-vados (4,6; 6,15) e feitos herdeiros de Deus segundo as promessas. A ver-dade é que Gl é a epístola mais mística de São Paulo.

“Em Cristo Jesus nem a circuncisão tem valor, mas a fé que age pela caridade” (5,6); “...mas já não sou eu que vivo, mas Cristo que vive em mim” (2,20); “somos herdeiros do Reino segundo a promessa” (3,29); “Cristo nos trouxe a libertação para que sejamos livres” (5,1); “tornemo-nos servos uns dos outros, pela carida-de” (5,13).

Carta aos Romanos – Rm (58)

A primeira das “grandes cartas” difere das demais, uma vez que é endere-çada a uma comunidade que não foi fundada por Paulo, onde o apóstolo nunca esteve e de cuja fé ele não tinha a comprovação suficiente (cf. 1,10s). É uma epístola que, embora de difícil interpretação (cf.2Pd 3,16), sempre foi muito lida entre os cristãos.

“O evangelho é a força de Deus para a salvação daquele que

crê” (1,16).

Carta aos Efésios – Ef (62)

Esta, junto com Fl, Cl e Fm compõe o elenco das chamadas “epístolas do cativeiro”. Quase no fim de sua vida, Paulo esteve preso em Roma. Foram duas etapas de cativeiro: um mais brando e outro em cela. No ano 64 Ne-ro Cláudio colocou o cristianismo na ilegalidade. O apóstolo ficou encar-cerado de 66 até sua morte, situada entre julho de 67 e junho de 68 , conforme escreveu Euzébio de Cesárea, em Chronicon. Em cada uma das “epístolas do cativeiro” há informações dessa situação (cf. Ef 3,1; 4,1; 6,20; Fl 1,7.13s; Cl 3,4; Fm 1,9.10.13).

A carta aos cristãos de Éfeso tem o caráter de circular que visa a obser-vância da doutrina cristã. Tem seis capítulos e 153 versículos. Divide-se em duas partes: a) dogmática (1–3) e b) moral (4–6). Na primeira, fala da misericórdia de Deus e no mistério da salvação que reúne judeus e pa-gãos na única Igreja, a família de Deus.

A segunda parte da epístola vem como uma exortação aos leitores, no sentido de manterem uma vida digna, fiel à vocação, onde a unidade da Igreja, no Espírito Santo, deve ser preservada a despeito da diversidade de dons e carismas (4,1-16). Para tanto é preciso despojar-se dos valores antigos e revestir-se do homem novo em Cristo (4, 17-24).

“Para isto importa reunir, na plenitude em Cristo, todas as

coisas, o que está no céu e o que está na terra”

(1,10); “Realmente somos obra sua, criados em Jesus Cristo

para obras boas, que Deus preparou para caminharmos

nelas” (2,9s); “...revistam-se do homem novo, criado

segundo Deus, na justiça e na santidade que vem da

Verdade” (4,24).

Em Ef, fiel ao ensinamento de Jesus, Paulo mostra à comunidade não mais aquela imagem de um Deus-Javé distante e até aterrorizante, mas de um Pai amigo, rico em misericórdia:

Antigamente também nós andávamos como eles (os desobedientes), submetidos aos desejos da carne, obedecendo aos caprichos do instinto e da imaginação. Como os outros éramos, por natureza, merecedores da ira de Deus. Mas Deus, que é rico em misericórdia, pelo grande amor com que nos amou, deu-nos a vida juntamente com Cristo, quando estávamos mortos por causa de nosso pecado. Vocês foram salvos pela graça! (2,3ss).

Carta aos Filipenses - Fl (62)

Escrita como as outras, em 62, esta carta possui quatro capítulos e 155 versículos. É dirigida aos cristãos que formam a comunidade cristã em Filipos, cuja Igreja perseverou na fé, afeiçoada a Paulo, e ocupou impor-tante lugar em seu coração. Esta comunidade foi fundada por ocasião da “segunda viagem missionária” (49/50), sendo a primeira Igreja fundada na Europa (At 16,12-40); era formada por uns poucos judeus, alguns prosélitos e muitos pagãos (2,15s; 3,3s; 4,8s).

A carta aos Filipenses é conhecida como a “epístola da alegria cristã”, embora escrita por um homem velho, que estava preso e que sabia que ia morrer.

“Alegrem-se, portanto, no Senhor!” (4,1).

Embora mais homilética que teológica, a carta aos filipenses, na qual se destaca “hino cristológico” (2,6-11) que abordaremos mais adiante, possui alguns pontos importantes para o aprendizado da doutrina:

“De fato, sei que isto me resultará em salvação, pela oração de vocês e pelo so-corro do Espírito de Jesus Cristo, segundo a expectativa e esperança que tenho, de que em nenhuma coisa serei confundido, mas que, com toda a confiança, como sempre, também agora está Cristo glorificado no meu corpo, quer pela vi-da, quer pela morte. Com efeito, para mim o viver é Cristo e morrer é lucro” (1,19ss); “Jesus humilhou-se a si mesmo, fez-se obediente até a morte, e morte de cruz” (2,2); “Nós, porém, somos cidadãos do Reino, de onde também espera-mos ansiosamente o salvador, nosso Senhor Jesus Cristo” (3,20); “Tudo posso naquele que me dá forças” (4,13).

Desta epístola destacam-se alguns temas universais: a) a união fraterna em Cristo (1,27–2,4); b) a fonte da alegria (4,4-7); c) Jesus humilde, sofre-dor e exaltado (2,6-11); d) a luta contra o retrocesso (3,2s); e) a esperança cristã (1.19-26).

Carta aos Colossenses – Cl (62)

O povo de Colossos dispensava exagerada atenção à observância de ritos e cerimônias, neomênias (festa da lua nova) e sábados judaicos (2.16). A-lém disto, impunham preceitos alimentares (2,16.21) e ascéticos (v.23) e dedicavam-se à adoração de anjos (v.18). Estavam contaminados por he-resias de fundo judaico, helenista, gnóstico e pagão. Preocupado com es-ses desvios, Paulo se ocupa em apresentar-lhes o Cristo incomparável, mostrando-lhes que o Senhor Jesus é a cabeça da Igreja (1,13-23).

“Tudo o que vocês fizerem em palavras e obras, façam-no em nome do Jesus Cristo, dando por ele graças a Deus” (3,17); “Sobretudo tenham amor (caridade) entre vocês, pois o amor é o vínculo da perfeição (v.14); “...e aí não haverá mais grego nem judeu nem bárbaro (...) mas somente Cristo será tido em todas as coi-sas” (v. 11).

Carta a Filêmon – Fm (62)

Esta é a epístola paulina mais curta: apenas 25 versículos, escrita a Fi-lêmon, um convertido de Colossos (cf. Cl 4,9.17). A despeito de ser quase um bilhete pessoal, a carta trata a respeito de Onésimo, um escravo de Filêmon que acompanhou (fugiu?) Paulo. A epístola é vista como um do-cumento de interesse eclesial, pois é dirigida a Filêmon e à Igreja que se reúne em sua casa (v.2), e narra o batismo do escravo que, pela união com Cristo, torna-se livre do pecado e – a pedido de Paulo – da escravi-dão. Na carta Paulo prega um novo tipo de relacionamento entre os ho-mens, baseado no amor (v.5.6.9.16) no qual a liberdade é um bem conse-qüente.

Primeira carta a Timóteo – 1Tm (63)

Desde o princípio do século XVIII as cartas a Timóteo e a Tito têm sido chamadas de “epístolas pastorais”, o que indica a natureza prática e uni-versal do assunto nelas ventilado. Estas três cartas formam um bloco homogêneo e se apresentam como instruções espirituais escritas por Pau-lo a dois íntimos colaboradores seus.

1Tm foi escrita provavelmente na Macedônia, no intervalo entre a primei-ra e a segunda prisão de Paulo. Tem seis capítulos e 113 versículos. Es-sas cartas pastorais, em geral não se destinam com exclusividade a uma comunidade, mas as pessoas individualmente, incumbidas de governar igrejas cristãs. Segundo escritos da Igreja primitiva, Timóteo teria sido um companheiro de Paulo na segunda e na terceira viagem missionária. Nascido em Listra, filho de um grego pagão e de Eunice, uma judia. A tradição venera Timóteo como bispo de Éfeso.

O grande contributo de 1Tm situa-se na descrição histórica da organiza-ção da Igreja. Paulo insiste com Timóteo para que ele anuncie a verdade (1.3-20), organize as celebrações do culto (2,1-15) e seja pastor da Igreja (3,1–6,2). Aparecem também algumas diretrizes mais particularizadas so-bre as heresias (4,6-16) e os diferentes tipos de solidariedade devidos aos cristãos (5,1–6,2).

Nesta epístola observa-se a insistência para que Timóteo desempenhe sua missão com coragem e fé mediante a imposição das mãos (ordenação?).

“Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores” (1,15); “por isso colocamos nos-sa esperança no Deus vivo, salvador de todos os homens, sobretudo dos que têm fé” (4,10); “...pela perseverança virá a salvação” (4,16).

Segunda carta a Timóteo – 2Tm (64)

A segunda carta tem mais ou menos as mesmas características da pri-meira. Foi escrita em 64, provavelmente em Roma, pouco tempo antes da morte do apóstolo. Tem quatro capítulos e 83 versículos.

Aqui, ao contrário de outras cartas, Paulo mostra-se abatido, anunciando que seu fim está próximo (4,6). Sente-se abandonado pelos amigos (exceto Lucas) e lamenta que ninguém o defendeu no tribunal (cf.1,15; 4,10s-16).

É uma carta cristológica:

“Mas a Palavra de Deus não está algemada. É por isto que tudo suporto por causa dos escolhidos, para que também eles alcancem a salvação que está em Jesus Cristo, com a glória eterna. Estas palavras são certas: se com ele morre-mos, com ele viveremos; se com ele sofremos, com ele reinaremos; se nós rene-gamos, também ele nos renegará. Se lhe formos fiéis, ele permanece fiel, pois não pode renegar a si mesmo” (2,9-13).

A carta traz a salvação na essência de sua pregação:

“A salvação está em Jesus Cristo. Com efeito, a graça de Deus se manifestou pa-ra a salvação de todos os homens” (2,10s); “As Sagradas Escrituras têm o poder de comunicar a sabedoria que conduz à salvação pela fé em Jesus Cristo” (3,5); “O Senhor me libertará de toda obra maligna e me levará salvo para o Reino ce-leste” (4,18).

É pastoral:

“Proclame a Palavra; insista no tempo oportuno e importuno, advertindo, repro-vando e aconselhando com toda paciência e doutrina” (4,2).

É escatológica:

“Jesus Cristo, que há de vir a julgar os vivos e os mortos” (4,1).

Revela sua confiança na Palavra de Deus:

“Quanto a você, permaneça firme naquilo que aprendeu e aceitou como certo; você sabe de quem aprendeu. Desde a infância você conhece as Sagradas Escri-turas; elas têm o poder de lhe comunicar a sabedoria que conduz à salvação pe-la fé em Jesus Cristo. Toda a Escritura é inspirada por Deus e é útil para ensi-nar, para refutar, para corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito, preparado para toda a boa obra” 3,14-17).

Carta a Tito – Tt (65)

A epístola a Tito tem um tamanho reduzido. São só três capítulos e 46 versículos. Foi escrita em Roma. Tito era um jovem convertido (cf. Gl 2,3), de origem grega, natural de Antioquia. Na ocasião ele tinha um mandato de colocar em ordem a Igreja em Creta. Nos escritos de Paulo já se notam alguns vestígios da autoridade e sucessão apostólicas, quando Tito é exortado a conservar e transmitir intacto o depósito da fé (cf. 2,1), a com-bater heresias (cf. 1,10-13), a zelar pela vida cristã (cf. 2,1-10) e escolher os futuros ministros (cf. 1,5-9). Também nesta carta é clara a referência paulina ao projeto de salvação que Deus instaura através de Cristo:

“...aguardando a esperança bem-aventurada e a vinda gloriosa do grande Deus e Salvador nosso, Jesus Cristo” (cf.2,13); “Ele (Deus) salvou-nos, não por causa dos atos legais (a obrigatoriedade da esmola, do jejum e da oração) mas porque, por sua misericórdia fomos lavados pelo poder regenerador e renovador do Espí-rito Santo (o batismo) que ele ricamente derramou sobre nós, por meio de Jesus Cristo nosso salvador, a fim de que fôssemos purificados pela sua graça e nos tornássemos purificados pela sua graça e nos tornássemos herdeiros da espe-rança da vida eterna” (3,4b-7).

Carta aos Hebreus – Hb (ano 67)

Esta carta, não segue a ordem de volume que caracteriza as obras de Paulo por uma razão muito simples: sua autenticidade, pelo menos no primeiro século era contestada. Embora o contexto moral da epístola pos-sua traços judaicos, seu estilo de escrita é grego. Existem correntes que a negam como obra paulina, e outras entendem tratar-se de manuscritos paulinos que teriam sido enviados, após sua morte, por escribas ou discí-pulos do apóstolo. Esta carta possui treze capítulos e 303 versículos.

O fato é que a carta já existia no final do primeiro século, pois é citada em 97 por Clemente Romano. A verdade é que ela só veio se tornar canônica em 1546, no Concílio de Trento. O documento é também canônico nas Bíblias protestantes.

A cristologia de Hb é muito bem elaborada. Cristo aí aparece nitidamente como Deus, preexistente à Criação (cf. 13,8) e como homem verdadeiro (2,10-15). Como Deus que é, Cristo é digno de adoração dos anjos (1,6); é como o resplendor que procede a glória do Pai (1,3).

“E ele (Jesus), levado à perfeição (sua missão como sacerdote e vítima é consu-mada) tornou-se, para aqueles que o seguem, princípio de salvação eterna, ten-do recebido de Deus o título de sumo-sacerdote, segundo ordem de Melquisedec” (5,9s). “Por isso, ele é capaz de salvar aqueles que, por meio dele, se aproximam de Deus, visto que ele vive para sempre para interceder por eles” (7,25).

A verdade é que Hb traz consigo uma perfeita exegese do Antigo Testa-mento e tem como destinatários, em primeiro lugar, os cristãos de origem judaica, que viviam nas regiões mais remotas da Ásia Menor. Seu teor re-fere-se a problemas existentes no seio das comunidades, como enfraque-cimento da fé, próprio da “segunda geração” crista, capaz de levar à in-credulidade, indiferença religiosa e até apostasia (cf. 3,12ss).

Ao afirmar que Jesus é superior a Moisés (cf. 3,1-6) Paulo estabelece uma ruptura entre o Antigo e o Novo Testamento; entre o judaísmo e o cristianismo. Tal ruptura seria, segundo uma boa parcela da exegese cristã, a separa-ção em duas partes, ocorrida no véu do templo, na hora da morte de Je-sus (cf. Mt 27,51). Em seu zelo apostólico e pastoral o apóstolo pergunta:

“Como obteremos a salvação anunciada pelo Senhor se nos

desviarmos dos en-sinamentos recebidos?” (2,3).

Uma vez conhecida a obra escrita de Paulo, entendemos que seja mais fácil viver de forma aprofundada nosso ser-Igreja, despertando nosso senso missionário e conhecendo a universalidade da oferta da salvação, tentativa que, sem o conhecimento das epístolas, seria uma temeridade, ou mesmo um traba-lho com bases doutrinárias insuficientes,

Isto equivale a dizer que a cartas de São Paulo trazem consigo todo o fundamento teológico da salvação que ele vi-veu, pregou e legou eternamente à Igreja de Jesus Cristo. Por este motivo, as epístolas de Paulo constituem, não só para o cristianismo, mas para todo o pensamento ocidental, um ponto alto capaz de reunir em si a antropologia das raças envolvidas no processo, as culturas que se reuniram sob a doutrina, bem como as características históricas de uma época. O pensamento ocidental – nunca é demais repetir – seria bem mais pobre se não possuísse as razões filo-sóficas, as construções literárias e a teologia mística de São Paulo.

Os Hinos Cristológicos de Paulo

Sempre que se menciona a expressão “hinos cristológicos”, seja em pre-gações, retiros, cursos ou qualquer tipo de auditório, é comum se escutar inda-gações a respeito do que seria um “hino cristológico”. Ora, como o próprio nome está a dizer, trata-se de um hino, em geral de louvor e glorificação ao Cristo ressuscitado.

No Novo Testamento existem diversos hinos com essa forma (cf. 1Pd 3,12, Ap 5, etc.). No entanto, os mais famosos hinos são oriundos da produção literário-teológica de São Paulo, a saber: Filipenses 2,5-11; Colossenses 1,13-20; Ef 1,3-14. Em determinado ponto de suas cartas, enunciadas acima, o a-póstolo se afasta do assunto central para elaborar uma doxologia (um hino de glorificação) a Cristo vivo e ressuscitado. Hino cristológico é, portanto, um apos-to litúrgico, no meio de um documento. No nosso caso, um texto que é inserido dentro de outro. Especificamente, uma colocação doxológica, como que um po-ema de ação de graças e glorificação, no meio de uma carta.

1. Filipenses

A maioria dos estudiosos afirma que o hino cristológico de Fl 2 é uma a-daptação que Paulo fez de um hino antigo, conhecido pela Igreja primitiva. Nes-te texto, o apóstolo mostra a seus leitores o verdadeiro teor do “evangelho da cruz”, que ressalta a humildade de Cristo. Deus que se fez homem, mas não reivindicou para si nenhum privilégio por conta de suas origens. Não obstante, Jesus se colocou a serviço de todos. Em face dessa kénossis (aniquilamento), Deus o elevou como Senhor da história.

O conteúdo deste hino é regido pela contraposição de humilhação e exal-tação. O autor alude à condição divina de Jesus, mas afirma que ele se aniqui-lou voluntariamente.

Tenham entre vocês os mesmos sentimentos que Cristo Jesus teve: Ele, subsis-tindo na condição de Deus, não pretendeu reter para si ser igual a Deus. Mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo, tornando-se solidá-rio com os homens. E, apresentando-se como simples homem, humilhou-se, fei-to obediente até a morte, até a morte da cruz. Pelo que também Deus o exaltou e lhe deu o Nome que está sobre todo nome. Para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho de quantos há no céu, na terra, nos abismos. E toda língua procla-me, para glória de Deus Pai, que Jesus Cristo é o Senhor (Fl 2,5-11).

Para J. Comblin existe no texto quatro “degraus” de rebaixamento: a) homem, b) escravo, c) crucificado e d) morto. Cristo desceu os quatro degraus. Chegou, como se costuma dizer “ao fundo do poço”. Fixado na cruz, maldito no julgamento dos homens, aparentemente abandonado por Deus, Cristo estava realmente vazio de qualquer dignidade.

O tema principal deste hino é a manifestação, em Jesus, do poder de Deus. Desta forma, no oposto ao rebaixamento, ocorrem quatro movimentos de subida: a) Deus o exaltou; b) deu-lhe o nome; c) os joelhos se dobram à sua pes-soa, em todo o universo; d) todas as línguas proclamem sua divindade. Fica bem claro observar, neste texto, a intenção de Paulo, que quis expor nesse duplo momento de descida e subida toda a novidade do evangelho. Ao cristão é salutar enxergar nesse hino toda a revelação de Jesus.

Na condição de escravo Jesus negou-se a reivindicar sua divindade. Ao contrário, esvaziou-se e tornou-se obediente ao projeto do Pai. A cruz é uma morte de escravo, de banido, de pessoa rebaixada. Tudo isso Jesus assumiu, como forma pedagógica de demonstrar a humildade que deve ser a bandeira do cristianismo.

Por causa dessa obediência de escravo, Deus o exaltou. Mais do que isto, deu-lhe – não um nome qualquer, mas o nome que está sobre todo nome hu-mano. Que nome é este? Parece irrefutável tratar-se do nome do próprio Deus. E o nome de Deus, desde o começo é senhor, o Kyrios.

Ora, diante do Senhor nada mais resta ao Universo (no céu, na terra e debaixo da terra) senão dobrar os joelhos, em atitude de adoração e proclamar que Jesus, aquele que o Pai exaltou, é o Senhor. Trata-se da confissão de fé dos primeiros cristãos. Ao cantar o hino, a comunidade se associa à criação inteira. Esta é a lição deste hino.

2 . Colossenses

Este é um hino que celebra o senhorio universal de Cristo, contendo uma introdução solene que convida ao louvor (12-14), e duas estrofes que falam da soberania de Cristo (15-20), falando dele como Senhor da criação e da reconciliação. Nesse contexto, os vv. 15-17 apontam para uma seção transcendente enquanto os vv. 18-19 indicam a seção eclesial.

O hino, que começa como uma alusão cristológica à Sabedoria do Antigo Testamento relatada em textos sapienciais (Pv 8,22-26; Jó 28, 12-23; Eclo 24). Em seguida a cristologia de Paulo se bifurca em dois ramos: o papel de Cristo na criação bem como sua participação na ressurreição. Aqui ele é apontado como primogênito das criaturas bem como dos ressuscitados. É o texto paulino que melhor explicita a preexistência de Cristo. Ele existia desde o princípio e, por esta razão, serviu de paradigma para toda a criação.

Ele é a imagem do Deus invisível, primogênito de toda criatura; que nele foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis: tronos, dominações, principados, potestades; tudo foi criado por ele e para ele.

Ele é antes de tudo e tudo subsiste nele. Ele é a cabeça do corpo da Igreja; ele é o princípio, o primogênito dos mortos, para ter a primazia em todas as coisas. Aprouve a Deus fazer habitar nele a plenitude e por ele reconciliar tudo para ele, pacificando pelo sangue de sua cruz todas as coisas, assim as da terra como as do céu. (1,13-20)

Após mencionar as “potências invisíveis” (tronos, dominações, principados e potestades) o autor, para tranqüilizar o espírito das comunidades, que viam nelas uma manifestação ameaçadora, coloca-as sob a subordinação de Cristo. A cristologia paulina procura manter-se à distância de quaisquer alu-sões mitológicas. A mensagem que subjaz dessa subordinação é o Senhorio de Cristo, como vencedor e Senhor da história. Este é um dos textos mais claros e explícitos sobre o papel de Cristo na criação.

O hino termina falando numa reconciliação universal, sob o fulcro do sangue de Jesus e da cruz do suplício. A ressurreição de Cristo se apresenta, e Paulo é enfático nesse aspecto, como uma nova criação, perfeita, definitiva e abrangente. É o pléroma (plenitude) da criação. Voltando ao tema, o que significa a reconciliação universal? O sangue derramado na cruz situa-se no centro do papel reconciliador de Cristo.

Ao ressuscitar, ele instaura a união da cabeça com o corpo, vitalizando a idéia da Igreja-comunidade que se instaurou a partir dali. A Igreja (visível) está ligada ao mundo invisível pela ressurreição. É aí que ocorre a reconciliação definitiva, tornando-a um sinal de salvação.

3. Efésios

O hino cristológico constante na epístola aos efésios (1,3-14) é visto pela maioria dos biblistas como um dos trechos de mais difícil compreensão de todo o Novo Testamento. É, como afirma Luís Alonso Schökel, se o autor respirasse fundo para pronunciar sua complexa bênção, num só fôlego, numa única frase gramatical. O texto ora em estudo ocorre como um “bendito” (no grego, eulóguitos), algo como pertencente ao gênero da ação de graças, fato bem freqüente na liturgia judaica. Neste hino, o autor estabelece uma forma de bênção (“bendito seja...”) agradecendo a Deus os dons e graças recebidas.

Bendito seja o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo que dos céus nos abençoou com toda a bênção espiritual em Cristo. Assim, antes da constituição do mundo, nos escolheu em Cristo, para sermos em amor santos e imaculados a seus olhos, predestinando-nos à adoção de filhos por Jesus Cristo, conforme o beneplácito de sua vontade, para louvor da glória de sua graça com que nos a-graciou em seu Bem-amado.

Nele temos a redenção pela virtude de seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a riqueza de sua graça, que derramou profu-samente em nós, com toda a sabedoria e inteligência. Deu-nos a conhecer o mis-tério de sua vontade, conforme o beneplácito que em Cristo se propôs, a fim de realizá-lo na plenitude dos tempos: unir sob uma cabeça todas as coisas em Cristo, tanto as que estão no céu como as que estão na terra. Nele, em quem fomos escolhidos herdeiros, predestinados que éramos segundo o desígnio da-quele que faz todas as coisas de acordo com a decisão de sua vontade, para sermos nós o louvor de sua glória, todos quantos já antes esperávamos em Cristo. Nele também vocês, que escutaram a palavra da verdade, o Evangelho de nossa salvação, no qual crestes, foram selados com o selo do Espírito Santo prometido. É este o sinal de nossa herança para o pleno resgate de sua proprie-dade, para o louvor de sua glória (1,3-14).

O hino de Ef é cristológico, mas também trinitário. Nele há temas que têm origem no Antigo Testamento, como eleição (escolha), filiação, resgate, sabedo-ria, herança como algo decidido pela vontade de Deus, desde o princípio. O bri-lhante escrito, que é a carta aos efésios começa com um hino. Não se trata de um hino comum, mas uma brilhante doxologia cristológica, repleta de afirma-ções teológicas de profundidade ímpar. Ela nos mostra que o louvor não deve ser raso, superficial. Pode trazer grandes ensinamentos que fazem parte do pro-cesso da pedagogia das verdades cristãs. Embora seja chamado de “hino cristológico”, o texto mostra a harmonia das pessoas da Trindade, trabalhando jun-tas. No versículo 3 o foco é o Pai. No versículo 5, é o Filho. E no versículo 13, é o Espírito. É um hino que mostra a obra da Trindade. Uma boa pista para nós. Este hino pode e deve ensinar as grandes verdades da fé cristã, e não apenas experiência humana. Deve ser ensino e mensagem.

Se, como afirmam alguns especialistas, Ef era, na realidade, uma carta circular enviada às igrejas, a questão se torna mais profunda. Paulo está saudando os cristãos com uma bênção da liturgia judaica, cristianizando-a. A expressão está inserta em um cântico de louvor. E que riqueza teológica! O trato de Deus agora é com a Igreja. Ela é o povo de Deus. Ela canta sua eleição e os propósitos divinos para ela. Louvor não é mero misticismo, mas uma declaração de que temos um novo relacionamento com Deus.

São Paulo abre o hino com a frase “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”. A expressão reconhece que é em Cristo que estão todas as bênçãos divinas, e que Jesus Cristo é o Senhor. Este é o valor cristológico deste hino.

CONCLUSÃO

Chamado de “apóstolo dos gentios” São Paulo se destaca por ter rompido aquele círculo vicioso meio hermético da profecia judaica, levando o evangelho a todos os povos, “até os confins da terra”. Em Paulo o que era regional se estende para o mundo, transformando o que era particular em um plano universal. Nesse aspecto, a escatologia paulina nos revela, de forma magistral, porém simples, como é o céu, o ápice das realidades futuras:

O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o

coração do homem não percebeu, foi isso que Deus preparou

para aqueles que o amam (1Cor 2,9).

São Bernardo, de Claraval († 1153), o grande “doutor mariano”, referindo-se à mãe de Jesus disse que “nunca se falará o suficiente a respeito de Maria” tamanha a riqueza que envolve seu papel na história da salvação. O mesmo se poderia dizer a respeito de Paulo. Se analisarmos sua pessoa, sua obra e seu fervor missionário, veremos que sempre vai ficar faltando dizer alguma coisa. Desta forma, é emocionante fazer uma leitura na vida do apóstolo e constatar seu carisma, sua fé e, sobretudo seu amor a Cristo e à Igreja.

Paulo, em sua pregação enfatiza a necessidade de uma postura missionária a fim de que o processo de evangelização logre eficácia. Para ele é vital que a proclamação da Boa Notícia seja total, abrangente, profunda e orgânica:

Como invocarão, pois, aquele em quem não creram? Ou como

crerão naquele de quem nunca ouviram falar? E como ouvirão

sem haver quem lhes pregue? E como pregarão eles se não

forem enviados? (Rm 10, 14s).

No contexto da pregação ele ensina que o cristão é justificado quando, pe-la fé se une a Jesus Cristo, no qual vai encontrar a justiça de Deus (cf. Fl 3,8s). Quanto à justificação, Deus é quem, por sua misericórdia, declara justo o peca-dor, já que este não pode se justificar por si mesmo (cf. Sl 143,2). Estando preso, com Silas, em Filipos, é milagrosamente libertado por um anjo. Vendo essa maravilha, o carcereiro indaga o que deve fazer para ser salvo. A resposta de Paulo é um referencial para a busca dos cristãos de todos os tempos;

Crê no Senhor Jesus e serás salvo tu e tua família (At 16,31)

É através da fé que nos vem a confiança na salvação. Na consecução des-se processo, segundo Paulo, Jesus entregará toda a realeza ao Pai (cf. 1Cor 15,24). Os santos que buscaram a salvação, peregrinos na terra (cf. Hb 13,14), vivendo aqui, mas como “cidadãos do Reino” (Fl 3,20) receberão a posse do rei-no como herança (cf. Ef 5,5), transformando seus corpos-carne em corpos-glória (cf. 2Cor 3,28; Fl 3,21). Esta é a fé que professamos e por ela haveremos de ser salvos. Essa esperança não confunde (cf. Rm 5,5; 10,11).

Combati o bom combate, terminei a minha corrida, conservei a

fé. Agora só me resta a coroa da justiça que o Senhor,

justo Juiz, me entregará naquele Dia; e não somente para

mim, mas para todos os que tiverem esperado com amor a sua

manifestação (2Tm 4,7s).

Este assunto foi desenvolvido em um curso ministrado em vários institutos cristãos em forma de “PowerPoint” em 2008 e 2009.

Antônio Mesquita Galvão (kerygma.ag@terra.com.br) é um Teólogo leigo, biblista e Doutor em Teologia Moral. Escritor, autor, entre outros, dos livros “As obras da fé – Reflexões sobre a carta aos romanos” (Ed. Ave-Maria, 1993) e “A salvação no contexto da teologia paulina” (Ed. Ave-Maria, 1995) que privilegiam a temática paulina. Na mesma linha, está em fase de conclusão e impressão: “Hinos Cristológicos”. Que sairá até setembro 2009.