PEDAGOGIA SURDA X PEDAGOGIA REVOLUCIONÁRIA
FERREIRA, ADEMILSON DIAS [1]
SOUZA, FABRÍCIA BATISTA DE [2]
CRUZ, GABRIELA FRAGA GARCIA DA [3]
SANTOS, ZILMA DE LOURDES GASPARINI [4]
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo analisar através das lentes teóricas de Dermeval Saviani a Pedagogia Surda para além da pedagogia da essência e da existência e, ainda verificar na obra Escola e Democracia os elementos teóricos e metodológicos que possibilitam a realização de inferências com a pedagogia surda (capítulo 3). Como também descrever a concepção e a perspectiva teórica e metodológica da pedagogia surda numa perspectiva sócio-histórica, lingüística e cultural. Este trabalho foi desenvolvido através de pesquisa bibliográfica, tomando-se, para tanto, como referência básica os livros: Escola e Democracia de Dermeval Saviani e A surdez: um olhar sobre as diferenças de Carlos Skliar e, como suporte bibliográfico complementar, pesquisas em textos de internet, outros livros, revistas científicas, anais e outros. Tal temática se justifica pela quantidade de surdos residentes no município de Linhares e ainda pela historicidade da educação dos surdos, suas lutas e conquistas frente a uma pedagogia de caráter corretivo, normalizador, homogeneizador, que tenta, a todo custo, negar a existência da comunidade surda e seus artefatos histórico-culturais.
PALAVRAS-CHAVE: Pedagogia surda, Pedagogia revolucionária, Educação especial, Inclusão, língua de sinais.
ABSTRACT
The present article has as objective to analyze through the theoretical lenses of Dermeval Saviani the Deaf Pedagogy it stops beyond the pedagogy of the essence and the existence and, still to verify in the workmanship SCHOOL AND DEMOCRACY the theoretical and metodológicos elements that make possible the accomplishment of inferences with the deaf pedagogy (chapter 3). As well as, to describe the conception and the theoretical and metodológica perspective of the deaf pedagogia, in a partner-historical perspective, linguistic and cultural. This work was developed through bibliographical research, we take, for in such a way, as basic reference for this text the books: School and Democracy of Dermeval Saviani and the Deafness: one to look at on the differences of Carlos Skliar and, as complementary bibliographical support, research still, texts of Internet, other books, scientific magazines, annals and others. Such article if still justifies for the amount of resident deaf people in the city of Linhares and for the historicidade of the education of the deaf people, its fights and conquests front to a pedagogy of corrective, normalizador, homogeneizador character, that it tries, all the cost, to deny the description-cultural existence of the deaf community and its devices.
KEY WORD: Deaf pedagogy, Revolutionary Pedagogy, Special Education, Inclusion, language of Signs.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo originou-se na inquietação quanto à pedagogia aplicada sobre o aluno surdo, uma vez que a mesma é pensada e criada por e para ouvintes (não surdos), tornando, assim, um caráter corretivo, normalizador, homogeneizador que tenta mascarar a surdez.
Objetiva-se, então, analisar através das lentes teóricas de Dermeval Saviani a Pedagogia Surda para além da pedagogia da essência e da existência e, ainda, verificar na obra Escola e Democracia os elementos teóricos e metodológicos que possibilitam a realização de inferências com a pedagogia surda (capítulo 3). Como também, descrever a concepção e a perspectiva teórica e metodológica da pedagogia surda, numa perspectiva sócio-histórica, lingüística e cultural.
Por ser uma pesquisa bibliográfica têm-se como referência básica para este texto os livros: Escola e Democracia, de Dermeval Saviani e A surdez: um olhar sobre as diferenças, de Carlos Skliar e, como suporte bibliográfico complementar, pesquisas em textos de internet, outros livros, revistas científicas, anais e outros. Este trabalho justifica-se pela quantidade de surdos residentes no município de Linhares e ainda pela historicidade da educação dos surdos, suas lutas e conquistas.
A opção pelas obras supracitadas, como base teórica, se deve ao fato de as mesmas apresentarem críticas concisas quando à pedagogia e a marginalidade/exclusão, frente à desvalorização da historicidade do sujeito.
Saviani (1997) explana sobre as diferentes teorias de educação que tentaram dissipar o problema da marginalidade, e, propõe uma pedagogia que vai além das pedagogias: a) tradicional, que identificava a marginalidade/exclusão com ignorância; b) da escolanovista, que, por sua vez afirmava que o marginalizado era o anormal; e, ainda, c) da tecnicista, que encarava o marginalizado como o incompetente ou improdutivo. A essa pedagogia chamou de: Pedagogia Revolucionária.
Skliar (2005) discute a respeito dos olhares sobre as diferenças, sobre o movimento de tensão e ruptura entre a educação de surdos e a educação especial; reflexão sobre o ouvintismo como ideologia dominante; reflexões sobre o fracasso educacional do surdo; reflexão sobre o consenso das potencialidades educacionais dos surdos, dentre outras reflexões.
Analisar-se-á também sobre a história da educação dos surdos, suas lutas e conquistas. Mostraremos através do relato de um (a) surdo (a) as diferentes facetas da educação proposta aos surdos, suas angústias que acarretam problemas psíquicos, por causa da negação da identidade-cultural e da experiência visual deste sujeito. Para então, refletir sobre os objetivos propostos neste artigo.
2 UM POUCO DE HISTÓRIA
Vários personagens envolveram-se com a educação dos surdos, como por exemplo, Ponce de Leon, século XVI, Charles Michel de L’éppé, século XVIII, Thomas Hopkins Gallaudet, século XIX, dentre tantos outros. O primeiro, de acordo com registros de seus discípulos, foi o inventor do alfabeto manual, que o utilizava junto a alguns sinais, com esforço centrado na escrita e na fala. O segundo, já no século XVIII, com a permissão do Rei Luiz, fundou a primeira escola pública para surdos em Paris, França; o último fundou uma instituição de ensino para surdos nos Estados Unidos da América, esta instituição, atualmente, é a Gallaudet Universit, situada em Washington. Todos os esforços centravam-se no ensino da fala (FENEIS, 2005).
Na Alemanha Samuel Heinick, inaugura o método de oralização e funda a primeira escola pública baseada no método oral (1750), rejeitando a língua de sinais. O inventor do (patenteador) telefone, Alexander Graham Bell, abre no Canadá uma escola oralista e defendia “[...] o ensino da fala e que o surdo não poderia casar entre si, nem lecionar para outros surdos” (FENEIS, 2005, p. 4).
Lopes (2005) critica tais ações afirmando que:
As representações realistas sobre a ‘normalização
do surdo’ através da fala, produzidas, também pela
escola, confortam os pais de surdos com a esperança
da fala e com a possibilidade de as pessoas não
perceberem a surdez (LOPES, 2005, apud SKLIAR,
2005, p. 111).
Ströbel (2007), corroborando com Lopes, diz que:
[...] quanto mais insistem em colocar ‘máscaras’ nas
suas identidades e quanto mais manifestações de que
para o surdo é importante falar para serem aceitos na
sociedade, mais eles ficam nas próprias sombras, com
medos, angústias e ansiedade. As opressões das
práticas ouvintistas são comuns na história passada e
presente para o povo surdo” (STRÖBEL, 2007, apud
QUADROS & PERLIN, 2007, p.27).
E falando em máscaras ela elenca vários surdos mascarados pela sociedade, entre eles Thomas Edson (o inventor da luz elétrica), Gastão de Orléans, o Conde d’Eu, marido da Princesa Isabel, herdeira do trono de D. Pedro II, dentre outros (STRÖBEL, 2007, apud QUADROS & PERLIN, 2007).
Falando de Brasil... Não se sabe o real interesse pela educação dos surdos demonstrado por D. Pedro II, mas em 1855, a convite do imperador chega ao Brasil o professor surdo, discípulo de L’éppé, Eduard Huet, com a intenção de fundar, no Rio de Janeiro, antiga capital do país, uma escola para surdos. E, com pesquisa nas comunidades surdas brasileiras inaugura, em 1857, o Instituto dos Surdos-mudos, atual Instituto Nacional de Educação dos Surdos (INES). (FENEIS, 2005, p. 4).
Voltando ao globo... Lulkin (2005, apud SKLIAR, 2005, p. 36) afirma que “antes da primeira metade do século XIX, as investigações sobre o ouvido e a audição não passavam de uma antologia de atos científicos”. O autor diz ainda que as crianças surdas, usadas como cobaias, “ficavam cobertas de bolhas, inchaço e cicatrizes envolta das orelhas”.
Segundo Lulkin, o Dr. Blanchet que ocupava o cargo de médico na instituição de Paris “[...] investe na reeducação do ouvido através de uma emissão de sons em crescente intensidade e por uma excitação dos ‘nervos da sensibilidade geral’”. E, em 1853, gera uma violenta polêmica acerca de seus extravagantes métodos: “abertura do crânio e colocação de um perfurador, cortes de bisturi no ouvido médio, entre outros procedimentos empíricos” (LULKIN, 2005, apud SKLIAR, 2005, p. 36).
No dia 11 de Setembro de 1880 realiza-se em Milão, Itália, o Congresso Internacional de Educadores de Surdos. “Neste congresso ficou decidido pelos professores ouvintes a proibição da língua de sinais. Os professores surdos foram excluídos desta votação”. (FENEIS, 2005, p.4 - grifo nosso). Esse dia ficou conhecido, entre os surdos como o dia do diabo, ou início do holocausto.
Dos 174 votos válidos, dois terços eram de congressistas italianos, os demais eram franceses, ingleses, suecos, suíços, alemães e americanos. Destes apenas quatro votaram a favor da língua de sinais, os outros 170 votaram contra a língua de sinais e a favor do oralismo/ouvintismo (LULKIN, 2005, apud SKLIAR, 2005).
As manifestações da época, “marcada pela racionalidade em oposição à emoção” eram fácilmente percebidas na fala de um congressista italiano, como afirma Lulkin (2005) citando Grémion, que dizia que se as instiuições interessadas em introduzir, sincera e eficazmente, “o verdadeiro método da palavra” deveria separar os surdos experientes dos iniciantes, a fim de “desenraizar a erva daninha da língua de sinais”, pois “[...] exalta os sentidos e provoca, demasiadamente, a fantasia e a imaginação’(LULKIN, 2005, apud SKLIAR, 2005, p. 37).
Lulkin (2005), ainda citando Grémion, afirma que os documentos erigidos a partir das atas finais do Congresso determinaram as propostas educacionais e as políticas públicas até cerca de 1970, as quais recomendavam o seguinte:
O Congresso, considerando a incontestável
superioridade da palavra sobre os signos para
devolver o surdo à sociedade e para dar-lhe um
melhor conhecimento da língua, declara que o método
oral deve ser preferido ao da mímica para a educação
e instrução dos surdos-mudos. (...) O Congresso,
considerando que o uso simultâneo da palavra e dos
signos mímicos têm desvantagem de inibir a leitura
labial e a precisão das idéias, declara que o método
oral puro deve ser preferido. (...) A terceira resolução
é um voto em favor da extensão do ensino dos
surdos-mudos. Considerando que um grande número
de surdos-mudos não receberam os benefícios da
instrução; que essa situação provém dos poucos
recursos das famílias e dos estabelecimentos, emite o
voto que os governos tomem as medidas necessárias
para que todos os surdos e mudos possam ser
instruídos (LULKIN, 2005, apud SKLIAR, 2005, p. 37).
A primeira medida para colocar em prática o que determinava as resoluções do Congresso foi “obrigar os alunos surdos a sentarem sobre as mãos”. E para tentar impedir a comunicação sinalizada, retiraram “as pequenas janelas das portas”. Quanto aos professores surdos e seus auxiliares e demais surdos adultos envolvidos com a educação, responsáveis pela irradiação de aspectos culturais, “deveriam deixar as escolas e os institutos” [5]. (LULKIN, 2005, apud SKLIAR, 2005, p. 38).
Essa nova pedagogia, “[...] o controle sobre os estudantes surdos, o conhecimento e as disposições sobe a sua educação – clínica, consultórios, escolas, instituições, centros profissionalizantes – passaram para o domínio dos cientistas médicos e sociais” (LULKIN, 2005, apud SKLIAR, 2005, p. 38)
2.1 QUASE UM SÉCULO DEPOIS... O QUE MUDOU?
Quase um século depois se percebe o grande declínio ocorrido na educação dos surdos e surge, então, uma oportunidade de regressar/avançar o ensino a partir da língua de sinais.
O lingüista Willian C. Stokoe tornou-se um ícone importantíssimo na história da língua de sinais, pois, após pesquisar a estrutura lingüística das línguas de sinais, lança, em 1965, a obra “Dictionary of American Sign Language on Linguistic Principles, apresentando as principais características dessa língua em relação à sua dupla articulação (morfemas e queremas), a não existência de artigos, preposições, e outras partículas” (LEITE, 2005, p. 32).
Skliar (2005, p.7) resume o período anterior como sendo:
[...] mais de cem anos de práticas enceguecidas pela
tentativa de correção, normalização e pela violência
institucional; instituições especiais que foram
reguladas tanto pela caridade e pela beneficência,
quanto pela cultura social vigente que requeria uma
capacidade para controlar, separar e negar a
existência da comunidade surda, da língua de sinais,
das identidades surdas e das experiências visuais,
que determinam o conjunto de diferenças dos surdos
em relação a qualquer outro grupo de sujeitos”.
Atualmente, no Brasil, há muitos “discursos e práticas alternativas” buscando a recolocação da “discussão num contexto mais apropriado à situação” sócio-histórico-cultural e lingüística do sujeito surdo. Uma vez que a pedagogia aplicada para os surdos, e que “ainda hoje se arrasta, não considerou sua diferença, sua língua, sua cultura e suas identidades, que por supervalorizar a voz, lhes negou a vez” (SÁ, 2003, apud ESPAÇO, 2003, p. 90).
Entretanto os conhecimentos são administrados como forma de medicalização para surdez, considerando-os como anormais e, por este viés, aplica-se uma pedagogia corretiva, normalizadora, isso porque, como afirma Wriglei (1996), citado por Ströbel (2007) os surdos são vistos como pessoas com ouvidos defeituosos “[...] se pudéssemos consertar...” (STRÖBEL, 2007, in QUADROS & PERLIN, 2007, p. 24).
Assim sendo, muitos materiais são forjados para essa correção/conserto. A exemplo disso, o Ministério da Educação e do Desporto (MEC) através da Secretaria de Educação Especial (SEESP) lança, em 1997, a Série Atualidades Pedagógicas que, no seu número quarto, intitulado de “Programa de Capacitação de Recursos Humanos do Ensino Fundamental – Deficiência Auditiva”, gasta aproximadamente 700 páginas, subdivididas em dois volumes, para tratar de assuntos inerentes à patologia da surdez, objeto a ser consertado e, um volume com pouco mais de 120 páginas, para tratar da lingüística da LIBRAS e sua aquisição. Esta série é enfática, quando se aborda a integração dos alunos surdos, dando à aprendizagem da fala e escrita da Língua Portuguesa um caráter prioritário, como sendo o único meio de efetivar sua integração na rede regular de ensino (RINALD, 1997, apud BRASIL, 1997, vol. I p. 297) [6].
Ancorados nesta ótica, surgem práticas e discursos opondo-se às escolas especiais e escolas de surdos com um receio infundado da chamada “segregação escolar”. Deixando transparecer, como afirma Machado (2008, p.24), citando Souza &Góes (1999), uma impressão de que para o aluno surdo o mais importante é a convivência com os “normais” “do que a própria aquisição de conhecimento mínimo necessário para a sua, aí sim, integração social. E, ainda “um consenso mudo” de que “se todos falam este estudante deve também falar”.
Sendo o ensino dos surdos baseados numa pedagogia que é pensada por e para ouvintes, criam-se assim, simulacros de ouvintes. Tal assunto torna-se inquietante, como assegura Machado (2008, p.23), citando Lacerda (1989), porque as diferentes práticas pedagógicas, nessa ótica, “apresentam uma série de limitações, geralmente levando esses alunos, ao final da escolarização básica, a não serem capazes de desenvolver satisfatoriamente a leitura e a escrita na língua portuguesa, e a não terem o domínio adequado dos conteúdos acadêmicos”.
Schorn (2004), em seu artigo “Salud Mental y Sordera: Sofrimiento Psiquico El Niño e El Adolescente Sordo”, afirma que sendo a criança surda uma criança com experiência visual, a mesma “não entra nos jogos orais de referências [...] de maneira espontânea” [7] a. E, pelo fato de a criança surda não adquirir a língua oral, de maneira espontânea, natural, a mesma precisa adquirir a de sinais “em tempos e formas adequadas” b e caso isso não ocorra ela estará propensa a sérios e graves problemas emocionais. Esses problemas são os que, segundo a autora, “originam o SOFRIMENTO PSÍQUICO”c (SCHORN, in ANAIS INES, p. 195). O que nos conta Souza [8] no relato a seguir.
3 RELATO DE UM SOBREVIVENTE DA PEDAGOGIA NORMALIZADORA [9]
Em 1990 iniciei minha vida escolar, tinha quatro anos de idade, não tínhamos aulas significativas, lembro-me apenas da professora forçando-me a ler-lhes os lábios [10]. Sentia-me frustrada e triste por não conseguir aprender. E percebia que o sentimento era semelhante ao dos demais alunos daquela turma.
Nas aulas não havia momentos para histórias, ou brincadeiras, como vejo nas aulas da minha filha, que a propósito tem três anos de idade. Era algo sem sentido, sem significado. O único momento que aproveitava e gostava de estar naquele espaço era o momento em que eu podia brincar com os meus amigos surdos. Livres, sem precisar ler lábios de ninguém, comunicando com gestos [11].
Como não havia muitas instruções, imaginava que os seres humanos fossem fabricados e que o crescimento se dava como que em manutenções (tipo robô ou coisa parecida). Imaginava que a chuva, o sol, raios, etc. eram criados por uma pessoa residente no céu, que abria e fechava alguma comporta com uma alavanca, depois descobri, essa pessoa é Deus, e que a natureza já tinha seu curso estabelecido, bem diferente da forma que eu imaginava.
Algo comum entre nós surdos, quando criança, é pensar que quando crescer, ou se transforma em ouvinte (não surdo) ou morre ainda na adolescência, pelo fato de não haver contato com surdos adultos, pois toda a comunidade é composta por pessoas que ouvem (STRÖBEL, 2008, p. 40).
Até completar oito anos minhas noites eram compostas por pesadelos, não conseguia dormir se não fosse junto dos meus pais. O dia corria naturalmente, mas à noite, uma angústia me dominava, sentia-me depressiva e ao dormir era atacada por pesadelos.
Schorn (2004) explica que a depressão sofrida por crianças é diferente da dos adultos, e é perceptível nos hábitos alimentar e dificuldades em dormir, etc. e tais sintomas são “conseqüências de traumatismos precoces, produto da deficiência na integração inicial” [12]. E que tais sintomas são “zonas de ausência na relação entre mãe e filho” (SCHORN, 2004 apud ANAIS INES, 2004, p. 199).
Mudamos para Belo Horizonte, MG, em 1994, enfrentei uma dupla jornada, estudava em duas escolas: comum e especial. Mas não consegui acumular muito capital cultural. Não sabia nada sobre sexualidade, gravidez, entre outras coisas relacionadas ao meu próprio corpo.
Embora estudasse em duas escolas, como disse, não conseguia entender muita coisa das disciplinas, em especial a de língua portuguesa e a de ciência. Lopes (2005) afirma que esse envolvimento integral do aluno surdo com sua educação e pseudo-recuperação “[...] colabora, entre outros elementos, para que esses desenvolvam identidades subalternas, que dificultam a organização cultural” (LOPES, 2005, apud SKLIAR, 2005, p. 113).
Retornamos para Linhares no ano de 2000, com pouco conhecimento sobre tudo e nenhum sobre minha própria língua, a LIBRAS [13].
Em 2001 fui admitida em uma empresa de exportação de mamão e conheci uma surda que me iniciou no aprendizado da LIBRAS. Partindo daí comecei o contato com outros surdos. Meu universo se expandiu. Casei-me com um surdo, tive/tenho uma filha, como já informei. Voltei aos estudos, passei no ENCCEJA para o Ensino Médio.
Ingressei no ensino Médio na rede estadual, amparada pelo decreto de lei 5.626/05 que me garante, dentre outros, o direito de ser atendida na minha língua materna, que efetivou-se, por força da justiça, intervenção do Ministério Público, com a presença do profissional tradutor/intérprete de LIBRAS/Língua Portuguesa.
Novamente passei no ENCCEJA e, quase que simultaneamente, no vestibular da Faculdades Integradas de Ensino Superior de Linhares – FACELI – para o curso de pedagogia, a qual providenciou, desde o vestibular, o apoio devido com a contratação deste profissional.
Atualmente sou professora de LIBRAS para rede municipal de ensino e atuo como professora bilíngüe na rede estadual de ensino. Tenho uma vida independente.
4 E SAVIANI COM ISSO?
Discorremos até então sobre a história do ensino de surdos, ou da língua de sinais, mas... E Saviani com isso? Que elo existe (existe algum elo) entre a pedagogia surda e a pedagogia revolucionária apresentada por Saviani? Quais elementos teóricos e metodológicos dessas pedagogias possibilitam fazer tais inferências?
Saviani (1997, p.17) afirma que a escola conhecida como escola tradicional, a qual acumulou críticas por sua pedagogia educacional, tentava corrigir a marginalidade que era “identificada com a ignorância” e que a escola se organizava/organiza, “como uma agência centrada no professor” o qual transfere, de forma bancária, um acervo cultural aos alunos, que “cabe apenas assimilar os conhecimentos” transmitidos. O autor discorre ainda sobre um movimento que passa a encarar a marginalidade não mais sob o prisma da ignorância, mas da rejeição, “os marginalizados são os ‘anormais’, isto é, os desajustados e desadaptados de todos os matizes”. Nesta ótica a pedagogia inicia a temporada de caça aos anormais, mune-se de “testes de inteligências, de personalidades etc., que começam a se multiplicar”.
No que tange à pedagogia tecnicista, o marginalizado é visto não mais como o ignorante ou o rejeitado, mas como o incompetente, “isto é, o ineficiente e improdutivo”. Sendo assim, “do ponto de vista pedagógico conclui-se que, se para a pedagogia tradicional a questão central é aprender e para a pedagogia nova aprender a aprender, para a pedagogia tecnicista o que importa é aprender a fazer” (SAVIANI, 1997, p. 25-26).
Saviani (1997, p. 73) e Machado (2008, p. 76) concordam que nessas pedagogias ausenta-se as considerações quanto à historicidade do aluno (sendo surdo ou não). O primeiro afirma que “faltam-lhes a consciência dos condicionantes histórico-sociais da educação”. O segundo afirma que “não são considerados, nas práticas escolares, os sujeitos reais com suas histórias, seus valores, crenças, ritmos, comportamentos, origem social e econômica, experiência e vivência”. Isto é, negam-lhes a idiossincrasia num discurso hegemônico e homogeneizador.
Saviani (1997, p. 74) salienta que a pedagogia revolucionária “centra-se, pois, na igualdade essencial entre os homens. Entende, porém, a igualdade em termos reais e não apenas formais”. E que a transposição da igualdade formal, aquela garantida pela constituição de 1988, para a igualdade real implica passar pela igualdade de acesso ao saber.
Com intenção de aprimorar a educação surgem tentativas de constituir, o que Saviani (1997, p. 77) chamou de “Escola Nova Popular”, citando Paulo Freire como um dos representantes deste movimento que “se empenhou em colocar essa concepção pedagógica a serviço dos interesses populares”. Dermeval Saviani (1997, p. 79) afirma que “uma pedagogia articulada com os interesses populares” estará empenhada no bom funcionamento da escola e favorecerá o diálogo entre os pares e com o professor, sem desprezar “o diálogo com a cultura acumulada historicamente” e ainda respeitarão “os interesses dos alunos, ritmos de aprendizagem e desenvolvimento psicológico” sem, no entanto, perder o foco “a sistematização lógica do conhecimento”.
O autor aponta cinco passos/métodos que, segundo ele, mantêm “continuamente presente a vinculação entre educação e sociedade” e, ainda, que “o ponto de partida do ensino não é a preparação dos alunos cuja iniciativa é do professor”, “nem a atividade que é de iniciativa dos alunos” (SAVIANI, 1997, p. 79).
Os passos apresentados por Saviani iniciam-se e finalizam-se pela prática social perpassando pela problematização, instrumentalização e catarse. O primeiro, o ponto de partida, é o comum a professores e alunos, a prática social, entretanto não tão comum assim, pois o professor possui “certa articulação dos conhecimentos e experiências”. Enquanto que os alunos, “por mais conhecimentos e experiências que detenham, sua própria condição de alunos implica uma impossibilidade, no ponto de partida, de articulação da experiência pedagógica na prática social de que participa” (SAVIANI, 1997, p.80).
O segundo passo, a problematização, consiste em identificar que “questões precisam ser resolvidas no âmbito da prática social e, em conseqüência, que conhecimento necessário para dominar”. O terceiro passo, “trata-se de se apropriar dos instrumentos teóricos e práticos necessários ao equacionamento dos problemas detectados na prática social”. Saviani (1997) salienta que a apropriação de tais instrumentos dependerá da transmissão direta ou indireta por parte do professor, uma vez que os mesmos são produzidos e preservados sócio-historicamente (SAVIANI, 1997, p. 80).
O quarto passo é a “efetiva incorporação dos instrumentos culturais, transformados agora em elementos ativos de transformação social”. O quinto e último passo é o próprio ponto de partida, a prática social, todavia, compreendidos no mesmo nível do professor, ou seja, desigual no ponto de partida e igual no ponto de chegada (SAVIANI, 1997, p. 81).
Desta forma, é nestes passos/metodologias que a pedagogia revolucionária e a pedagogia surda se fundem, por tratar de uma luta no campo pedagógico para que prevaleçam os interesses dos, até agora, marginalizados/excluídos (SAVIANI, 1997). E, no que tange à pedagogia surda, além do processo ensino-aprendizagem com vista à prática social, que respeite o sujeito sócio-histórico, insere-se a preocupação inerente a questão lingüística e cultural dos alunos. Uma vez que, como afirma Quadros (2008), a pedagogia praticada esquece “que os surdos são surdos, tornando-os invisíveis”, pois desconsidera a questão lingüística e a importância dos pares surdos (QUADROS, 2008, apud MACHADO, 2008, 14).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo iniciou-se com o objetivo de analisar a pedagogia surda através das lentes teóricas de Saviani, elencando possíveis inferências com a pedagogia revolucionária, proposta por este autor, e ainda, descrever a concepção e a perspectiva teórica e metodológica da pedagogia surda. Para tanto, o tecemos através de pesquisa bibliográfica tendo como referência básica as obras: Escola e Democracia, de Dermeval Saviani e A Surdez: Um olhar sobre as diferenças, de Carlos Skliar, como também, como suporte bibliográfico complementar, pesquisas em textos de internet, outros livros, revistas científicas, anais e outros. Descreveu-se, quase que minuciosamente, a história da educação dos surdos, desde o século XVI, passando pelo Congresso de Milão de 1880, quando por uma concepção etnocêntrica ouvintista, proibiram o uso da língua de sinais na educação dos surdos, propondo o método de oralização e outras providências, que se arrastou por quase um século. O caráter clínico consertador, normalizador da pedagogia numa tentativa de transformar os surdos em ouvintes, criando assim meros simulacros dos tais. Quase um século depois, o retorno da valorização do uso da língua de sinais na educação dos surdos, o reconhecimento lingüístico das línguas de sinais através do trabalho do lingüista Willian C. Stokoe. Vimos também, através do “Relato de um sobrevivente de uma pedagogia normalizadora”, que a pedagogia, mesmo com legislações e estudos apontando para outros caminhos, continua com o caráter normalizador. Por fim, analisamos os passos/métodos que Saviani apresenta, na obra base de nossa pesquisa, como sendo caráter fundamental da pedagogia revolucionária, numa perspectiva histórico-dialética que respeita os aspectos sócio-histórico, econômico e cultural do aluno. Apontamos também que a pedagogia surda casa-se com a pedagogia revolucionária por estes aspectos e acrescentamos uma nova preocupação com o processo ensino-aprendizagem, o da língua usada pelos alunos surdos. Finalizamos, porém sem concluir, apontando estes ligamentos entre a pedagogia surda e a pedagogia revolucionária implícitas desde o início do artigo. Sugerimos também que sejam feitas novas pesquisas nesta área. Como também mais seriedade por parte dos gestores educacionais, uma vez que no decorrer da pesquisa não encontrou-se sequer dados concretos quanto à quantidade de alunos surdos no sistema público de ensino de Linhares, apenas informações desencontradas [14].
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______. As Imagens do Outro Sobre a Cultura Surda. Florianópolis: Ed. UFSC, 2008.
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[1] Professor e Intérprete de LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais – PROLIBRAS - MEC; Graduando em LETRAS-LIBRAS – UFSC/UFES; Graduando em LETRAS: Língua Portuguesa e respectivas Literaturas – UNOPAR; Graduando em PEDAGOGIA - FACELI; Tradutor/ Intérprete de LIBRAS da FACELI; Vice-presidente da Associação de Profissionais Tradutores/Intérpretes de LIBRAS do Espírito Santo – APILES; e-mail: ad1000sondias@gmail.com.
[2] Surda, Professora de LIBRAS; Graduando em Pedagogia – FACELI; e-mail: flibras.batistadesouza005@gmail.com.
[3] Graduando em Pedagogia – FACELI; e-mail: gabrielafg12@hotmail.com.
[4] Prof. MSc. Em Educação pela UFV; Orientadora do grupo; e-mail: zilma@faceli.edu.br.
[5] Em 1960 havia apenas 12% dos professores surdos envolvidos na educação. (FENEIS, 2005, p.5)
[6]É importante ressaltar que o MEC tem propiciado mudanças no que tange a educação dos surdos, à exemplo disso é o apoio à graduação LETRAS-LIBRAS (licenciatura para surdo e bacharelado para ouvinte).
[7] Nossa tradução para: a) “no entra em los juegos orales de referencias [...] de manera espontanea”; b)“em tiempos y forma adecuadas”; c)“originan el SUFRIMENTO PSIQUICO”.
[8]SOUZA, Fabrícia Batista de. Co-autora do presente artigo.
[9]Relato de Souza, em LIBRAS, traduzido para a Língua Portuguesa por Ademilson Dias Ferreira.
[10]“Práticas enceguecidas”, segundo SKLIAR (2005, p.7)
[11] “Gestos”, aqui significa, como afirma Stöbel(2008, p.44 – noras de rodapé), citando Albres, uma construção simbólica inventada no âmbito familiar (STRÖBEL, Karin Lilian. As Imagens do Outro Sobre a Cultura Surda. – Florianópolis: Ed. da UFSC, 2008).
[12] Nossa tradução para: “consecuencias de traumatismos precoces, producto de déficits em la integración inicial”; e, “zonas de ausencias en La relación entre la madre y el hijo”.
[13]Língua Brasileira de Sinais, reconhecida como segunda língua oficial do Brasil através da lei 10.436/02.
[14]Pesquisando sobre a quantidade de alunos surdos inseridos nas escolas municipais foi detectado divergência de informação. Informaram-nos que há mais ou menos 15 surdos inseridos. Todavia, encontramos um artigo na qual este levantamento, afirma que das instituições que entregaram o “levantamento de dados quanto aos alunos com necessidades especiais”, 16 “possuem surdos matriculados [...] totalizando um número de 22” e não 15 alunos como informado pela mesma autora (RUY, 2007, in ANAIS – SEGUNDO SEMINÁRIO NACIONAL DE PEDAGOGIA SURDA, 2007, p. 187).