Norma culta
A língua é enorme iceberg flutuando no mar do tempo, e a gramática normativa é a tentativa de descrever apenas uma parcela mais visível dele, a chamada norma culta.
O primeiro parágrafo que usamos para iniciar nossa matéria da semana está na introdução Primeiras Palavras do livro Preconceito Lingüístico – o que é, como se faz, de Marcos Bagno, das Edições Loyola. O livro, de apenas 192 páginas, está dividido em 4 capítulos, sendo que no primeiro deles o autor coloca oito grandes mitos da confusão que foi criada, no curso da história, entre língua e gramática normativa.
Na mesma introdução o autor declara que a tarefa do livro é desfazer a confusão, afirmando que assim como “Uma receita de bolo não é um bolo, o molde de um vestido não é o vestido, uma mapa-mundi não é o mundo... Também a gramática não é a língua.”
A abordagem é muito interessante no confronto que apresenta sobre os lingüistas, gramáticos e dicionaristas, cada um deles defendendo suas próprias idéias. Uns na defesa da norma culta, nos fundamentos e princípios da Língua Portuguesa, outros defendendo a diversidade cultural do povo, onde expressões, hábitos e mesmo o analfabetismo influem decisivamente, com prós e contras, no uso da própria língua, impondo modificações, adaptações e mesmo inclusões no uso da língua.
Um único exemplo é notável para nosso entendimento (está na página 52): Imagine uma tabuleta com a palavra colégio. Um pernambucano, lendo em voz alta, dirá còlégio; um carioca provavelmente dirá culégio; um paulistano, por sua vez, côlégio. Vejam, é a mesma palavra, pronunciada de formas diferentes.
Quem está certo? Quem está errado? Nem uma coisa nem outra. Cada um apenas segue sua cultura local, seus hábitos, seu sotaque e por aí vai... Apesar da norma...
Achei sensacional a questão levantada pelo autor. A diversidade cultural e a extensão territorial do país fizeram isso. Ninguém está errado, apenas vivendo sua própria cultura. Claro que a norma culta, dos fundamentos e princípios da língua em si é patrimônio inquestionável. Mas não há como fugir da diversidade cultural.
Aliás, o livro tem exemplos notáveis. O autor apenas quis frisar a realidade do preconceito lingüístico (entre outros, diga-se de passagem) existente no país, em virtude dos diferentes hábitos praticados. Embora o analfabeto nada conheça da língua, ela a usa. Não é interessante?
Isso me levou a um raciocínio que podemos aplicar no relacionamento uns com os outros. Nas diferenças de opiniões, visões, posturas, decisões, iniciativas, etc, quem está certo? Quem está errado?
Ninguém está certo ou errado. Estamos todos em aprendizado.
O que está certo para mim pode estar errado para você e vice-versa.
Por isso o preconceito, seja qual seja, é um absurdo sem precedentes. Julgamos sem pensar, sem analisar, sem raciocinar. Julgamos pelas aparências, pelas vestes, pelas palavras, sem sondar o mais importante: os sentimentos.
De que vale a apresentação impecável (seja cultural, de aparência, de títulos, de patrimônio, de nome, de crença, de profissão, de cor, de raça, etc), se os sentimentos estão manchados pelo egoísmo, pela vaidade, pela prepotência, pela hipocrisia, pela mentira, pela indiferença, pelo desprezo, pela discriminação...?
A norma culta, de qualquer lei, regimento, cultura, crença, tradição ou decreto, pode ser impecável, todavia, se não houver adesão do sentimento à sua prática e vivência, estaremos pisando na areia movediça... Os princípios de justiça, bondade, democracia e respeito aos direitos individuais estão sempre citados, mas temos conseguido vivê-los?
Ora, somos todos diferentes uns dos outros. Respeitemos esses estágios... Inclusive na língua, é óbvio. Tudo tem seu valor, sua utilidade. Aprendamos a conviver com as diferenças uns dos outros.