A fragilidade humana e as tentações (SERMO 40)

A FRAGILIDADE HUMANA E AS TENTAÇÕES

Vigiem e orem para não caírem em tentação

(Mc 14,38)

De um modo geral, tentação é o ato ou efeito de tentar ou ser tentado. Refere-se, geralmente, a um impulso para a prática de alguma coisa censurável ou não recomendável. Na maioria dos casos a tentação vem envolvida em um desejo veemente ou violento. Uma coisa é certa: Nenhum ser humano está imune ao assédio das tentações. Mesmo Jesus, o filho de Deus, enquanto viveu sua dimensão humana foi tentado pelo diabo no sentido de convencê-lo a renunciar à sua missão redentora. (cf. Mt 4, 1-11).

A vida dos santos nos revela uma luta constante contra o assédio do mal. Talvez esteja aí a diferença entre o homem comum e o santo. Enquanto o primeiro, quem sabe, por falta de vigilância ou de firmeza, se deixa vencer pelas insinuações do Maligno, o outro resiste, ancora-se na fé e não se deixa vencer pelos poderes infernais.

Na parábola das dez aias de um casamento (cf. Mt 25,1) vemos a distinção entre as chamadas virgens “prudentes” (vigilantes) e as “imprudentes” (desleixadas), cuja função era iluminar com suas lâmpadas a óleo a chegada do noivo ao local da festa. Trata-se de uma parábola de cunho escatológico. O noivo é Cristo, cuja chegada vai instaurar um novo tempo, o éon da eternidade.

O tema central da parábola é a necessidade de vigilância. Jesus virá um dia para nos levar à festa do céu, desde que nós estejamos a postos, preparados, isentos de máculas e livres de todas as concupiscências. Aqui a imagem da vigilância é a lâmpada acesa com um óleo generoso, que significa a dedicação de uma vida sem pecado, de quem venceu os obstáculos que apareceram pela vida afora.

Na narrativa, a metade das moças (as “virgens imprudentes”) adormeceu e se esqueceu de avaliar que o óleo que tinham era insuficiente para a hora da chegada do noivo. As outras, para economizar o combustível, apagaram as lâmpadas, preparando-se para o momento decisivo. Na nossa vida é assim que funciona. A chegada de Jesus irá ocorrer em uma hora inesperada. Só quem tiver projetado sua vida espiritual na direção dele, isento de pecados e vencedor das tentações, poderá entrar na festa. É preciso vigiar. Sem tréguas!

Antes do pecado vem a tentação. As armadilhas malignas são sutis e traiçoeiras, e batem de frente em nossa fragilidade. Quem se desvia da tentação, por mais “inocente” que ela possa parecer, evita cair no pecado, cujo salário é a morte (cf. Rm 6,23).

Na Bíblia a tentação, que representa um aspecto importante da vida religiosa e moral, aparece em dois sentidos: o de provação (cf. Tg 1,2ss) e o de impulso para o pecado (cf. Tg 1,12-15). Nesse último sentido, o sujeito é o demônio, os homens, a concupiscência e os sistemas sociais. Quando Deus prova o homem seu objetivo é purificá-lo; quando o demônio tenta, o faz no sentido de perverter e perder o ser humano, levando- à ruína.

No Antigo Testamento há três situações clássicas de tentação. Primeiro vem a narrativa da queda do paraíso (cf. Gn 3,1-19). Aqui Deus prova o homem por uma prescrição. A tentação propriamente dita vem da concupiscência do ser humano e da “serpente” identificada posteriormente como o demônio (cf. Sb 2,24).

A serpente “tenta” a mulher, depois o homem através dela, e os precipitou no pecado e na infelicidade. Depois, a provação de Abraão (cf. Gn 22,1-19) muitas vezes citada pelo judaísmo e pela literatura rabínica. Por fim, a provação de Jó, modelo de fé e paciência nos sofrimentos. Ele é vítima de Satanás que o impele à blasfêmia e à revolta contra Deus. Jó resiste a esses assaltos e se revela fiel em sua fé (cf. Jó 1–2), por isso foi exaltado por Deus.

Às vezes as pessoas costumam perguntar: Como são e quais são os caminhos que levam ao pecado? Em geral, a consciência humana sabe assinalar momentos críticos em que a pessoa está na iminência de cair em pecado. É o conhecimento dos “momentos de tentação”, em que são necessários esforços, preces e fuga da ocasião.

Jesus ensina - e já vimos aqui - que o caminho que conduz à perdição é largo, fácil e espaçoso (cf. Mt 7,13s). Em meu livro “Sacramentos, sinais do amor de Deus” (Ed. Vozes, 4ª. edição, 1995), eu chego a classificar a tentação como o estágio inicial, o vestibular do pecado, tamanha a relação entre essas duas instâncias. Diante dessa colocação, o risco é efetivo e imediato.

Vamos relacionar aqui, para fins pastorais e didáticos, alguns caminhos que levam ao pecado. É lógico que não se esgota o assunto. Existem mais. Cabe a cada esforço pastoral identificar e denunciar esses obstáculos, à medida que surgem.

Todo o pecado tem origem no demônio, reconhecido, teologicamente, como autor e princípio de todo o mal. É um grande equívoco que se comete afirmando que o demônio (diabo, satanás, maligno) não existe. Sua maior vitória é levar-nos a pensar assim. Tudo ficaria mais fácil...

O demônio é a personificação do mal que, como ensina São Pedro, “anda a nosso redor, como um leão, a procura de alguém para devorar” (cf. 1Pd 5,8). A existência do demônio, antes de um dogma da Igreja (DS 800.1215) é uma realidade bíblica mencionada por Jesus (Mt 25, 41b). Tanto no Antigo como no Novo Testamento, há fartas referências às tentativas do demônio de desviar o homem do caminho da justiça, fazendo-o enveredar para a prática do pecado.

Alguns segmentos da psicologia moderna, usando o termo pejorativo de Chartreux, o neopsicologismo, têm afirmado, a partir da segunda metade deste século, que demônio, pecado e inferno não existem, mas que fazem parte de fantasmas gerados por uma cultura repressiva capaz de provocar nas pessoas um acentuado e irreversível complexo de culpa.

A tentação superada faz brilhar a autenticidade da virtude, sobretudo da fé. Sobre as realidades ontológicas do demônio, assim se expressou o Papa Paulo VI, em 1972 no Osservatore Romano:

O diabo - como vimos em outros encontros - é uma força atuante, um ser espiritual, vivo, perverso e pervertedor; uma realidade assustadora, misteriosa e amedrontadora. Ele é o chefe de muitos seres espirituais que são como ele, originariamente boas criaturas de Deus, mas que se afastaram porque se revoltaram e foram condenadas ao inferno. Quem nega a existência dessas realidades coloca-se fora da doutrina bíblica e eclesiástica.

Santo Agostinho afirma que, se o demônio atuasse diretamente sobre os homens, não haveria justos, Existem limites impostos por Deus a essa ação malévola. Os anjos protegem os homens do assalto do demônio. Eles dão o primeiro combate às investidas infernais.

O demônio não tem acesso direto à inteligência e à vontade do homem; tem acesso tão-somente aos sentidos, imaginação, estímulos, instinto, sensibilidade e memória. Por esses caminhos é que ele tenta chegar à inteligência e à vontade dos homens.

Sabendo que o demônio é o autor e o princípio do pecado, podemos relacionar seus caminhos através dos dez fatores abaixo:

1 mediocridade: No nosso modelo social, tudo é superficial;

inexistem valores autênticos, não há ideais; tudo é futilidade;

2. hedonismo: O valor exagerado aos prazeres e comodidades, a

permissividade moral, a falta de autenticidade e pureza dos

corações, tudo leva ao pecado;

3. egoísmo: Como concepção individualista de vida, ele bane a

vida da graça;

4. materialismo: A desmedida preocupação com os bens

materiais, ostentando, muitas vezes um padrão de vida

ofensivo à indigência de tantos, é a porta aberta ao pecado;

5. superficialidade: A falta de vida interior, de encontro consigo

e com Deus, numa época de pouca espiritualidade ou de uma

fé desencarnada, descomprometida, leva à rejeição ao

projeto divino;

6. fechamento em si: A rejeição ao assédio da graça de Deus,

autêntico dom de Deus, conduz à perdição espiritual;

7. presunção: “Sou forte, sou religioso, tenho vida espiritual,

isso de pecado é com o pessoal mais fraco...” A presunção

foi o pecado de Adão. Aos soberbos, São Paulo

adverte: “Quem está de pé cuide-se para não cair!”

(cf. 1Cor 10,12);

8. timidez: Essa deficiência, quando demasiada, revestida de

uma falsa humildade e acomodação nas tomadas de decisão,

produz desespero: “sou fraco, sou um pecador, a carne é

fraca...”;

9. falta de fé: A fé é um dom que precisa ser exercitado e

cultivado;

10. desleixo: O abandono da vida espiritual, dos atos de piedade

cristã, a falta de oração, o afastamento da Santa Missa e dos

sacramentos de Cristo é um campo fértil para o fortalecimento

das tentações.

Em resumo, pode-se afirmar que o pecado opõe-se ao projeto de Deus e desfigura a imagem do homem criado à semelhança de seu Criador, isto é, arranca Deus do coração do homem, privando-o da vida da graça e, assim, excluindo-o da salvação.

Assustadas, muitas pessoas perguntam: o que fazer contra o pecado? Como fugir das tentações? A fé da Igreja nos mostra que o Espírito Santo nos esclarece com relação ao pecado, e nos dá força e coragem para resistir às investidas do maligno, e que Deus é fiel, por isso nunca irá permitir que soframos tentações acima de nossas forças (cf. 1Cor 10, 13). Para evitar as tentações e o passo seguinte no pecado, o homem deve assumir algumas atitudes:

• aceitar suas próprias limitações, conhecendo-se e buscando crescimento;

• conhecer, com convicção, os autênticos valores humanos;

• empolgar-se por um verdadeiro ideal;

• conhecer a Cristo, lendo e meditando as Escrituras, bem

como as verdades de sua Igreja;

• acostumar-se a fazer sacrifícios pessoais;

• evitar a vida ociosa, as conversas fúteis e as más

companhias;

• ter senso crítico para julgar padrões e circunstâncias sociais;

• buscar frequentemente uma orientação (direção) espiritual;

• manter-se em contato com Deus pela oração;

• observar os mandamentos, principalmente o “novo”

(Jo 13,34);

• freqüentar os sacramentos, em especial o da Penitência e

o da Eucaristia.

Por piores que sejam os nossos pecados, por mais que nos consideremos pecadores, Cristo, nosso Redentor, está sempre a nos esperar, como aquele Pai da parábola, com as mãos cheias de misericórdia e o coração repleto de alegria, pelo retorno do filho (cf. Lc 15, 11-24). Se o grande mal que caracteriza o pecado é a auto-suficiência do pecador, a libertação do pecado se dá pelo reconhecimento da própria miséria, como fez o chamado “filho pródigo”: “Vou me levantar e vou voltar à casa de meu pai...” (cf. Lc 15).

É preciso conhecer o dom de Deus, sua providência paterna que nos defende contra as investidas infernais, como nos diz, magistralmente, São Paulo:

Fortaleçam-se no Senhor e na força do seu poder. Revistam-se da armadura de Deus, para poderem resistir às insídias do diabo. Pois o nosso combate não é contra o sangue nem contra a carne, mas contra os Principados, contra as Autoridades, e contra as Dominações deste mundo de trevas, contra os Espíritos do Mal, que povoam o universo.

Por isso vocês devem vestir a armadura de Deus, para poderem resistir no dia do confronto e saírem vitoriosos do combate. Portanto, levantem-se, cinjam os rins com a verdade e revistam-se com a couraça da justiça, calçando os pés com o zelo de propagar o Evangelho da paz, e assim poderão apagar as flechas inflamadas do Maligno. Coloquem o capacete da salvação e peguem a espada do Espírito, que é a Palavra de Deus (Ef 6, 10-17).

Conhecendo o dom de Deus que traz a salvação, o homem pode melhor resistir ao assédio do pecado. Cair no erro, por ignorância é, de certa forma, desculpável. Errar, por não procurar adequada e insistentemente a verdade, é condenável. Essa procura deve ser orientada pela consciência.

No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração (...). O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e é por ela que será julgado (cf. Rm 2,15s).

A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, onde ele se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade de seu ser (cf. AAS 44 [1952]). Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos aos demais homens, no dever de buscar a verdade e de nela resolver tantos problemas morais que surgem na vida individual e social. Quanto mais, portanto, prevalecer a reta consciência, tanto mais as pessoas e os grupos estarão longe da arbitrariedade cega, e procurarão conformar-se com as normas objetivas da moralidade (GS 16).

Na luta do cristão contra o diabo, o principal campo de batalha é a tentação. O discípulo precisa vencer o inimigo superando as tentações. Não estamos sós, contudo. Jesus tornou-se um homem, foi tentado como nós somos, obteve a vitória, assim mostrando como nós podemos triunfar sobre Satanás (ver Hb 2,17s; 4,15). Ele prometeu que estaria sempre conosco, ao nosso lado (cf. Mt 28,20). É essencial, portanto, que analisemos cuidadosamente de que forma Jesus venceu.

Embora Jesus fosse tentado várias vezes, ele enfrentou um teste especialmente severo logo depois que foi batizado. Lucas recorda este evento (Lc 4,1-13), mas seguiremos a história conforme Mateus a conta: “A seguir, foi Jesus levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. E, depois de jejuar quarenta dias e quarenta noites, teve fome” (Mt 4,1s). Pelo fato que foi o Espírito que levou Jesus para o deserto mostra que Deus pretendia que Jesus fosse totalmente humano e sofresse tentação. Note estas três tentativas de Satanás para seduzir Jesus.

A primeira Tentação

A afirmação do diabo: “Se és o Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães” (4,3). O diabo é um mestre das coisas aparentemente lógicas. Jesus estava faminto; ele tinha poder para transformar as pedras em pão. O diabo simplesmente sugeriu que ele tirasse vantagem de seu privilégio especial para prover sua necessidade imediata.

Era verdade que Jesus necessitava de alimento para sobreviver. Mas a questão era como ele o obteria. Lembre-se de que foi Deus quem o conduziu a um deserto sem alimento. O diabo aconselhou Jesus a agir independentemente e encontrar seus próprios meios para suprir sua necessidade. Confiará ele em Deus ou se alimentará a seu próprio modo? Há aqui, também, uma questão mais básica: Como Jesus usará suas aptidões?

O grande poder que Jesus tinha seria usado para fazer uma mágica, para gratificar seus desejos pessoais? A tentação era ressaltar demais os privilégios de sua divindade e minimizar as responsabilidades de sua humanidade. E isto era crucial, porque o plano de Deus era que Jesus enfrentasse a tentação na área de sua humanidade, usando somente os recursos que todos nós temos a nossa disposição. Aqui a projeção dessa tentação chega aos dias de hoje como um desejo de ter. O diabo que forçou Jesus a “fabricar” o alimento, nos força hoje a buscar o material acima do espiritual. A resposta de Jesus é marcante:

Está escrito: Não só de pão viverá o homem, mas de toda

palavra que procede da boca de Deus (Mt 4,4).

Em cada teste, Jesus se voltava para as Escrituras, usando um meio que nós também podemos empregar para superar a tentação. A passagem que ele citou foi a mais adequada naquela situação. No contexto, os israelitas tinham aprendido durante seus quarenta anos no deserto que eles deveriam esperar e confiar no Senhor para conseguir alimento, e não tentar conceber seus próprios esquemas para se sustentarem. O número 40, na numerologia semita exprime um tempo de provação.

O certo é que o diabo ataca as nossas fraquezas. Ele não se acanha em provar nossas áreas mais vulneráveis. Depois de jejuar quarenta dias, Jesus estava faminto. Daí, a tentação de fazer alimento de uma maneira não autorizada. Satanás escolhe justamente aquela tentação à qual somos mais vulneráveis, no momento. De fato, as tentações são freqüentemente ligadas a sofrimento ou desejos físicos.

A tentação parece razoável. O errado freqüentemente parece certo. Um homem "tem que se alimentar". Muitas pessoas sentem que necessidades pessoais isentam-nas da responsabilidade de obedecer às leis de Deus. É preciso confiar em Deus. Jesus precisava de alimento, sim. Porém, mais do que isso, precisava fazer a vontade do Pai. É sempre certo fazer o certo e errado fazer o que é ilícito. Deus proverá o que ele achar melhor; o dever da criatura é obedecer-lhe. É melhor morrer de fome do que desagradar ao Senhor.

A segunda Tentação

Então, o diabo o levou à Cidade Santa, colocou-o sobre o pináculo do templo e lhe disse: “Se és filho de Deus, atira-te abaixo, porque está escrito: Aos seus anjos ordenará a teu respeito que te guardem; e: Eles te sustentarão nas mãos, para não tropeçares nalguma pedra” (4,5s).

Jesus tinha replicado à tentação anterior dizendo que confiava em cada palavra do Senhor. Aqui Satanás parece dizer: “Bem, se confias tanto no Pai, então o experimenta. Verifica o sistema e vê se ele realmente cuidará de ti”. E ele confirmou a tentação com um trecho das Escrituras. A segunda tentação inflete no sentido do poder. Quem não gosta de ter poder e de dar demonstrações dele? O diabo tentou Jesus (e o faz conosco, hoje) a exercer com soberba seu poder. Como o poder humano corrompe, ele muitas vezes nos dá poder para que este sirva de motivo de tropeço.

A questão é se Jesus, diante da tentação iminente, confiará sem experimentar? Desde que Deus prometeu preservá-lo do perigo, é certo criar um perigo, só para ver se Deus realmente fará como disse? A resposta de Jesus é emblemática:

Também está escrito: Não tentarás o Senhor, teu Deus

(4,7).

A confiança verdadeira aceita a palavra de Deus e não necessita testá-la. O diabo cita a Escritura; ele põe como isca no seu anzol os versículos da Bíblia. Ele é astuto: vem tentar com a Bíblia nas mãos. Certas pessoas freqüentemente aceitam qualquer ensinamento, se está ornado por alguns versículos. Mas cuidado! O mesmo diabo que pode disfarçar-se como um anjo celestial (2Cor 11,13-15) pode, certamente, deturpar as Escrituras para seus próprios propósitos. O diabo cometeu três enganos, próprios de um espírito que não é iluminado:

Primeiro: não tomou as Escrituras em sua amplitude. Jesus replicou com: “Também está escrito...” (coisa que o diabo omitiu). A verdade é a soma de tudo o que Deus diz; por isso precisamos estudar todo o conteúdo das Escrituras a respeito de um determinado assunto para conhecer verdadeiramente a vontade de Deus. Não se pode pinçar textos isolados.

Segundo: ele tomou a passagem fora do contexto. O Salmo 90 conforta o homem que confia e depende do Senhor; ao homem que sente necessidade de testar o Senhor nada é prometido aqui.

Terceiro: Satanás usou uma passagem figurada literalmente. No contexto, o ponto não era uma proteção física, mas nitidamente espiritual.

Satanás é versátil. Jesus venceu em uma área, então o diabo se mudou para outra. Temos que estar sempre em guarda (1Pd 5,8). A confiança não experimenta, não continua pondo condições ao nosso serviço a Deus, e não continua exigindo mais provas. Em vista da abundante evidência que Deus apresentou, é perverso pedir a Deus para fazer algo mais para dar prova de si.

A terceira Tentação

Levou-o ainda o diabo a um monte muito alto, e mostrou- lhe todos os reinos do mundo e a glória deles e lhe disse: “Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares” (Mt 4,8s). Que tentação! O diabo deslumbrava com a torturante possibilidade de reinar sobre todos os reinos do mundo. Se Jesus aceitasse, naquele momento, o prazer de ser rei de tudo aquilo que o diabo lhe oferecia, ele se tornaria dependente do Maligno. É a tentação do prazer, não só o sensual, mas também o prazer da notoriedade, tão buscado hoje em dia.

A questão aqui não era tanto a de Jesus tornar-se um rei: Deus já lhe tinha prometido isso (cf. Sl 2,7ss; Gn 49,10), mas restava definir como e quando isso ocorreria. O Pai prometeu o reinado ao Filho depois de seu sofrimento (Hb 2,9). O diabo ofereceu um atalho sofista: uma coroa sem a cruz. Era um compromisso. Então as questões são: Como Jesus se tornaria rei? Você pode usar um meio errado e, no fim, conseguir fazer o bem? A Moral nos ensina que os fins jamais justificam os meios. A resposta de Jesus encerra a questão:

Retira-te Satanás, porque está escrito: Ao Senhor, teu

Deus, adorarás e só a ele darás culto (Mt 4,10).

Nada é bom se é errado, se viola as Escrituras, se contraria a Moral. O que é intrinsecamente mau jamais se tornará extrinsecamente bom. Na luta pela dominação, Satanás paga o que for necessário. O diabo ofereceu tudo para “comprar” Jesus. Se houver um preço pelo qual você desobedecerá a Deus, pode esperar que o diabo virá pagá-lo. (cf. Mt 16,26). Nesse particular, o diabo oferece atalhos. Ele oferece o mais fácil, o mais atraente caminho ao poder e à vitória. Jesus recusou o atalho. Cumprindo o projeto original ele ganhou os reinos do jeito que o Pai tinha determinado. Hoje Satanás tenta as igrejas a usar atalhos para ganhar poder e converter pessoas.

O caminho de Deus é converter ensinando o evangelho (Rm 1,16). Exatamente como o diabo tentou Jesus para corromper sua missão e ganhar poder através de meios carnais, assim ele nos tenta atualmente.

O diabo oferece compromissos travestidos em bons propósitos. Ele testa a profundeza de nossa pureza. Ele nos tenta a interpretar equivocadamente as Escrituras para apoiar um determinado ponto-de-vista ou dizer uma mentira de modo a atingir um bom resultado. Nunca é certo fazer o que é errado. Como conclusão, vemos que nesta batalha há uma luta entre os dois leões (1P 5,8; Ap 5,5). Jesus ganhou uma vitória decisiva.

Os que vencem a tentação e o pecado são reservados por Deus para o grande banquete do céu. O sangue de Jesus, derramado na cruz é o penhor dessa vitória.

São os que vieram da grande tribulação, lavaram e

alvejaram suas vestes no sangue do Cordeiro (Ap 7,14).

Jesus enfrentou e venceu as tentações. E ele fez isso do mesmo modo que nós podemos fazer. Confiou em Deus (1Jo 5,4; Ef 6,16); usou as Escrituras (1Jo 2,14; Cl 3,16); resistiu ao diabo (Tg 4,7; 1Pd 5,9). O ponto crucial é este: Jesus nunca fez nada de errado. Que Deus nos ajude a seguir seus passos (cf. 1Pd 2,21).

Sobre a tentação há um outro aspecto a considerar. Trata-se de uma investida do Maligno com vistas a desviar o ser humano do caminho de Deus. Tentar funciona, às vezes, como sinônimo de “por à prova”, numa expressão semelhante a desafiar. A tentação pode ser aquele estímulo que nos impele ao mal, mas também o que leva a superá-lo. Em muitos casos a tentação nos desafia e serve de motivação para a resistência, para a superação e demonstração de fidelidade a Deus. Jesus orou e recomendou que orássemos para vencer as tentações.

Vigiem e orem para não caírem em tentação

O modelo de oração de Jesus (o Pai-Nosso) revela não somente a simplicidade com que devemos orar, mas demonstra também a espiritualidade com a qual nós devemos nos aproximar de Deus. Assim como a quinta petição do modelo de oração é dirigida para o perdão do pecado passado (”perdoa as nossas ofensas”), a sexta se preocupa com as possibilidades de pecado futuro (“...e não nos deixes cair em tentação...”).

Ela nos lembra do poder do tentador para enganar e destruir. Graças a Deus, não temos que lutar com ele sozinhos; o Senhor prometeu ajudar-nos! Jesus, nesta petição, ensina-nos como apelar a Deus por essa assistência.

O que significam as petições do “Pai-Nosso”? As palavras “não nos deixes cair” sugerem a necessidade da orientação de Deus nas decisões da vida. “Não cabe ao homem determinar o seu caminho” (Jr 10,23). Precisamos olhar para Deus, para que nos mostre o caminho que devemos tomar. A expressão “não cair em tentação” pode significar a mesma idéia que “pelas veredas da justiça” (Sl 23,3).

Se for, toda a exortação revela a intenção de nosso coração, não somente de abster-se “de toda forma de mal” (1Ts 5,22), mas também de agradá-lo em tudo (Cl 1,10). Tal meta exige a maior sobriedade e vigilância contra as várias ciladas do diabo (1Pd 5,8) para que não sejamos conduzidos ao pecado. Exige que estejamos constantemente em contato com as palavras do Senhor, lendo-as diariamente e meditando sobre elas continuamente, desde que elas revelem o caminho no qual devemos andar (Sl 119,105). Deus, em certas ocasiões, como que permite a tentação, para provar a nossa fidelidade.

Uma atenção especial para quem deseja fugir das tentações deve ser dirigida contra os “Pecados Capitais”, pois estes atentam contra as virtudes morais. Relacionamos abaixo aqueles pecados, com um alerta de que é por meio deles que nos ocorrem as principais tentações.

1. soberba

Sintomaticamente, é relacionado em primeiro lugar, talvez por estar associado ao pecado de Adão, que se achou muito importante, talvez igual (ou melhor) a Deus; está relacionado com as falsas posturas, à empáfia de quem se julga o tal;

2. avareza

Refere-se ao apego desmedido aos bens, vício que prejudica a fraternidade, a solidariedade e a partilha;

3. luxúria

Aponta diretamente para os pecados da carne, os desejos impuros, em pensamentos, palavras e atitudes;

4. ira

São os atos de impaciência, intolerância e raiva, que vão se refletir em ofensas, agressões (verbais e físicas) aos irmãos;

5. gula

É o vício capital que se caracteriza pelo ato de comer e beber mais do que o necessário; a gula aponta para dois resultados negativos: o prejuízo à saúde de quem come demais, e o desperdício de alimentos que poderiam ser melhor aproveitados por outras pessoas;

6. inveja

Dizem os teólogos que a inveja é a prática do diabo; como ele não pode ter a amizade de Deus, inveja o homem; quando se inveja os bens e dons dos outros, estamos afirmando que Deus foi injusto, favorecendo alguns em detrimento de outros;

7. preguiça

A preguiça é o vício do ócio e do laxismo; o coração e a mente do preguiçoso é um campo fértil para a entrada de maus pensamentos, além da apatia para o trabalho e para a solidariedade.

No desígnio de Deus que visa divinizar o homem em Cristo, a prova, e sua exploração satânica, a tentação, são inelutáveis: fazem passar da liberdade oferecida à liberdade vivida, da eleição à aliança. A provação ajusta o homem ao mistério de Deus. O Espírito faz discernir no mistério da cruz a passagem da primeira para a segunda criação; a passagem do egoísmo ao amor. A prova é pascal.

A expressão “livra-nos” (no grego rissai) sugere a necessidade de se invocar o poder de Deus nos perigos da vida. “O espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca” (Mt 26,41); mas Deus “é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos, conforme o seu poder que opera em nós” (Ef 3,20). Aqueles “guiados pelo Espírito” através de sua revelação serão capazes de mortificar as “atitudes do corpo” (Rm 8,13s) e produzir “o fruto do Espírito” (cf. Gl 5,22). Quando formos assim “fortalecidos com poder, mediante o seu Espírito no homem interior” (Ef 3,16), Cristo habitará em nós e estaremos libertados do mal. Enquanto isso, vale a advertência de Jesus:

Vigiem e orem para não caírem em tentação

Este texto faz parte da meditação levada a efeito em um retiro de leigos realizado em Caxias do Sul, em abril de 2008

O autor é teólogo leigo, biblista e Doutor em Teologia Moral