INDIVÍDUO E PROPRIEDADE

(versão sem notas)

Resumo

Esse estudo visa a mostrar, partindo de um ponto no qual as relações econômicas seriam democráticas para os indivíduos, o desenvolvimento destas relações atentando-se à forma pela qual a propriedade interfere no caráter democrático delas.

Esta análise se fará a partir de um modelo teórico-genérico, mas se deve ressaltar que as causas, as conseqüências e as soluções, embora adquiram esta forma pura pela ausência da maior complexidade de aspectos humanos e naturais, podem ser encontradas, notadas ou objetivadas de alguma forma na realidade.

0. Introdução

Usar-se-á a noção natural de indivíduo humano, aquela que dispensa explicações maiores. O ser humano, indivíduo, o é enquanto vive, pois é em vida que pode “exercer-se”, com suas respectivas capacidades e demandas. E, como indivíduo, considera-se só a ele mesmo, e não o grupo ao qual pertença, salvo se isso for acenado pelo texto. Isso significa que é indivíduo João, Maria ou Pedro, e não suas organizações de trabalho, de lazer, as suas famílias, as suas linhagens, os seus estados ou os seus corpos sem vida.

A democracia num meio social qualquer é resultado de acordo entre as partes que lhe constituem, embora nem todo acordo seja democrático. As partes podem ser indivíduos e o acordo pode ser econômico. Com essas duas condições satisfeitas, pretende-se trilhar até a complexidade da sociedade moderna um caminho de desenvolvimento, a partir de condições democráticas (e da determinação destas condições), para então introduzir a propriedade, sua relação com a noção de sujeito, e o reflexo no aspecto democrático de acordo econômico.

1. Condições iniciais

Se é verdade que uma relação democrática supõe que, em algum ponto, os indivíduos tenham partido de uma igualdade de condições, é possível estabelecer, com base nos elementos da relação econômica, quais condições iniciais para que uma relação social deste tipo seja democrática. A isso se deve acrescer que as particularidades do indivíduo são dedutíveis da sua existência como tal, da sua diferença em relação aos outros.

Os elementos econômicos básicos são o trabalho e o capital . A qualidade da força de trabalho de um indivíduo envolve suas peculiaridades, ou seja, suas capacidades e suas demandas e, portanto, se submete a uma diversidade natural . O capital, todavia, não é diverso em relação aos indivíduos, ou seja, não há diferença de capital entre eles. Isso porque não há, naturalmente, nenhuma ligação do capital ao indivíduo ; o conceito de propriedade, entretanto, muda essa situação.

Para ser mais preciso, é mesmo verdade, como lembra Marx, que para se produzir é necessário apropriar-se. Daí, duas situações, igualmente democráticas:

Uma das quais, de apropriação arbitrária individual do capital, cuja relação econômica social advirá à produção. Ou seja, primeiramente os indivíduos produzem separadamente (e então exercem uma relação de propriedade no ato com o capital) e somente depois trocam entre si seus produtos. A outra situação é aquela em que é necessário produzir algo que não dispensa a participação de outros, ou seja, o trabalho que resulta num produto social. Este, que nesta situação caracteriza-se como tal tanto na sua produção quanto na sua distribuição , ao contrário do anterior, que se caracteriza apenas nesta última.

Portanto, para que um acordo econômico inicial hipotético seja democrático, os elementos devem se comportar da seguinte maneira: a força de trabalho deve ser função da peculiaridade de cada indivíduo; o capital, entretanto, ou de propriedade coletiva, ou de “propriedade arbitrária” .

2. Primeiro exercício

Deste ponto inicial, parte-se à prática da produção, o que significa uma dicotomia, mas também um reencontro, após o primeiro exercício.

Os indivíduos, na situação de propriedade individual arbitrária do capital, produzem individualmente e depois trocam o que produziram. Somente nesta última prática há uma relação econômica social, que é democrática. Ora, a disponibilidade de capital é tal que a produção é antes de tudo o resultado do mérito individual, o que se consegue em suas trocas também será, portanto. Nesse caso, o acordo se dá na troca, troca-se o produto. As trocas, então, delegam propriedade dos produtos aos indivíduos; em forma de propriedade privada , o que lhes será o retorno de seu trabalho – sua parte no produto social.

Se, por outro lado, um dado grupo social precisa realizar alguma tarefa, produzir algo que demande o trabalho conjunto, numa situação inicial, democraticamente o fará com a propriedade coletiva do capital. Com o mesmo capital, cada indivíduo trabalhará de forma diferente, então. Os indivíduos têm capacidades e demandas distintas, de forma que farão o acordo de produção, que resultará numa divisão social do trabalho democrática . O que for produzido, o produto social, já então terá destino determinado pelo acordo de trabalho. Será, por conseguinte, distribuído em forma de propriedade privada .

É claro que ambas as formas de apropriação podem se mesclar num grupo social; o que interessa, entretanto, é demonstrar que a ausência de diferença/diversidade de propriedade do capital é imprescindível apenas no início da relação social, para que ela seja democrática. Porque, na recompensa pelo trabalho, vinda em forma de propriedade privada , está o gérmen do capital privado e, naturalmente, a diferença de capital entre os indivíduos. Resultando numa situação de dessemelhança de capital que, todavia, não se caracteriza antidemocrática.

3. Segundo exercício.

Do primeiro exercício resultou a propriedade privada. Contudo, a formação da propriedade privada do capital é uma situação que advém a da formação da propriedade privada simples; isso é primordial neste estudo. De qualquer forma a diferença de propriedade de capital entre os indivíduos de um grupo muda a relação de trabalho entre eles, entretanto é o período de formação do capital privado que determinará, do fim do primeiro exercício em diante, o caráter democrático ou não do acordo econômico social.

A propriedade privada do capital por parte de certos indivíduos submete outros a algumas condições de trabalho. No sentido de que, tendo menos capital , melhor que um indivíduo se submeta a quem tenha mais, na medida em que a produtividade será maior e, mesmo que sua parcela de ganho seja menor proporcionalmente em relação à do proprietário, ela supera a produção com capital menor.

A primeira situação é a de formação de capital individual. Um indivíduo transforma seu ganho em capital e agora fará acordos de produção com os outros com a interferência do seu capital, da propriedade dele. Então os acordos daqui em diante, se analisados como iniciais, caracterizar-se-iam antidemocráticos, afinal são baseados na diferença de propriedade de capital. Porém, na medida em que o capital deste indivíduo foi conseguido por mérito dele nas relações anteriores, a relação continua democrática, embora não inicial.

A segunda situação é o acúmulo de capital além do indivíduo. Um indivíduo tem a propriedade de um capital que não foi conseguido por ele, mas por outro indivíduo de uma geração anterior, por exemplo. Quando for fazer acordos, estará sendo antidemocrático, uma vez que não obteve aquele capital por mérito nas relações econômicas; e todas as vantagens advindas desta propriedade confirmarão a deslealdade do acordo.

Esse descompasso evidentemente tende a aumentar ao longo do tempo.

4. Indistinguibilidade do Produto

O tempo traz, além da renovação dos indivíduos e do acúmulo de capital, a complexidade para as relações econômicas.

Para analisar os aspectos dela, devem-se relembrar as duas formas de realização do primeiro exercício. A primeira, que diz respeito à apropriação arbitrária, pode ser transposta para o segundo exercício, no qual a iniciativa dos indivíduos proprietários de capital os fará produzir algo e depois trocá-lo. De outro ponto, a situação da propriedade coletiva, transposta para o segundo exercício e para a sociedade complexa, pode ser uma relação econômica de um conjunto cooperado, por exemplo; mas pode corresponder à toda sociedade. Aonde se quer chegar finalmente, é na conclusão de que a produção, quando atinge a complexidade nas relações econômicas, torna “produto social” a riqueza produzida.

Numa sociedade complexa, o que é produzido envolve inclusive indivíduos que já não existem mais. É a partir de um capital anterior que se multiplica o atual, e o anterior foi produzido pelos indivíduos que já se foram. Mas assim como o que foi produzido nasceu das relações econômicas entre aqueles indivíduos, o processo, a partir de agora, será um conjunto de relações econômicas diferentes e sobre capital acumulado – e variado internamente. Ademais, a produção resultará em diversos produtos diferentes, mas que se igualarão como oferta do produto geral da sociedade, ao qual se deve resgatar uma parcela como remuneração pelo trabalho dentro da sociedade.

Ou seja, embora haja expressões da maneira de se produzir conforme a situação de iniciativa e posterior troca, a interpenetração dos fatores de produções “parciais” transforma a sociedade num grupo que troca trabalho, diante de um capital só , produzindo algo que será então dividido, consoante alguns traços da outra situação do primeiro exercício . No entanto, a divisão não será a partir de um acordo “naturalmente” democrático, tendo em vista a complexidade da sociedade e seu reflexo nos indivíduos e que a esta altura já há acúmulo de capital além do indivíduo. Então, as relações econômicas são regidas por leis, que ao garantirem a propriedade do capital, traçam o peso do trabalho de cada indivíduo e, conseqüentemente, sua parcela de ganho no produto social.

5. Conclusão

Se, na sociedade complexa, a lei define a propriedade do capital que por sua vez esboça a quantidade de trabalho e de remuneração de cada indivíduo, que legislação apontaria para que a economia fosse democrática naquela sociedade? Aquela que igualaria as remunerações? Não. Também não seria resposta tornar propriedade coletiva todo o capital da sociedade, impedindo a formação de capital, porque estudamos que até certo ponto ela é democrática; e sabemos o quanto ela é importante. Distribuir o capital em propriedades iguais não é possível também, haja vista sua diversidade real.

Viu-se que a transferência de capital além do indivíduo torna injusta as posteriores relações econômicas. O capital produzido anteriormente pela sociedade, que não mais é propriedade por inexistir o indivíduo, deve ingressar nas relações econômicas do momento como parte da propriedade da sociedade. No sentido de que este capital seria usado para apoiar os novos indivíduos que ingressam nas relações econômicas, pondo-os em uma posição mais democrática na sociedade. Posição de onde poderiam partir ou permanecer, segundo seu trabalho; posição que garantiria suas possibilidades de iniciativa e formação de capital. Essa transferência de capital poderia acontecer de diversas formas e nenhuma delas poria fim à livre iniciativa; muito pelo contrário, a fortaleceria no que há de mais democrático.