A Família e a Comunhão de Bens
A verdadeira família, instituída segundo os moldes de Deus em sua magnitude de amor, gerada em consequência de um matrimônio de comunhão e partilha - [Por isso o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher e os dois serão uma só carne - Mt 19,5] - só tem razão de ser e existir se em sua plenitude estiver inserida a comunhão total dos bens. Sem esse aspecto, vivido primeiramente pelo casal e posteriormente estendido aos filhos através do exemplo contido na relação construída entre os cônjuges, não se poderá falar em comunidade de amor.
A comunhão dos bens, não só na família, mas em toda comunidade cristã, tem uma relação muito mais ampla que somente a questão financeira ou o ato de se colocar algo em comum. Comunhão é partilha. E para partilhar, tanto no âmbito material quanto espiritual, o primeiro passo é acreditar e vivenciar a presença de Deus naquele ato. É preciso ter a consciência de que se constrói muito mais quando dividimos (no verdadeiro sentido de partilha) o que temos, sem a medida humana de querer presenciar ou obter o resultado imediato, esperado ou planejado.
A comunhão dos bens passa antes de tudo pela comunhão de almas. E é vivenciando o amor recíproco que construímos essa comunhão. É impossível compartilhar o que não temos. É impossível viver em unidade, sem construir a unidade. É impossível gerar comunhão, sem gerar Jesus em meio, ou seja, gerar a presença D’Ele entre nós.
Para colhermos o fruto se faz necessário, antes de tudo, plantar a árvore. Mas plantá-la somente não basta. Bons frutos dependem de boas sementes, de terra fértil, de cuidados diários e, acima de tudo, de uma boa poda. Uma árvore que sofre uma poda no tempo certo perde o galho ou o ramo cortado, mas ganha na qualidade do fruto que certamente virá.
A comunhão dos bens inicia-se na percepção do tudo que podemos perder em benefício daqueles que estão à nossa volta. Um perder do ter para construir um ser comunhão e um estar em comunhão.
A simplicidade da comunhão dos bens, se vivida com amor, pode transformar a vida de famílias inteiras, como a de um casal que compartilhou sua experiência num encontro de famílias que participei recentemente: “Procuro valorizar ao máximo o trabalho de meu esposo. Sei o quanto custa a ele o esforço cada vez maior em trazer o sustento para cada um dos cinco membros da família. Quando vou à cozinha preparar o almoço, meço com cuidado cada porção a ser feita. Peço a Deus que seja sempre o suficiente para que todos comam à vontade, mas que não seja nada desperdiçado. Não jogo nada fora, reaproveito as sobras usando a criatividade em novas receitas de bolinhos, tortas etc. Não é avareza. Preparo com amor toda a comida e agradeço por tê-la em casa.
Quando vou lavar a alface, por exemplo, procuro abrir a torneira o mínimo possível para que não haja desperdício, sei quantas pessoas não tem o que comer ou beber. Aproveito ao máximo as folhas da verdura, até mesmo o talinho, aquela parte mais durinha. Para minha surpresa, um dia à mesa, meu filho de cinco anos testemunhou: - Mamãe, a salada está uma delícia! Mas a parte que eu mais gosto é o durinho da folha. Faz um barulhinho quando a gente come”.
O marido completou: “Percebo o quanto é difícil para ela o trabalho doméstico e o quanto ela se coloca no amor para dar conta de tudo. Consideramos tudo que temos como se nos fosse emprestado por Deus por um determinado tempo, e que, tivéssemos de devolver a Ele, a qualquer momento, na pessoa de um irmão próximo. Ao comprar uma roupa, por exemplo, pensamos também em quem a poderia usar, quando não mais nos servisse. Assim, por entendermos que o bem não é nosso, o valorizamos muito mais ao colocá-lo em comum. E somos felizes por isso”.
A harmonia criada quando colocamos em comum o fruto do nosso esforço, gera no outro uma reciprocidade, que quando verdadeira, autêntica, leva-nos até ao sacrifício, superando tanto os problemas causados pela falta de dinheiro quanto pelo excesso. Este amor que nos capacita a dar a vida pelo outro, transborda do casal para os filhos, que entendendo os limites financeiros dos pais, tornam-se solidários com os irmãos. Não há desperdício e o que sobra é partilhado, observando a dignidade de quem recebe. Vivendo esta perspectiva do amor recíproco (a comunhão total dos bens) até mesmo os momentos mais difíceis são enfrentados corajosamente, compartilhando o peso da cruz com Jesus Abandonado(*).
A abundância não se acumula e mesmo grandes quantias são generosamente cedidas a quem mais precisa. Aquele mesmo Pai que socorre na pobreza, recompensa com o cêntuplo esta generosidade. Quando procuramos viver a comunhão dos bens, inspirados na vontade de Deus, reflete-se em nossa família o retrato da primeira comunidade cristã, que colocando tudo em comum, faziam circular um amor recíproco contagiante capaz de mudar tudo ao seu redor (At 4,32-37).
É necessário então sermos fiéis nas pequenas coisas, para realizarmos esta comunhão. É preciso renunciar ao consumismo proposto pela sociedade moderna, avaliando em unidade com o(a) esposo(a) o que realmente é prioritário como necessidade básica da família. É indispensável uma previsão de gastos mensais e o compromisso de todos em não ir além desta previsão, e se possível, constituir um modelo de poupança adequado à realidade de cada família. Adequar-se a estas despesas e proporcionar aos filhos a chance de demonstrar que também fazem parte deste comportamento é ponto fundamental para a construção da partilha.
De fato, cada vez mais, no mundo de hoje, se faz necessário a educação da vontade dos nossos filhos. O autoritarismo dos pais no passado deu lugar hoje à permissividade sem limites. Essa atitude tem formado jovens frágeis e inseguros.
A arte de educar consiste em fazer a criança descobrir todos os dons escondidos nas suas pequenas renúncias. Ela, de fato, não renuncia facilmente a uma satisfação se não for por outra ainda maior. Não se trata de dizer não e basta; mas de estimulá-la com a perspectiva de um bem maior. Dizer um não custa tanto àquele que o diz quanto a quem o escuta. Como pais e educadores, devemos estar firmemente convictos do bem que esse esforço faz na educação das crianças. O não é um dom necessário! É ele que constrói os limites dos nossos filhos e dá a eles a sã possibilidade de escolhas futuras.
Lembro-me perfeitamente de um dia em que estávamos em um supermercado, eu e minha filha Maria Clara, de seis anos, fazendo a compra para o fim-de-semana. Ela pegou um pequeno carrinho e o encheu com muitos brinquedos, doces e revistas. Vendo aquilo, aproximei-me carinhosamente e disse-lhe que naquele momento não tínhamos condições de comprar tudo aquilo. Na sua posição de criança quis saber por que não podia.
Disse-lhe: “filha, olha essa boneca. Você tem uma muito parecida com ela e só tem uma na prateleira do mercado. Se você comprar essa, uma outra criança que não tem nenhuma, não vai poder comprá-la. Não seria um ato de amor deixar essa boneca para uma outra criança? O mesmo acontece com todas essas revistinhas, não é mesmo?” Dizendo isso, fui para a fila do caixa. Minutos depois ela chegou. Percebi que havia devolvido muitas coisas na prateleira.
No caminho de volta para casa, após alguns minutos de silêncio, ela chamou-me olhando pelo retrovisor interno do carro e disse:
- Papai, você não precisa comprar um monte de presente para mim.
- É filha, por quê? Perguntei-lhe.
- Por que você já é o meu presente!
Meus olhos encheram-se de lágrimas e percebi então o quanto é verdadeiro o amor de Deus por nós. Ele não deixa passar em vão um esforço de amor. Ele não se deixa vencer em generosidade. A recompensa por tê-la amado em um pequeno gesto de comunhão, foi capaz de gerar entre nós a presença extraordinária de um Jesus que jamais nos abandonará.
(*) Expressão utilizada por Chiara Lubich (1920 - 2008) fundadora do
Movimento dos Focolares – Obra de Maria, para significar o sofrimento
de Jesus quando se sentiu abandonado pelo Pai. (Mt 27,46).