Não nos pertence a vida?

Temos nós o direito de coagir alguém a não cometer suicídio? Lembro-me de uma cena no final do campeonato brasileiro do ano passado. Um torcedor do Vasco da Gama tentava, ou apenas ameaçava, suicidar-se saltando da marquise das arquibancadas de São Januário. Bombeiros, policiais e alguns torcedores se aproximam e agarram o rapaz. Alguém tem esse direito? Ou se trata simplesmente do uso da força contra o arbítrio de outrem? A meu ver, a segunda alternativa é a correta (e diga o que disser o direito positivo). Os bombeiros e policiais deveriam tentar dissuadir o torcedor desconsolado a fim de impedir que outros torcedores fossem atingidos pelo corpo do vascaíno (e outras medidas precisariam ser tomadas, é claro, como o afastamento dos torcedores que estavam abaixo, nas arquibancadas). Talvez até se pudesse questionar se caberia ao Estado agir em vista da dissuasão de suicidas. Acredito que isso possa ser justificado em termos liberais se pensarmos que o Estado não pretenderia com isso impor ao torcedor uma visão do que é melhor para o torcedor. Ou seja, o Estado não visaria ao convencimento de que seria melhor para o torcedor continuar vivendo mesmo com seu time na segunda divisão. (Ah, como é bom torcer por um time que não conhece a segunda divisão: uma razão a menos para suicidar-se). Voltemos ao ponto e mais seriedade! Ok. O que estou querendo dizer é que o Estado pretenderia com a dissuasão, ao menos em casos análogos ao do torcedor vascaíno, apenas proteger a propriedade de terceiros (ou seja, proteger o corpo das outras pessoas).

Imaginem agora a agressão à liberdade que representa a defesa de que o Estado poderia (não interessa se for a pedido da família) impor um tratamento médico a quem deixou consignado explicitamente numa carta que não deseja receber tal tratamento se tiver sua autonomia perdida face a uma doença grave. Em Portugal se discute um projeto que consagra no direito positivo o direito natural à liberdade individual de afirmação do pertencimento da vida do indivíduo ao próprio indivíduo. Um tal de João Pereira Coutinho, articulista da Folha de São Paulo, é contra a ideia de que a vida nos pertence (cf. FSP de 26/05/2009, Ilustrada). O articulista afirma que “estamos pouco nos lixando para” a autonomia dos indivíduos. João Pereira Coutinho busca socorro nos fatos. “Se pudermos, impedimos alguém de saltar de uma ponte; de tomar a dose letal de comprimidos; de pendurar uma corda e enforcar-se nela. [...] Não conheço nenhum ser humano que, testemunhando a iminência do ato [suicida], não faça tudo o que estiver ao seu alcance para evitar o desfecho fatal”.

Eu gostaria muito de vê-lo argumentar que tem algum direito de interferir na autonomia dos indivíduos. Ou seja, valeria a pena os defensores da tese de que a nossa vida não nos pertence justificar, por exemplo, que minha autonomia está sob a condição deles acharem o que é certo ou não eu fazer com a minha vida. O articulista parece argumentar da seguinte forma. Se as pessoas não respeitam de modo incondicional a autonomia dos outros, então é correto não respeitarmos a autonomia alheia. Opa! A conclusão está perdida. Falta uma premissa para apoiá-la. Com efeito, do fato das pessoas estarem pouco se lixando para “essa autonomia” não se segue nada a não ser uma mera constatação. Constatação indevidamente convertida no direito que alguém teria de julgar o que é melhor para os outros. A meu ver, parece se tratar de uma clara “falácia naturalista”, isto é, de uma fracassada tentativa de deduzir proposições éticas de proposições factuais.