Questões de Gênero - SER ou não SER. Eis a questão
Capítulo I
1 SER OU NÃO SER. EIS A QUESTÃO
Desde os primórdios que definir um indivíduo como Homem (ser humano) perpassa as fronteiras biológicas, genéticas etc. Em batalhas antológicas como a que ocorreu no Vale de Elá, envolvendo Davi e Golias – israelitas e filisteus – observa-se o gigante filisteu afrontando o exército de Israel chamando seus soldados de animais. Adolf Hitler defendia que judeu, cigano e homossexuais não eram seres humanos.
Atualmente, há israelitas que se negam frequentar o mesmo ambiente que um palestino por julgá-lo um ser inferior; brancos que se julgam melhores que negros, e negros que se segregam ou são segregados por sentirem-se ou por serem rotulados como inferiores, tratamento semelhante recebem os latino-americanos na América do Norte e em algumas regiões da Europa.
Mas, o que determina que um indivíduo seja “humano e o outro não”, um é melhor o outro pior? Quem, senão as próprias convenções humanas? O que difere um antigo israelita de um filisteu? Os membros inferiores? Os superiores? O tamanho do cérebro? Qual a diferença entre judeus e “arianos”, negros e brancos?
A ciência moderna reconhece que não há, nem jamais houve raça superior a outra. Isto se dá pelo simples fato de que só existe uma única raça: a RAÇA HUMANA! Assim, percebe-se que o fator determinante não é genético, mas cultural, na maioria dos casos político.
Não é surpresa que se um ser humano, qualquer um, nascido nos Estados Unidos, Japão, Haiti ou Angola for privado do convívio com outros de sua espécie, ele jamais desenvolverá habilidades como a da fala, por exemplo, andará ereto, experimentará sensações tipicamente humanas: medo, paixão, solidão, suas decisões serão tomadas a partir de estímulos ao invés de serem motivadas pela razão.
Em contra partida, salvo patologias, qualquer indivíduo do planeta poderá ser uma sumidade na política, esporte, ciências exatas ou humanas; desde que o ambiente lhe seja favorável. E isso é um fato! Por isso, pode-se afirmar com toda certeza que as questões identitárias de gênero também estão atreladas ao ambiente, às suas convenções culturais. Não só o status conferido a este ou àquele povo como também o ser do gênero masculino ou do gênero feminino, e as funções que são atribuídas a cada indivíduo.
É comum encontrar famílias tradicionalmente patriarcais, mas sustentadas pelo trabalho da fêmea. Sobre quem pesa ainda os afazeres domésticos. Uma vez que tarefas como lavar, passar, cozer, cuidar da casa é “função” da mulher – da fêmea. Deve-se atentar para o fato de que do ponto de vista da biogenética, nenhum ser nasce homem (gênero masculino) ou mulher (gênero feminino) simplesmente se nasce e pronto. Todavia, fatores culturais determinarão as questões de gênero.
Lembro-me com emoção do dia em que vi minha esposa celebrando, com aquela doce alegria materna, o primeiro xixi que nosso filho fez no vaso sanitário segurando o próprio membro. Ela gritava: “ele aprendeu com você, amor, veja como faz do mesmo jeito. Certinho!”. Aprendemos tudo por imitação, por transmissão dos mais velhos. Enfim, somos, inevitavelmente, aquilo que a cultura nos forma, ou seria mais coerente dizer: nos força? Decida o leitor.
Há alguns anos uma telenovela mostrou a história de um jovem garoto que cresceu acreditando ser garota, ou seria uma garota que descobriu ser um garoto; que confusão! Tá, deixa prá lá. O que acontecia na trama era que um indivíduo do sexo masculino fora educado como sendo do sexo feminino, ou seja, geneticamente ele era macho, mas por opção da mãe desempenhava o papel de um indivíduo do sexo feminino. Qual não foi sua surpresa quando descobriu que as mulheres – indivíduos fêmeas – não têm “torneirinha”.
Apesar de ser ficção, exemplo como o mencionado nos mostra o quanto é relativo o ser homem ou mulher, uma vez que as escolhas e opções sexuais fogem ao controle dos padrões convencionais, sejam eles religiosos sociais ou econômicos. Os costumes e provavelmente algumas escolhas definirão o gênero, podendo um indivíduo que nasceu com genitálias masculinas optar por apresentar comportamento “natural” a indivíduos que nascem com genitálias femininas. A inversão dos costumes não implica em mudança de sexo, mas uma “perversão do gênero”. Já que o comportamento antinatural não reflete sua gênese.
Há situação em que o indivíduo opta por assumir um comportamento avesso àquele que a sociedade ou a cultura defendem como correto; assumem posturas consideradas ousadas, fora dos padrões: libertinas. Claro que isso depende de onde e quando tal assunção acontece. Isso ocorre porque há culturas nas quais o ser mulher é doloroso, no sentido lato da palavra, ultrajante, e fadado ao anonimato, a não realização pessoal ou profissional. O simples fato de ter nascido fêmea é excludente em si mesmo.
No Afeganistão, por exemplo, a maioria das mulheres é analfabeta, escrava do marido, que mal a alimenta fisicamente. Não há vida social, oportunidade de trabalho, ou a simples liberdade de andar pelas vias públicas sem a companhia de um homem (o marido de preferência). Numa realidade como esta, o nascer mulher é condenar a família à desonra e desgraça. Haja vista, nasce-se marcado pelo sexo.
Some-se a isso o fato de não poder votar, concorrer a eleições, mostrar-se ao mundo e concebê-lo tal e qual, ser ouvida, descobrir o mundo e descobrir-se a ele. Em culturas assim não são raros os estupros, abusos, e, por conseguinte, suicídios, mutilações e outras atrocidades que se citadas desviariam o curso da proposta inicial. Assim, num país como este se houvesse a possibilidade, é provável que alguma mulher se arriscasse em mudar de sexo, caso não corresse o risco de ‘ir ter com Alá mais cedo’, porque ser homem naquela cultura é sinônimo de benção e ventura.
Não é aconselhável que se diga pelas vias públicas de um lugar como esse que todos são iguais perante a lei. Note-se que no contexto desse costume os indivíduos machos gozam dos mesmos plenos privilégios entre si, enquanto que os indivíduos fêmeas são isentos de quaisquer direitos. Lá todos os indivíduos são iguais perante a lei; exceto as mulheres.
É comum ouvir nas escolas da rede pública municipal – que por sua vez recebe um contingente maior oriundo das camadas populares menos favorecidas: pobres mesmos, miseráveis até – o discurso de algumas mães que dizem: “Professor, lá em casa eu sou tudo: o homem e a mulher!” E é claro que não se trata de um hermafrodita; a mãe não tem dois sexos, ela não é bissexual, lésbica, nada a ver.
Refere-se tão somente à condição em que se encontra, por morte, prisão, desleixo, falta de vergonha na cara do cônjuge – como diz mainha – doença, trabalho ou falta dele. Por isso assume a função de mantenedora do lar, conselheira, etc. e tal. Vemos a inversão de valores, pois neste contexto cultural, diferente do anteriormente citado, a fêmea pode desempenhar tarefas e assumir posturas que convencionalmente estão associadas ao macho.
Conceitos tão culturalmente enraizados que uma mãe obriga-se a explicar que ela é “o homem e a mulher”. Por que não colocou que era a mulher e o homem, necessariamente nesta ordem? Porque a história diz que o homem fora criado primeiro. Porque o homem é o cabeça.
Por que não disse simplesmente que pesava sobre seus solitários ombros a missão de educar e alimentar os quatro filhos? Porque em nossa cultura ainda há quem diga que lugar de mulher é na cama ao lado do marido, que lugar de mulher é na cozinha lavando pratos ou pilotando “fogão”. Pré-conceitos machistas e absurdos que anulam ao outro, negando-lhe a oportunidade de ser e de estar.
1.2 A TÊNUE FRONTEIRA ENTRE O SER O ESTAR
Conheço pelo menos uma meia dúzia de pessoas, principalmente mulheres, que se pudessem mudaria de sexo. Algumas não o fazem por que não dispõem de recursos. No entanto, a maioria, no fundo não quer um transplante de órgãos, mas de atitudes! Não suportam mais o comportamento de esposos, namorados, pais, patrões; os baixos salários, enfim. Um enorme iceberg de preconceitos que tornam o SER um enfado e o ESTAR qualquer lugar à margem da discriminação.
Outro dia uma jovem amiga confessou-me que quando criança queria ser homem. Passava o tempo com os meninos, brincava com e do jeito deles, falava e vestia-se como menino. Achava o máximo ser homem. Para você que se permitiu uma indagação aqui vai uma possível razão. Ela tinha quatro irmãos e uma irmã todos mais velhos, ainda tem. Sua mãe passava o dia trabalhando fora, o ambiente doméstico era quase que absolutamente masculino: as brincadeiras, a linguagem, o comportamento, tudo. Como resultado ela decidiu que seria menino, adorava a liberdade masculina. “Menino pode tudo!” – dizia.
Perguntei quando mudou de opinião, pois é casada e curte ser mulher, muito vaidosa e feminista, por sinal. Disse-me que um dia, quando fazia o fundamental I, antigo primário, entrou na sala a pessoa que mudaria sua vida para sempre. Foi paixão a primeira vista, por isso resolveu que voltaria a ser menina. Aquele “menino” por opção que passava os dias jogando bola na rua, agora menina, vaidosa e apaixonada suspirava lembrando-se do seu amor pueril. Quando indaguei se hoje ela era menino ou menina, olhou-me espantada, encheu o peito e soltou o mais “arretado” ‘Oxe, tá doido? Me respeita!’ que já ouvi. E em risos protestou: Menina, ouviu? Me-ni-na! Escreva aí!
É assim mesmo que a coisa toda acontece, embora tênue a fronteira que separa o Ser e o Estar existe e deve ser respeitada. E para fazê-lo, faz-se necessário que se entenda que SER é estado permanente, enquanto que o ESTAR é um estado transitório. O que aconteceu com minha amiga, um evento externo lhe despertou o desejo de ser menino (isso não implica dizer que ela quisesse mudar de sexo, uma vez que o que a fascinava era a liberdade da qual gozavam os meninos; não suas genitálias. Por tanto uma mudança de gênero) acontece comumente a todo instante, é comum à idade, fato comprovado com o novo evento: a chegada do novo aluno, que desencadeia nova mudança – “a menina que estava menino” agora quer ser/estar “menina-menina” novamente.
Na verdade, em momento algum, ela deixou de ser fêmea, mulher, menina como queiram rotular; por um momento encantou-se com as prerrogativas outorgadas ao ‘sexo’ oposto e, desejosa por gozá-los também, opta por ser menino, ou melhor, agir como se fosse um menino! Quando julga que não é mais interessante regressa ao seu estado original.
Perceba que o SER menina – indivíduo do sexo feminino – da minha amiga é imutável, enquanto que o ESTAR menino – gênero masculino – é transitório. Haja vista, sua opção não interfere em sua anatomia. Pois, mesmo quando se concebia “menino” continuava em seu corpo de “menina”. Não se trata de mudança de sexo, mas gênero.