A HISTORIA DA MEDICINA LEGAL
A HISTORIA DA MEDICINA LEGAL
INTRODUCAO
Fideliter ad lucem per ardua tamen- Atual e Verdadeira?
(“Fidelidade à verdade custe o que custar”).(Fielmente voltada para luz , porem com dificuldades).
Um escudo com as insígnias da Medicina e da Justiça ,trazendo a inscrição Fideliter ad lucem per ardua tamen (“Fidelidade à verdade custe o que custar”).(Fielmente voltada para luz , porem com dificuldades).Se encontra a direita de quem entra no atual prédio na Rua dos Inválidos l52 – Centro. Traduz de uma maneira atual e verdadeira o elo entre o Direito e a Medicina, o Direito, através da interface do Direito Penal , Direito Processual Penal, e a Medicina, através da Medicina Legal ou Medicina Forense cujo objetivo seria 1) o exame de corpo de delito de lesão corporal (AECD)feito no periciado vivo, para determinar a gravidade da lesão sofrida, com o objetivo de determinar a pena, conforme prescreve o artigo 129 do CP .2) Exame Cadavérico ou Exame Necroscópico (NECROPSIA), para esclarecimento do crime, através do que se no diz o cadáver. Vamos no ater no primeiro objetivo, dando uma enfese especial ao Exame Subsidiário prestado pela Seção de Neurologia Forense, tecendo breves considerações da Medicina Legal, com Direito Penal , Direito de Processo Penal e Criminologia. Ao terminar seu exame AECD (exame no vivo) o Perito Legista terá que responder os 7 quesitos que são:
Primeiro: se há sinal de ofensa á integridade corporal ou á saúde do paciente;
Segundo: qual o instrumento ou meio que produziu a ofensa;
Terceiro: se foi produzido por meio de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura ou por outro meio insidioso ou cruel ( resposta especificada);
Quarto: se resultou incapacidade para as ocupações habituais por mais de trinta dias;
Quinto: se resultou em perigo de vida;
Sexto: se resultou debilidade permanente ou perda ou inutilizarão de membro, sentido ou função ( resposta especificada):
Sétimo: se resultou incapacidade permanente para o trabalho ou enfermidade incurável ou deformidade permanente ( reposta especificada).
Caso tenha necessidade, o Perito Legista examinador solicitara o auxilio dos Exames Medico Legais Subsidiários, efetuados também por Peritos Legistas, que são no IMLAP o total de cinco seções saber: NEUROLOGIA FORENSE, PSIQUIATRIA FORENSE, OFTALMOLOGIA FORENSE, OTORRINOLARINGOLOGIA FORENSE E ODONTOLOGIA FORENSE. cujo objetivo será para complementar o sexto e sétimo quesito acima especificado, baseando no art. 129 . do Código Penal Vigente .
I - RESUMO HISTÓRICO
A Medicina legal tal como e conhecida hoje e uma especialidade relativamente nova, embora já desde a antiguidade seu esboço se delineasse, quando médico eram chamados para esclarecer determinadas, questões, o que porém ocorria esporadicamente. Nerio Rojas diz “se a saúde física da sociedade desenvolveu a higiene e a medicina social, sua saúde moral, que tem na justiça uma de suas bases mais sólidas; desenvolveu a Medicina Legal”.
Lacassagne divide a Medicina Legal em 3 períodos.
O primeiro, que demonstrou de fictício, englobando as épocas primitivas até o Império Romano. (Lei de Talião, livros sagrados.)
O segundo, tem seu início nas obras dos jurisconsultos romanos e já formam uma legislação regular. Os historiadores acreditam que Numa Pompílio, em Roma ordenou o exame médico das grávidas. Os Imperadores Adriano e Justiniano, valiam-se dos conhecimentos médicos para esclarecer fatos de interesse da justiça. O cadáver de Júlio César foi examinado por um médico que determinou ter sido um único ferimento entre os vários que recebera o causador de sua morte, segunda consta dos relatos de Suetônio.
Depois surgem as Capitulares de Carlos Magno, os Juízos de Bruxaria, nos século XVI e XVII, as leis Carolinas, os progressos científicos e políticos, impuseram a intervenção pericial dos médicos perante à justiça.
O terceiro ou positivo é o moderno e vai do século XVIII até nossos dias, é o período científico.
Procuraremos dar uma cronologia à história da Medicina Legal.
O início da Medicina Legal se perde na história, não podemos ser determinado, como não se pode determinar o início da medicina,porém deve ser posterior ao desta, pois a Medicina Legal pressupõe sociedade organizada e estruturada em leis.
Documentos antigos, milenares, já faziam referência à exame médico-legais.
Na Índia, as leis de Manu indicavam os crimes em que se devia fazer perícia médica para seu esclarecimento. O Código de Manu punia crimes como o homicídio, defloramento, o adultério, os atentados ao pudor, as perversões sexuais. O exame médico legal, tal como a medicina que tinha caráter religioso, não podia estar separado da religião (vedas), e o exame era precedido de um juramento.
Os egípcios também conheciam a medicina legal, sendo que neste povo, como medicina era praticada pelos sacerdotes, também as perícias eram efetuadas por eles. Lei egípcia protegida as mulheres grávidas e punia os crimes sexuais, como o defloramento e o atentado ao pudor.
Os Persas, no seu livro sagrado, Zend Avest, classificaram sob o ponto de vista pericial todas a s lesões.
O código de Hamurabi também fazia referência à assuntos médicos legais. Encontramos estas referências, entre os antigos hebreus, na legislação de Moises e no Antigo Testemunho, bem como na antiga Grécia.
A seguir daremos em esboço cronológico da medicina legal.
1209- Inocêncio III (Legislação Canônica) decretou que os médicos deveriam visitar os feriados que estivessem à disposição dos tribunais.
1234- Gório IX exigia que os médicos devem seu parecer para diagnosticar entre as várias lesões a que fosse mortal. (Decretales-Peritorum indicio Medicorum) ou declarava a nulidade do casamento quando a mulher permanecia virgem, pois o casamento não se consumara. (De Probatione).
1521- Foi feita a necropsia do Papa Leão XIII, que morreu sob suspeita de envenenamento.
1525- Surge na Itália o Editto della gran carta della Vicaria de Napoli, que exigia o parecer dos peritos profissionais. Antes da decisão dos juízes.
1532- Sob o governo de Carlos Magno, é promulgada alei Básica do Império Germânico, o assim chamado Código Criminal Carolino. (Legislação Carolina) e estabelece a intervenção do médico nos crimes de homicídios, aborto, infanticídio, ofensas físicas, obrigando neste caso o exame de corpo delito, não só da vitima como do
Acusado. Carlos Magno precitua que os juízes devem se apoiar nos pareceres médicos.
1575- Ambroise Paré escreve sua obra denominada tratado dos Relatórios, que entre outros temas de cirurgia, aborda temas médicos legais como asfixias, feridas, embalsamentos, virginadade e outros.
1578- João Felipe Ingrassia na Itália publica seu livro.
1595- Batista Condronchi, ainda na Itália,publica um tratado de Medicina Legal.
1995- Também na Itália, Fortunato Fedele publica sua obra sobre Medicina Legal.
1641- Paolo Zachias médico e perito da Rota Romana escreve sua obra Questões Médicos Legais, em 3 volumes, englobando sexologia, psiquiatria, morte milagres, etc. e é considerado um marco na história da Medicina Legal.
1814- Primeira publicação sobre Medicina Legal no Brasil, no Rio de Janeiro, pelo médico Mineiro Gonçalos Gomide sob o título Impugnação Analítica ao Exame Feito Pelos Clínicos Antônio Pedro de Souza e Manoel Quintão da Silva em uma rapariga julgaram santa..
1832- Foi instituída a cadeira de Medicina Legal nas faculdades de medicina da Bahia e do Rio de Janeiro.
1835- Hércules Octávio Muzzi, cirurgião da família imperial, brasileira publica no Diário da Saúde a autópsia do Senhor Regente Bráulio Muniz feita segunda feira 21 de setembro de 1835, às 14: 00, 22 horas depois da morte. E a primeira necropsia médico legal publicada no Brasil.
1836- Reforma do ensino em Portugal inclui o ensino de medicina legal.
1839- Antônio Pereira das Neves apresenta pela primeira vez uma tese de medicina legal sob o titulo Dissertação Médico Legal A cerca do Infanticídio.
1845- Lima Leitão em Portugal traduz o livro de Sedillot.
1846/1847- Nos Anais da Medicina Brasileira, José Martins da Cruz Jobim, primeiro catedrático de medicina Legal da Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil, publica as Reflexões sobre um caso Julgado de Ferimento Mortal.
1867- Pedro Autran da Motta, no Maranhão publica seu trabalho intitulado A Loucura Instantânea ou Transitória.
1877- Agostinho José de Souza Lima assume a cátedra Medicina Legal na Faculdade Nacional de Medicina.
1833- Joaquim Marcelino de Brito publica seu tratado Elementar de Medicina Legal.
1901- Raimundo Nina Rodrigues publica sua obra Manual de Autópsia Médico Legal.
1910- Afrânio Peixoto publica seu Elemento de Medicina Legal.
1938- Flamínio Fávero edita sua obra de Medicina Legal.
1942- Hélio Gomes publica seu livro Medicina Legal.
1943- Veiga de Carvalho Bruno e Segre publica a primeira edição de seu livro Lições de Medicina Legal.
1948- A. Almeida Junior publica seu livro Lições de Medicina Legal.
1928- Decreto n° 5,515, de 13 de agosto de 1928 restitui às autoridades policiais competência para a instrução criminal dos processos, passando o Instituto Médico Legal a integrar o Departamento Federal de Segurança Pública.
Oscar Freire divide a medicina legal brasileira em 3 fases:
Primeira fase, vai até 1877. É a fase estrangeira. Nesta fase, com poucas exceções,os trabalhos feitos no Brasil são de pequena importância, sendo na maioria das vezes reprodução de trabalhos estrangeiros, sendo exceção a toxicologia. A toxicologia na época tinha grande interesse médico legal. Francisco Ferreira de Abreu, barão de Petrópolis, professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1855-*1877), autor de diversos trabalhos, entre os quais se destaca o da redução da matéria orgânica.
Segunda fase, que tem inicio com a posse de Agostinho José de Souza Lima, na cátedra de Medicina Legal da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, sucedendo Ferreira de Abreu. Foi o marco para a formação da medicina legal brasileira. Entre suas iniciativas temos:
a)- Criação do ensino prático de medicina legal, desenvolvendo a parte de laboratório, que era até então restrita à toxicologia.
b)- Criou no Brasil o primeiro curso prático de tanatologia forense, no necrotério da polícia da capital federal, em 1881, apenas 3 anos após ter sido criado em Paris por Brouardel.
c)- Publicou vários trabalhos em revistas científicas.
d)- Publicou livros como o Tratado de Toxicologia Clínica e Química Toxicológica, e Tratado de Medicina Legal.
Terceira fase, começa com Raimundo Nina Rodrigues na Bahia, que compreendeu que não sendo as condições do meio físico, psicológico e social do nosso pais idênticas às da Europa, era necessário se colher e entender em nosso país os elementos de laboratório e de clínica para a solução dos problemas médico legais. È de sua autoria estudo sobre “As raças Humanas e a Responsabilidade Penal do Brasil”. Desde período podemos citar nomes como Afrânio Peixoto, Oscar Freire Diógenes Sampaio, Alcântara Machado, Estácio de Lima, Leonídio Ribeiro e Artur Ramos.
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Alguns nomes importantes da Medicina Legal
• França- Orfila, Devergie, Tardieu, Legrand du Saule, Foderé, Brouardel, Thoinot, Lacassagne, Balthazard.
• Itália- Puccinotti, Lombroso, Zino, Dlippi, Severi, Tamassia, Carrara, Ottlenghi.
• Alemanha- Casper, Liman, Strassman.
• Austrália- Hofimann, Haberda,
• Rumania- Minovici
• Espanha- Lecha Marzo Mata, Maestre.
• Rússia- Bokarius.
Além dos outros citados anteriormente
II. ORIGENS DA MEDINA LEGAL
A associação entre medicina e direito já era relatada em alguns documentos da
Antigüidade, como o Código de Hammurabi (Babilônia, séc. XVIII a.C.), que
estabelecia uma relação jurídica entre médico e paciente. O Código de Manu (Índia,
entre 1300 e 800 a.C.) impedia que loucos, crianças, velhos e embriagados fossem
ouvidos como testemunhas. No Ocidente, interdição semelhante só aparece no Império
Romano, com a Lei das XII Tábuas (449 a.C.). A morte do imperador Júlio César
resultou no primeiro registro de exame necrológico em vítima de homicídio de que se
tem notícia, em 44 a.C. Seu corpo fora golpeado 23 vezes, sendo identificado apenas um
golpe mortal.
Com o tempo, disseminou-se o reconhecimento da importância do testemunho
médico para o julgamento de crimes. Mas foi no período Renascentista que a medicina
legal começou a difundir-se de fato, com a promulgação de leis e a produção de
Legal resultaram no decreto 6.440, de março de 1907, que transformou o Gabinete em
Serviço Médico-Legal. Afrânio Peixoto foi nomeado seu primeiro diretor.
As reestruturações promovidas por Afrânio Peixoto podem ser consideradas o
marco zero da moderna Medicina Legal brasileira. O jornal Correio da Manhã, em
1949, comentaria a importância daquelas reformas:
Para mostrar o vulto dessa empresa, basta lembrar que até poucos anos antes
daquela data, como ainda agora acaba de ser repetido, os loucos que
apresentavam reações anti-sociais, reclamando cuidados da polícia, eram
remetidos como criminosos comuns à Casa de Detenção, onde permaneciam
em promiscuidade com os delinqüentes de toda espécie. Foi também nessa
época objeto de cuidados especiais a organização dos serviços de toxicologia
e quantos outros possam interessar o esclarecimento da justiça em assuntos
dessa natureza. Eram precárias as condições materiais do ambiente em que se
vinham desenvolvendo essas atividades, vendo-se certos serviços, de magna
importância, mal aparelhados ou de todo reduzidos a um ambiente que não
satisfazia às exigências mais elementares.
Ainda que o jornal registre o fato de se repetirem, na década de 40,
arbitrariedades contra os “loucos” já abolidas há tempos (aliás, o tratamento digno aos
doentes mentais é até hoje objeto de reivindicações, sujeito a avanços e retrocessos), o
que se há de ressaltar é que a Medicina Legal passou por importantes transformações no
início do século XX. Os ventos do progresso cientificista e higienista, vindos da Europa,
sopravam forte na Saúde Pública brasileira. O Serviço Médico-Legal mantinha estreitas
relações com as universidades, beneficiando-se do momento favorável que viviam a
Medicina e a Saúde Pública. Se o século XIX foi o período de ouro da Medicina Legal
no Ocidente, pode-se dizer que, no Brasil, ela nasceu de fato nas primeiras décadas do
século XX.
Com sua atuação política, acadêmica e científica, Afrânio Peixoto (1876-1947) é
até hoje considerado, ao lado de Nina Rodrigues, um dos patronos da Medicina Legal
no Brasil. Seu nome batiza o IML do Rio de Janeiro: Instituto Médico-Legal Afrânio
Peixoto (IMLAP).
A designação “Instituto Médico-Legal” surgiu em 20 de novembro de 1922, a
partir do decreto nº 15.848, assinado pelo presidente Arthur Bernardes. Dois anos mais
tarde, o decreto nº 16.670 aprovou o regulamento detalhado da “natureza, fins e
organização” do IML, trazendo uma importante transformação institucional, descrita no
artigo 1º: “O Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro constitui uma repartição técnica
autônoma, administrativamente subordinada ao Ministério da Justiça e Negócios
Interiores”. Desvinculava-se, assim, a medicina legal do âmbito da Polícia Civil19
decreto de 1924 definiu os setores e cargos do IML, suas atribuições e a regulamentação
da perícia e dos exames. O pessoal seria formado por 50 funcionários, sendo 10
médico-legistas. Entre estes, o decreto determinava que deveria haver não apenas
médico-legistas do Instituto, mas também “professores das especialidades da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e de medicina pública na Faculdade de Direito
do Rio de Janeiro” e “alienistas e seus assistentes da Assistência a Alienados, e o diretor
do Manicômio Judiciário” (IMPRENSA NACIONAL, 1923).
1
A divisão da Polícia do Distrito Federal em duas – Civil e Militar – acontecera no início do século, em
decorrência de uma lei de 1902, que autorizou o Poder Executivo a modificar a organização da Polícia.
Foi essa mesma lei que possibilitou a Afrânio Peixoto implementar sua reestruturação no serviço médico-
legal, em 1903.
Segundo Hércules (1988), as novas orientações resultaram na ampliação das
instalações do IML e na construção de um novo necrotério, na Praça XV. Um escudo
com as insígnias da Medicina e da Justiça foi criado para representar a nova instituição,
trazendo a inscrição Fideliter ad lucem per ardua tamen (“Fidelidade à verdade custe o
que custar”).(Fielmente voltada para luz , porem com dificuldades).
A autonomia não durou mais do que uma década. Findo o governo de
Washington Luís (1926-1930), o IML voltou a ficar subordinado ao chefe da Polícia
Civil do Distrito Federal. Em 1932, sob o primeiro governo de Getúlio Vargas,
construiu-se um anfiteatro para que as aulas práticas de Medicina Legal das faculdades
oficiais fossem ministradas no IML. Os professores foram autorizados a emitir laudos
oficiais dos casos apresentados aos alunos. Não foi possível obter informações sobre os
efeitos, na prática médico-legal, do autoritarismo vigente durante o Estado Novo (1937-
1945). Mas sabe-se que períodos de ditadura costumam inviabilizar um trabalho
médico-legal ético e isento de pressões políticas. A sustentação ideológica daquele
regime pressupunha, como um de seus pilares, uma polícia forte e atuante. Sob o
comando de Filinto Müller, houve um esforço no sentido de modernizar a polícia e
“dignificar a função policial, dissociando a imagem polícia/violência” (VELLOSO,
1982, p. 98). Para conquistar legitimidade social, a Polícia passou a desempenhar tarefas
claramente assistencialistas, destinadas, por exemplo, aos mendigos e aos menores
abandonados. Em contrapartida, revestia-se do direito de perseguir os descontentes: “Os
que se mostram recalcitrantes com a nova ordem precisam ser combatidos porque são
injustos quando não reconhecem o esforço do Estado para atender ao ‘bem comum’”
(Velloso, Ibid., p. 99). Se teve que participar compulsoriamente desse projeto de
“polícia total”, a Medicina Legal, ao menos nos aspectos técnicos, beneficiou-se da
modernização promovida por Filinto Müller.
Dentro deste processo de modernização da polícia, é criado, em 1938, o Departamento Nacional de Segurança Pública, contando com os melhores sistemas de investigação (“polícia científica” em contraposição à empírica), seleção de corpos de funcionários (recrutados não mais nas universidades mas nas Escolas de Polícia) e a montagem de um sistema de vigilância eficiente contra as propagandas e ideologias “antinacionais”. (Velloso, Ibid.,
p. 99)
Como se vê, a modernização teve um custo: a interferência estatal em todas as
áreas, com o conseqüente afastamento, ou ao menos constrangimento, da participação
científica e acadêmica na polícia técnica. Porém a ditadura varguista perdurou por um
tempo relativamente curto, insuficiente para causar prejuízos mais profundos à
Medicina Legal brasileira.
Um novo ciclo democrático iniciou-se, e com ele um período glorioso para o IML, sob todos os aspectos. Em 31 de janeiro de 1949, no governo de Eurico Gaspar Dutra, foi inaugurado o novo “Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto”. Apesar de
manter-se subordinado à Polícia Civil, sua orientação institucional era clara e manifesta:
“Uma Casa da Ciência”.
Localizado entre as ruas dos Inválidos e Mem de Sá, no Centro do Rio, o grande
prédio, composto por duas alas de seis andares, abrigaria durante a década de 50 as
melhores tecnologias em medicina legal do mundo, em ambientes amplos e projetados
especialmente para a realização dos exames laboratoriais e periciais. O prestígio do
trabalho do IMLAP era alimentado pelo intenso intercâmbio com a academia.
Relatos de funcionários antigos não poupam elogios àquela época áurea, quando
os médicos eram bem pagos, as condições de trabalho eram excelentes e o Instituto
abrigava estudantes de outros estados, e até estrangeiros, que vinham aprender com
nossas técnicas de Medicina Legal.
Vinha muita gente de outros países fazer especialização em Medicina Legal
aqui. O IML oferecia alojamento, bolsas de estudo, os cursos duravam até um
ano. No “Livro de Ouro” do Centro de Estudos tem muito nome importante.
(Perito legista)
No início da década de 60, o IMLAP era considerado um dos melhores órgãos
de Medicina Legal das Américas. O que aconteceu para que a instituição chegasse, em
40 anos, ao estado de abandono em que se encontra hoje? Poucas publicações trazem
informações objetivas para responder a esta questão, mas basta observar os principais
momentos políticos da história nacional e considerar suas repercussões
socioeconômicas para entender o lento porém constante processo de sucateamento
dessa instituição.
Alguns profissionais do IML apontam duas mudanças político-administrativas
nos anos 60 e 70 como fatores de desvalorização da Polícia, com diminuição dos
investimentos e queda dos salários: a transferência do Distrito Federal para Brasília
(1960) e a fusão do Estado do Rio de Janeiro com a Guanabara (1975).
No entanto, o possível desprestígio político ocasionado por essas mudanças
talvez não fosse tão grave se não tivesse sido acompanhado pelo total esvaziamento da
autonomia do IML, mais uma vez esmagada por um regime autoritário, desta vez militar
e muito mais prolongado do que fora o Estado Novo. Com o perdão do trocadilho,
pode-se afirmar que o principal golpe sofrido pelo IML em toda a sua história foi o de
1964. A partir daí, o órgão foi relegado à sombra do aparato principal do Governo, que
centralizou na hierarquia militar as principais responsabilidades estatais, incluindo a
Justiça e a Polícia. O endurecimento do regime, a partir de 1968 (com o AI-5 e o
posterior governo Médici), tirou de cena parte dos recursos humanos que davam vida
intelectual ao IML.
Hércules (1988) comenta o empobrecimento científico do Centro de Estudos do
IML no fim dos anos 60, relacionando-o com a deterioração das condições de trabalho e
dos salários.
Em 1969, no IML do Rio de Janeiro surgiu um periódico que seria indexado
na Excerpta Medica de Basilea, tal a qualidade dos trabalhos nele publicados.
(...) Infelizmente só resistiu 4 anos à falta de verbas e de interesse científico
da maioria dos peritos do IML, premidos por condições de trabalho
massacrantes e pelo aviltamento salarial que atingiu a classe médica e forçou
os profissionais a se desdobrarem em vários empregos.
No auge da repressão, trabalhar para uma instituição oficial relacionada à Justiça
e à Segurança Pública significava ter que se submeter às arbitrariedades perpetradas
pelo Estado sob o silêncio da censura e coações de todo tipo. A ultrajante prática de
tortura disseminou-se entre as forças de repressão, e a Medicina Legal brasileira viveu
seus anos mais obscuros. O princípio de “Fidelidade à verdade custe o que custar” foi
aviltado pela omissão e até mesmo a conivência de alguns médicos na ocultação dos
fatos e na produção de documentos convenientes ao regime. Provas cabais de torturas
foram omitidas, homicídios se transformaram em suicídios. Baseado em centenas de
relatos de pessoas presas e torturadas durante a ditadura, o livro Brasil: nunca mais
(1985) traz às claras os terrores ocorridos nos porões do regime:
Da leitura desses relatos, se obtém a certeza da conivência e mesmo
participação direta de médicos e enfermeiros na prática de torturas. Algumas
vezes, estas práticas chegaram ao limite da resistência dos atingidos,
ocorrendo morte. Os médicos que, freqüentemente, forneceram laudos falsos
acobertando sinais evidentes de tortura, também ocultaram a real causa
mortis daqueles que foram assassinados. Os motivos das mortes indicadas
nos laudos necroscópicos, em sua maioria, coincidiam exatamente com a
“versão oficial” dos acontecimentos, tais como: “atropelamentos”,
“suicídios”, “mortes em tiroteio”, omitindo qualquer evidência de tortura. [...]
Os médico-legista, geralmente vinculados às Secretarias de Segurança
Pública, participaram também na ocultação de cadáveres. (p. 234)
É óbvio que os órgãos de repressão recorriam sempre aos médicos “de sua
confiança”, ou seja, aqueles dispostos a compactuar com o serviço sujo. A vida
profissional da maioria dos peritos, porém, passava ao largo dos crimes cometidos pelo
Estado. Fossem eles omissos ou simplesmente ignorassem o que se passava, restava-
lhes fazer o seu trabalho da melhor maneira possível, em condições cada vez mais
precárias e cada vez mais distantes da academia. A Medicina Legal — dadas as
restrições conjunturais que praticamente impediam a dedicação intelectual a essa
disciplina relacionada à Justiça, à Verdade e à Ética — gradativamente perdeu o lugar
destacado que ocupava no meio científico. “Hoje, a sociedade de Medicina Legal é
fraquíssima. Hoje é difícil eu ter um aluno na universidade que diga ‘Eu vou fazer Medicina Legal’” (depoimento de um perito legista).
Praticamente deixou de existir a dedicação exclusiva dos médicos ao IML. A
necessidade de complementar os salários e o desestímulo acadêmico levou a maioria
dos peritos a procurar outras especializações.
A redemocratização dos anos 80 encontrou o IMLAP já envelhecido pelas duas
décadas de escassez de investimentos. Se o ambiente político e cultural tornou-se mais e
mais propício para uma retomada de projetos voltados ao aprimoramento da polícia
técnica, economicamente os anos 90 representaram nova estagnação na esfera pública.
Chegamos à era do Estado mínimo, do “enxugamento de recursos”, da pauperização do funcionalismo público, do dramático desaparelhamento dos serviços mais essenciais à população. O IML chega ao século XXI no mesmo prédio e com praticamente a mesma infra-estrutura dos anos 50, com o agravante da má conservação. A Medicina Legal brasileira ficou para trás.
Em função de maior potencial econômico, países desenvolvidos do
Hemisfério Norte, como Inglaterra, Alemanha, França, Estados Unidos,
Japão e outros, valendo-se de incentivos e verbas governamentais, têm
conseguido introduzir técnicas requintadas na atividade pericial. Como
exemplo, podemos citar a determinação da paternidade pela seqüenciação do
DNA dos pais. Mais ainda, dispõem de meios de divulgação mundial como o
“Journal of Forensic Sciences” norte-americano. (HÉRCULES, 1988)
Não há dúvida que a consolidação da democracia conferiu às universidades o
oxigênio necessário para que a Medicina Legal voltasse a florescer, contribuindo para a
restauração da Justiça e o esclarecimento de fatos ainda encobertos pela herança dos
anos de chumbo. A partir da descoberta, em 1990, de centenas de ossadas humanas em
uma vala clandestina do cemitério de Perus, na Grande São Paulo, iniciou-se um
importante trabalho de peritos da Unicamp no sentido de identificar aqueles cadáveres.
Muitos eram desaparecidos políticos da ditadura militar e seus óbitos foram finalmente esclarecidos.
Aos poucos, em alguns estados brasileiros (os entrevistados citaram o Pará, o Rio Grande do Sul e a Bahia como exemplos), novos estudos e pesquisas vêm sendo desenvolvidos na área. Também no Rio de Janeiro a especialidade vem recebendo mais atenção, e o recente concurso para peritos legistas (2001) pode representar o início de uma fase de ressurgimento acadêmico e político do IML.
A crescente violência urbana no Rio de Janeiro é hoje um urgente desafio social, realçando a necessidade de reformas na área da Segurança Pública para enfrentá-la. A atual Polícia Técnica precisa adquirir rapidamente melhores condições de funcionamento, de modo a contribuir para investigações policiais mais rápidas e eficazes, possibilitando à Justiça e ao Ministério Público atuarem com o máximo rigor
no combate à criminalidade. Simultaneamente, discute-se a adoção de políticas
intersetoriais contra a violência, que passam pela produção e sistematização de
informações para orientar ações estruturais que ajudem a prevenir e evitar as diversas
formas de violência. Esta perspectiva multidisciplinar de compreensão da violência traz
de volta à pauta a questão da autonomia do IML e da Polícia Técnica como um todo, à
semelhança do que já acontece em diversos países. No estado do Pará, desde o ano 2000
as perícias são autônomas em relação à Segurança Pública, funcionando em regime de
autarquia subordinada à Secretaria de Defesa Social. No Rio de Janeiro, vem sendo
experimentada a fusão dos diferentes trabalhos periciais em um só órgão: os Postos de
Polícia Técnica (Poltec) reúnem atividades de perícia médico-legal, criminal e
papiloscópica. O próximo objetivo é a autonomia: projeto elaborado por um grupo de
peritos do Poltec de Duque de Caxias apresenta um plano detalhado para a implantação
dos Institutos Forenses de Tecnologia e Ciência (Inftec), com a mesma estrutura dos
Poltecs mas subordinados diretamente ao Governador ou Vice-Governador do estado
(GIOVANELLI et. al., 2002).
Para quem lê essa retrospectiva histórica, fica a impressão de que apenas os
peritos legistas trabalham no IML. Esta seria uma conclusão errada, mas não a de que
apenas eles influenciam diretamente nos rumos da instituição. Durante toda a história,
técnicos e auxiliares de necropsia, mesmo antes de terem essa designação,
papiloscopistas e escrivãos, entre outros profissionais, também escrevem a trajetória do
IML. Mas sempre estiveram distantes das mobilizações políticas e acadêmicas que
marcaram as transformações da Medicina Legal na Polícia, relegados à condição de
“mão-de-obra desqualificada”. Até o final dos anos 70 a seleção dos profissionais que
assessoram a necropsia (então chamados de “serventes”) era feita sem concurso. Como
disse um técnico entrevistado, eles eram “pegados a unha”, para serem “açougueiros”.
O crescente desemprego dos anos 90 fez com que o último concurso para
auxiliar de necropsia (com exigência mínima de ensino fundamental completo, o antigo
primeiro grau) atraísse uma multidão de candidatos. Muitos dos aprovados têm até
curso superior, alguns são médicos formados. A melhoria de qualificação certamente
pode valorizar a categoria e torná-la mais atuante na defesa de seus interesses e direitos,
e na participação das questões políticas concernentes ao IML.
Notas
1. A divisão da Polícia do Distrito Federal em duas – Civil e Militar – acontecera no
início do século, em decorrência de uma lei de 1902, que autorizou o Poder Executivo a
modificar a organização da Polícia. Foi essa mesma lei que possibilitou a Afrânio
Peixoto implementar sua reestruturação no serviço médico-legal, em 1903.
2. Oficialmente, não existe o cargo de “Diretor” do IML, extinto por decreto. A função
é ocupada informalmente, assim como as “chefias” dos diferentes setores.
3. Facilita o atendimento das mulheres vítimas de violência. Nos exames de estupro ou
conjunção carnal, quando o perito é homem uma das atendentes fica na sala ao lado da
vítima, para evitar constrangimentos.
4. O item II Origens da Medicina Legal foi publicado em 31 de marco de 2003 , na tese de mestrado de Lorenzo Alde sob o titulo Processo de Trabalho sob a ótica dos funcionários do IMLAP.