O QUE É FÉ?
Para Guilherme Sodré
"Não é possível convencer um crente de coisa alguma, pois suas crenças não se baseiam em evidências; baseiam-se numa profunda necessidade de acreditar.”
(Carl Sagan)
"Sem fé é impossível agradar-Lhe porque é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe e que é galardador dos que o buscam"
(Hebreus 11. 6)
A palavra “fé” provém de duas outras palavras: a palavra grega “pistia” e a latina “fides”. Todos que estudam idiomas sabem que é complicado traduzir uma palavra para outra língua, pois cada cultura tem, sobre cada palavra, uma relação e uma forma bem particular de entendê-las. Assim, as duas palavras são traduzidas como “fé”, mas são ligeiramente diferentes. Por conta disso é que existe uma ambigüidade neste conceito na língua portuguesa e em outras línguas. Não basta só saber que “pistia” significa “fé”. É preciso saber o que os gregos e romanos pensavam sobre a fé.
Para os gregos, “pistia” quer dizer crença. Mas para eles, não bastava crer. Era preciso ter o apoio da razão. Por conta disso, é um tanto inadequado traduzir “pistia” como “fé”. A fé religiosa tem um sentido e uma conotação que não se encontravam no pensamento grego. A “pistia” era a crença nos mitos, mas baseados pelas explicações órficas, que era um lado “filosófico” do sentimento religioso grego, enquanto para o mundo cristão, a fé não necessita de um conteúdo racional para ser legítima, podendo tê-lo ou não. Mesmo que alguns achem que a fé cristã é baseada na racionalidade, o que querem é que creiamos na “Palavra de Deus”, não que saibamos com certeza da Sua existência.
Para os romanos, a palavra “fides” queria dizer crença, mas no sentindo de “confiança” pura (donde também surge o termo "fidelidade") ou, aproximando-se da concepção judaica, esperança. Este sim se aproxima bem mais da fé religiosa. É isso que Paulo de Tarso (que era romano) pedia aos gregos. Dizia ele, que Deus queria que acreditassem Nele, não que soubessem da sua existência. Aquele que sabe que existe um deus não tem necessidade alguma de ter fé. A fé é simplesmente confiar na palavra de outrem. Isso era estranho para os gregos. Eles não eram acostumados com isso. Eles estavam acostumados a explicar aquilo em que acreditavam, enquanto aquela nova religião os pedia para simplesmente aceitar.
Eis aqui a grande confusão entre crença simples e fé. Crença também é confiança, mas fé é algo mais que isso. Toda fé é uma crença, mas nem toda crença é fé. A crença distinta da fé se baseia quase sempre em um assentimento relativamente fraco, e baseado em razões. Destarte, não posso saber se esta parede na minha frente existe realmente. Porém, sei que tenho diante de mim uma Evidência, e disso não posso duvidar. Mas não posso saber se essa evidência representa algo real, posso apenas acreditar bom base nessa evidência. Para muitos, o contato com a evidência já é em si o saber, mas não para mim. No entanto, é algo que me dá certa segurança durante a vida diária.
Ao contrário, a “fides” aproxima-se mais da crença religiosa. Se tenho fé na Bíblia, não confio nela porque tenho alguma justificação, mas porque quero confiar nela, isto é, espero que ela seja verdadeira. Era exatamente isso que o apóstolo Paulo quis dizer quando disse que a fé é a "certeza daquilo que se espera", isto é, certeza de algo que apenas queremos que seja verdade, sem que saibamos se é ou não. Assim, se tenho fé em Deus, acredito em Deus sem jamais ter tido uma prova sequer da sua existência. A fé é, portanto, uma crença sem provas ou evidências (o que já encerra em si uma contradição, pois, se a fé é uma crença sem evidências - “bem-aventurados os que não viram e creram” - como podemos dizer que os apóstolos tiveram fé se eles foram testemunhas oculares dos milagres de Jesus? Eles sabiam, e ter fé não é saber – ou “esperar não é saber”). Os céticos apenas acreditam nos objetos dos sentidos, mas não têm certeza se eles estão mesmo lá onde são vistos. No entanto, sua crença é baseada na experiência, ao passo que a fé é totalmente despojada disso. Foi isso que levou o antropólogo Ashley Montagu a dizer: “A ciência tem provas sem certeza. Os teólogos têm certeza sem qualquer prova.”
Isso explica o total anti-intelectualismo bíblico. Todo o pecado veio ao mundo pelos primeiros humanos terem comido da árvore da ciência do bem e do mal, ou seja, o conhecimento era proibido desde o princípio! O que Deus queria era que confiassem na sua palavra. Adão e Eva, ao duvidar de Deus, resolveram pôr as afirmações de Deus à prova, experimentando o fruto proibido, isto é, não confiaram na palavra divina, preferindo experimentar e conhecer a verdade por si mesmos. Em Romanos 14: 23 está escrito: “Mas aquele que tem dúvidas, se come está condenado, porque não come por fé; e tudo o que não é de fé é pecado”. Ora o hábito de pensar, refletir, raciocinar, começa com a dúvida. O questionamento é a base de toda atividade intelectual. Mas Paulo de Tarso diz: “Destruirei a sabedoria dos sábios, E aniquilarei a inteligência dos inteligentes” (1 Coríntios 1:19 ). A inteligência é o que nos leva naturalmente ao questionamento, mas o crente não pode duvidar. Com efeito, também não pode saber... Pode apenas confiar (e não adianta dizer o velho bordão “sabemos pela fé”. Como disse Nietzsche, uma breve visita ao hospício mostra que a fé não prova nada).
Não vejo nada de errado em acreditar em algo que não foi nem pode ser evidenciado ou provado. Só acho ridículo quando tentam convencer os outros de que isso é real. Se não há provas da existência do Deus cristão (e o próprio Deus não concorda que deva haver provas), como poderíamos decidir entre o deus cristão e um deus hindu? Nenhum dos dois foi provado como sendo existente, exigem praticamente as mesmas coisas e são igualmente prováveis. E agora? Os que escolheram pelo deus cristão foram apenas aqueles que se deixam levar pelo senso comum, pelo pensamento estereotipado da sua sociedade, pela autoridade dos pais, dos professores, dos políticos, dos meios de comunicação, pelo “espírito de rebanho”, pois não é possível pela fé afirmar que uma religião é melhor ou mais verdadeira que outra. A fé é uma crença sem evidências e "Sem fé é impossível agradar-Lhe porque é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe e que é galardador dos que o buscam" (Hebreus 11. 6). Também é a minoria dos crentes que nega qualquer forma de razão e experiência em favor de uma fé cega e absoluta. A maioria vive em dilemas entre sua crença e as descobertas da ciência. Alguns tentam, em vão, adaptar as descobertas científicas de forma que não contradiga a Bíblia. Muitos deles pensam sinceramente que conseguem tal malabarismo. Outros admitem que nem tudo na Bíblia está correto, nem todos os fatos históricos ou acontecimentos pretensamente miraculosos fazem sentido. Estes, pelo menos, ainda têm salvação... E não será Jesus quem vai salvá-los.