CRIANÇAS, ADOLESCENTES, E SUAS RELAÇÕES COM A COMUNIDADE.

Talvez a maioria dos adolescentes sonhe um dia fugir de casa, seja para livrar-se da opressão, do descaso, dos conflitos reinantes na família, seja para por em prática seus sonhos, onde a aventura e as novidades têm bastante significação. Muitos não fogem, porque, de alguma forma, sempre há vínculos afetivos que superam os problemas ou porque os sonhos e aventuras custam dinheiro e ficar na casa dos pais, garante a sobrevivência.
Parece que com crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social, há um elo quebrado nessa corrente e esse elo é ao que tudo indica, o vínculo afetivo. Se não há esse vínculo com os seus, como suportar a opressão, os descasos, os conflitos e a fome? Porque não buscar nas ruas, a concretização dos sonhos e das aventuras? O que há perder com tudo isso? Para meninos de rua, principalmente, só o que ganhar, especialmente a tão sonhada liberdade.
Para a maioria das pessoas é impossível compreender porque meninos e meninas abandonam seus lares para morar nas ruas, vivendo da caridade alheia ou às custas de atividades marginais.Para trabalhadores sociais, mais difícil ainda é o desafio pedagógico de garantir que esses meninos e meninas se engajem em programas propostos para atendê-los. Os educadores ficam impotentes quando percebem que os meninos continuam perambulando pelas ruas das grandes cidades, mesmo depois de uma abordagem e a oferta de uma alternativa de atendimento. Esta questão nos remete às teses defendidas pelos educadores sociais quanto à ação desenvolvida.Há educadores que defendem a tese de que o ingresso dos meninos de rua em qualquer programa deve ser de sua livre escolha e que a opção for ficar na rua, deve-se respeitar essa escolha. Outro grupo acredita que se os meninos estão lá é por falta de opções interessantes.Na verdade, os meninos gostam de estar nas ruas, por força do hábito e das relações estabelecidas com seus pares, mas desde que lhe seja oferecida uma opção, há uma aceitação para o engajamento. Entretanto, nem sempre as opções oferecidas, transformam-se em objetivos reais para eles, daí o desinteresse quase que imediato.
Outro dado significativo é dificuldade dos responsáveis pelos programas para trabalhar adequadamente a questão da independência e dos limites a serem vivenciados, optando-se por uma postura liberal e permissiva ou pelo autoritarismo. Ambas são rejeitadas pelos meninos. Muitos educadores, embalados pelas teorias centradas na linha existencial, humanista e liberal (eu individual), desvinculam os meninos de seu contexto histórico e social, não trabalhando adequadamente a relação de contradição entre esse menino (homem) e o mundo. Isso leva a um deixar-fazer, a um deixar-acontecer, esperando que através do exercício da liberdade pura e simples, possa haver o engajamento no mundo. Por outro lado, a maioria dos programas e seus educadores, ciosos de enquadrar os meninos em eficientes normas de comportamento, sem a necessária tomada de consciência e compromissos previamente estabelecido quanto ao valor dessas normas, tendem a cair no autoritarismo, que também não é construtivo.
Educadores que adotam posturas liberais e que estabelecem um relacionamento onde supostamente predominam vínculos saudáveis de confiança, solidariedade e respeito, tendem a confundir tais requisitos e a se comportar como iguais (sem autoridade) e assim não são respeitados pelos meninos. No outro extremo estão, os educadores autoritários, que são obedecidos pela força institucional da qual estão investidos, em função do cargo que ocupam. Em ambos os casos, falta claramente a definição de princípios norteadores de uma proposta pedagógica consistente e inovadora.
Por fim, temos que considerar as relações das crianças e adolescentes com sua comunidade mais próxima.O ser humano, até mesmo por uma questão de sobrevivência e de saúde mental, está sempre localizado, buscando criar raízes. Começamos assentando nossas base na família, ampliamos nas relações com a vizinhança e as completamos nas redes de proteção existentes na nossa comunidade. Aos poucos, estabelecemos uma série de relações, que se não são profundas, pelo menos nos dão o sentimento de pertencer a comunidade e de que ela nos pertence.Existe nessa relação, uma força latente que pode e deve ser o motor dos avanços que se fazem necessários para resolver ou minimizar o problema de crianças e adolescentes em situação de risco. É essa força que deve explorada comunitariamente. E o que seria necesssário para que nossas crianças e adolescentes gostassem muito mais no seu bairro e não virem para os centros das cidades como pequenos vagabundos, pivetes ou qualquer outro adjetivo? O que há de tão atrativo nas ruas do centro que seduz invariavelmente esses meninos?
Em primeiro lugar, a comunidade não protege sua população infanto-juvenil. Abandona-a afetiva e moralmente. Assim abandonados, crianças e adolescentes buscam a companhia de seus pares, também abandonados. Juntos, estabelecem uma série de relações que vão desde a solidariedade cúmplice dos pequenos furtos e das partilhas dos bens conquistados, até a violência e os abusos contra os mais fracos do grupo. Em segundo lugar, a comunidade não utiliza sua força, não descarrega suas baterias em socorro de dessa população. Parece não ser problema seu e sim apenas do governo, o qual é acusado sistematicamente de negar os direitos fundamentais dessa população. Por que isso acontece? Nem sempre a comunidade conhece essa força latente que deveria unir seus componentes, para utilizá-la como poder reivindicatório. É necessário que esta força seja mobilizada para exigir que seus filhos, ricos ou pobres tenham seus direitos assegurados. Espaços democráticos e com opções variadas, como centros esportivos, de lazer e de cultura popular, oficinas e escolas, eventos envolvendo todas as gerações, não apenas de vez em quando, mas permanentemente. Na raiz desse sonho, está o poder da organização comunitária e o reconhecimento de seus direitos sociais e de seus deveres para com a criança, hoje.
* Nota: este texto foi escrito originalmente na década de noventa, para promover a discussão sobre políticas de atendimento para meninos e meninas de rua.Está inserido no ensaio “Meninos de rua: qual o caminho?”. Penso que continua atual. Aqui no Paraná, temos muitos programas competentes, mas o que vejo na televisão pelo Brasil afora, me diz que continuamos nadando contra a maré. É lamentável.
Conceição Gomes