FRAGMENTOS III - BELÉM, BELÉM, PRÁ NUNCA...
E por conta da geometria das formas, os dois irmãos foram às vias de fato. Nada que não pudessem superar com pequenas doses de fraternidade e razoabilidade de ambos, mas, as rusgas diárias, vividas sob o mesmo teto, sedimentam as divergências, desgastando lenta e inapelavelmente a convivência; isso é muito constante entre irmãos, e chegando a hora, seguramente elas cobram os seus preços.
Tudo começou com as opiniões conflitantes entre os modelos escolhidos: um, preferia o modelo tradicional retangular emborcado; já o outro, tinha preferência pela inovação e batia o pé pelo quadrado plano, travado por três varetas horizontais e duas verticais; e a decisão, entalada entre as intransigências, não saía.
Aprofundada a discussão, desfocaram a querela; reviraram sentimentos estranhos ao caso, tão a gosto de surgirem nessas ocasiões, e, a exemplo das rusgas, propícios a fazerem melhores papéis nos acirramentos dos ânimos que abrandá-los propriamente, levando as pessoas a tomarem atitudes extremadas.
--- “Quer saber de uma coisa”! disse ao irmão maior, “belém, belém, pra nunca mais ficar de bem!”
E saiu furibundo o pirralho, deixando o irmão em meio a papéis de seda recortados, varetas de bambus quebradas, panela de grude revirada, um sem número de carretéis, linhas trançadas e rabos coloridos presos às paredes. Um caos desolador no compartimento.
Dias se passaram. Certa manhã, o vento ameno da Jaraguá¹ surpreenderia os dois garotos num esforço de empinar suas raias². Um deles, por fim, conseguindo um vento ascendente, transportou o brinquedo às alturas. Vai então, após uns volteios na calmaria acima, algo ocorreu: de pirueta em pirueta o artefato despencou a ponto de quase roçar a linha de sustentação na grimpa de um abacateiro. O irmão estremecido, já próximo, tudo observava, assistindo indiferente a ação ofegante do outro enrolando a linha desesperado, na tentativa de obter uma resposta rápida no curso da raia que vinha embicada rumo ao horizonte. Debalde o esforço. Num mergulho definitivo, veio célere, de encontro ao cimo do arvoredo, enroscando-se em seus galhos.
Em meio à fúria de sua frustração, o garoto menor ameaçou um safanão na linha, o que viria a destruir o brinquedo, sucedendo a pronta ação do outro, impedindo-o.
---“Espera!” --- gritou --- ”Não arrebenta! Vamos buscar uma escada e tirá-la de lá”.
Foi o que fizeram com sucesso.
Agradecido, o irmão beneficiado com a ação conjunta procurou o outro, propondo:
--- “Trisca aqui”! Ofereceu o dedinho mínimo, recebendo do mano o mesmo gesto; encaixados os dois auriculares, selaram, assim, um pacto em suas discórdias infantis, voltando a fraternidade reinar entre ambos.
Ficara reconhecido ali, na inocência de seus sentimentos, o poder de um simples gesto entre dois dedos, --- por sinal o menor dentre eles e talvez o mais insignificante, --- o condão de reatar e avalizar ainda, aquela que deve ser a mais bela e sólida das amizades: a amizade entre irmãos!
---“De bem”!
E descruzaram os dedos.
(1) rua do bairro de Campinas, Goiânia.
(2) papagaio, pipa.