Cotas raciais e responsabilidade moral
1. Os defensores das cotas raciais precisam:
(a) justificar a legitimidade do Estado na imposição de cotas raciais,
(b) se adotarem o princípio do tratamento desigual para desiguais, como faz o ministro Edson Santos, devem esclarecer como este princípio se aplica justamente às cotas raciais e qual o seu exato escopo e,
(c) assumido o argumento da dívida histórica, será necessário justificar que a proposta que se discute de cotas raciais se ampara no direito natural de reparação por um crime imprescritível.
Tentei nos posts anteriores mostrar que as tarefas de (a) e (b) não são satisfatoriamente cumpridas pelos defensores das cotas raciais. Quero neste post tratar de (c).
2. A respeito de (c), Frei David Raimundo dos Santos se pronuncia da seguinte forma:
Os descendentes dos judeus entraram na Justiça pedindo indenização, por se sentirem prejudicados, já que seus antepassados não puderam dar a eles a dignidade que mereciam. A Justiça alemã reconheceu. Hoje todos os que provam lá que são descendentes de judeus recebem indenização. Nós afro-brasileiros gostaríamos que os deputados e os senadores conseguissem entender que há uma dívida, que precisa ser paga, agora, com políticas públicas. Se não houver políticas públicas, seremos obrigados a investir em indenização financeira.
(entrevista ao Site Congresso em Foco)
A alegação parece muito razoável, com exceção da parte final. Ou seja, o pagamento com políticas públicas (cotas raciais) da dívida para com os negros parece um tanto arbitrária no contexto da declaração do digníssimo Frei. Mais curiosa ainda é a declaração de que “se não houver políticas públicas, seremos obrigados a investir em indenização financeira”. Seria preciso argumentar sobre o que é mais justo (ou melhor: o que, nesse caso, é o justo):
(a) cotas raciais ou
(b) indenização financeira.
Ora, é claro que o mais justo (o justo) é indenização financeira. Porque cotas raciais jogam no atacado um problema que deve ser enfrentado no varejo. Ou seja, aqueles que provarem que são descendentes de escravos terão reconhecido seu direito à indenização. E aqueles que forem identificados como escravocratas terão de pagar a indenização. Por que cargas d’água Frei Raimundo dos Santos não se mantém coerente com sua inspiração no exemplo da indenização aos descendentes de judeus pela justiça alemã?
2.1. Reparem que eu considero, ao menos inicialmente, o argumento da reparação histórica um argumento revestido de certa plausibilidade. A escravidão de um modo geral é, do ponto de vista moral, um crime insuscetível de prescrição. Aliás, eu penso que a escravidão justifica o apelo aos céus, isto é, a resistência armada (um belo exemplo disso pode ser encontrado no filme Amistad).
3. Já que os defensores das cotas citam o caso da indenização paga pelo Estado alemão aos judeus vítimas do nazismo, provavelmente resultarão úteis as seguintes considerações.
3.1. Primeiro, se fosse seguido o exemplo desta indenização aos judeus, não haveria porque reclamar cotas. Salta aos olhos que a reclamação deveria ser por indenização pecuniária. Feitas as devidas identificações dos descendentes de escravos, estabelecer-se-ia um montante em dinheiro para dar cabo do pleito indenizatório.
3.2. Mas há ainda um ponto nessa alegação de difícil sustentação moral. Por que um alemão ou um descendente alemão que viveu durante o nazismo, mas a ele se opôs, talvez inclusive correndo risco de vida ao tentar ajudar judeus, deve pagar agora com uma parte de sua propriedade (isto é, com o seu dinheiro) indenização aos judeus? Porque se trata disso no fundo. O dinheiro do Estado alemão provém do bolso dos alemães. Quem praticou discriminação contra os judeus não foram todos os alemães. Foi o Estado alemão, isto é, algumas pessoas que detinham o poder na época. Vejam, não discuto aqui uma indenização com base na apropriação dos bens materiais dos judeus. Discuto uma indenização com um certo conteúdo moral (embora seja efetivamente financeira). O que quero dizer é que se trata de refletir sobre uma indenização em virtude da injustiça praticada contra pessoas pertencentes à comunidade judaica, pessoas que ficaram reclusas em campos de concentração, pessoas que foram mortas e perseguidas. A essas pessoas ou aos seus descendentes reclama-se corretamente uma indenização pelo sofrimento, pela humilhação. Enfim, apenas quero consignar que há clara diferença entre:
(a) indenizar devido à apropriação indevida de bens materiais e
(b) indenização pelo tratamento dado aos judeus em campos de concentração.
A primeira reclamação parece-me pacífica. Se o Estado alemão reteve 10 kg de ouro do judeu X, esse judeu ou seus descendentes tem direito (moral) a uma reparação pecuniária. Agora, sobre a segunda reivindicação, resta de pé ainda a questão de saber se é moralmente correto o filho de um alemão que lutou contra o nazismo, não obstante tenha sido uma luta modesta, talvez apenas tendo oferecido alguma ajuda a judeus, por exemplo mentindo à Gestapo; enfim, permanece de pé a necessidade de avaliar se é correto que esse filho ou neto de alemães refratários ao nazismo seja coagido a dar a sua cota na indenização aos judeus. Penso que não seja certo, porque o indivíduo que age corretamente não pode pagar pelo erro do Estado (ou de outros indivíduos). E o neto pagaria pelo erro do Estado. Pois bem, o neto tem propriedades hoje. Mas o Estado alemão se apropria de uma parte dela e repassa para os judeus porque ele, o Estado, cometeu injustiças. Notem, foi o Estado que cometeu injustiça, não a família desse neto de alemão não nazista. E não me venham com direito internacional positivo, ou direito penal ou civil positivos. Meu ponto é, como de sólito, o direito natural, isto é, o que é moralmente um direito.
4.3. Se transferirmos essas ponderações para o caso das cotas, o que teríamos seria algo que poderia ser descrito assim.
4.3.1. Pedro tem uma epiderme revestida de branco. Ele é bisneto de um abolicionista. Seus ascendentes nunca tiveram escravos. Os negros descendentes de escravos pleiteiam – vamos imaginar isso – uma indenização aos moldes praticados pela Alemanha em relação aos judeus. Por certo, Pedro sofreria uma injustiça se tivesse de ser coagido a tirar do seu bolso dinheiro para que o Estado brasileiro pagasse as indenizações. O certo aqui me parece simples. Quem eram os detentores do poder na época da escravidão? Quem eram os escravocratas? Faça-se um levantamento arqueológico, genealógico (qualquer levantamento empírico que identifique tais pessoas) e que se busque as co-responsabilidades civis de seus descendentes. Estabeleça-se um montante para a indenização. Estabeleça-se um prazo para o pagamento. E ponto final. Está resolvida a questão.
4.4. Acho um erro não querermos individualizar as coisas. Se o Estado cometeu injustiças, essas injustiças não podem pacificamente ser entendidas como atos resultantes de um contrato entre o Leviatã e os súditos. O bisavó de Pedro está isento de qualquer vínculo com as práticas escravocratas. Seus descendentes também. Então por que eles têm de pagar a conta junto com os verdadeiros culpados?
5. Agora pensemos na reparação histórica pelas cotas. Pedro é candidato a uma vaga numa universidade pública. Ele merece ser punido, cedendo a classificação que alcançou por méritos intelectuais a um indivíduo de cor escura? Num artigo publicado em 10 de fevereiro de 2006, na Folha de Londrina, sobre cotas para professores, escrevi: “Lembremos que os defensores das cotas falam em dívida histórica e social. Mas como aferir que determinado indivíduo branco participou e, portanto, cabe a ele uma espécie de imputação legal das práticas discriminatórias do passado? O fato de alguém pertencer ao grupo dos que têm cor branca não o torna, por si só, culpado de nada. Portanto, ele não tem dívida a pagar simplesmente por ser branco. Se no passado ele ou sua família agiram de modo preconceituoso e obtiveram benefícios a partir dessa prática intencional, então caberia discutir o pagamento de uma ‘dívida’ que ele teria. Se um indivíduo branco, bem como sua família, nunca praticou discriminação racial, nunca foi beneficiado por ações discriminatórias, por que ele tem de pagar alguma dívida?” Eu mantenho essas palavras.
* *
É curiosa a alegação de que os negros, depois de ingressarem na universidade, tem desempenhos iguais ou melhores que os brancos. É verdade que isso parece ser atestado por pesquisas empíricas. Em artigo já mencionado (ver post anterior) , o ministro Edson Santos afirma que
estudo realizado junto às instituições de ensino superior do Estado do Rio de Janeiro que adotaram o sistema de cotas, demonstra que o coeficiente de rendimento médio dos alunos cotistas é tão bom quanto o dos demais alunos.
Com efeito, o propósito dessa alegação afigura-se deveras exótico. Ela visa a mostrar que os negros são indivíduos intelectualmente talentosos assim como os brancos. O que faltaria seria oportunidade. Pois bem, eu aceito de bom grado que talento intelectual independe da cor da pele. Só estranho que se façam encômios intelectuais aos negros depois deles estarem dentro da universidade. Por que não antes? Por que não proclamar orgulhosamente que negros são tão capazes intelectualmente como os brancos antes, durante e depois de um vestibular? Mas se são antes de ingressar num vestibular, por que cotas?
Eles falam em oportunidades. Mas que miraculosa ocorrência é essa que, uma vez dentro da universidade, obtém-se rapidamente as oportunidades requeridas para empatar e passar à frente dos brancos? Por que eles não reclamam de oportunidades desde o início? Por que não a existência de um ensino fundamental e médio em iguais condições? Bem entendido, eu não defendo igualdade de oportunidades. Quem acompanha meu blog sabe disso. Porém, aqui estou apenas tentando mostrar que, para os defensores das cotas raciais, a alegação sobre a capacidade intelectual dos negros dentro da universidade é uma alegação torta, é um tiro a esmo.
* *
Gostaria de citar, para concluir, mais um trecho do artigo que escrevi em 2006 sobre cotas para professores (com ligeiras mudanças): “É interessante notar que essa conversa de cotas é levantada, sobretudo, pela chamada esquerda. [Ora, quando o tema é, por exemplo, criminalidade, os esquerdistas gritam] que o problema deve ser tratado a partir de suas causas e não de seus efeitos. Eles parecem não perceber que as cotas significam justamente atacar os efeitos, não as causas. A qualidade do ensino básico e médio – vários estudos mostram isso - é miserável. Então que se invista aí. [se quiserem ser coerentes]. Estão preocupados com exclusão, mas a Universidade não é o lugar para resolver isso. Universidade existe para formar elites, elites formadas a partir do mérito, do saber, uma elite intelectual, nem plutocrática nem baseada na cor da epiderme”.