TEMOR CIVIL
Em seu livro clássico, que estuda o fenômeno religioso, publicado em 1917, Rudolf Otto mostra que a manifestação do sagrado desperta no homem dois sentimentos: o amor e o temor. No Antigo Testamento os escritores sacros caracterizavam Deus, principalmente, como o Deus dos Exércitos, o Deus que castiga com pragas, com dilúvio, com derrota na guerra, com a morte do pecador; no Novo Testamento, Deus é Pai amoroso, envia seu Filho para salvar a humanidade, se oferece pela salvação dos homens como pastor, que se sacrifica pelas ovelhas, perdoa os pecados, é misericordioso e compassivo. Mas, como o cristianismo assumiu os dois testamentos, conservou do sagrado os dois sentimentos: o amor e o temor. Por um lado, todos os homens são convidados a se aproximarem de Jesus, a receberem seus sacramentos, mas, por outro, quem pecar gravemente pode ser precipitado no fogo eterno do inferno, onde haverá choro e ranger de dentes. Por um lado, os fiéis são convidados a entrarem na igreja, mas lá dentro são convidados a se prostrarem e humilharem diante de Deus. São convidados a se aproximarem da eucaristia, mas devem fazê-lo com temor, declarando sua indignidade. Algumas igrejas evangélicas assustam seus crentes com o demônio se apossando de pessoas, que, por isto, necessitam de exorcismos de diversas formas.
Verdade é que muitos fiéis católicos, e mesmo padres e pastores de igrejas com estudos mais aprofundados de teologia, já não se apavoram mais tanto com infernos e demônios, pois hoje compreendem Deus como o ser amoroso que quer o bem de todas as suas criaturas. Desta forma o sagrado é mais vivenciado com o sentimento do amor de Deus, e menos com o sentimento de temor e castigo. Se assim é hoje felizmente em diversas religiões, o mesmo não se pode dizer do âmbito da vida civil. A vida civil, que essencialmente se constrói para ser um apoio e estímulo ao cidadão, para que se sinta bem e possa almejar a felicidade, parece que, em nosso tempo, sob muitos aspectos, o "deus" do poder civil assumiu a função do temor, pavor e medo, que, em outros tempos, eram próprios do sagrado. Todos os dias estamos como que diante de ameaças de sermos precipitados no "inferno civil" deste mundo, pelo "deus" da burocracia, das leis espúrias, das multas e infrações de trânsito, de radares e câmeras que nos vigiam, da malha fina da Receita Federal, de declarações de impostos, dos impostos desvairados, do Serasa, do SPC, da fiscalização, das informações sobre nosso nome na internet, da prestação de contas, de notas fiscais, de dívidas bancárias, de prestações a pagar, de contas de luz, de água, de telefone, de cartões de crédito, etc. Tudo isto gera no cidadão um temor civil neurotizante. Gera um inferno de preocupações, com medo que nosso nome se suje. Com tudo isto, o cidadão honesto está em constante temor para não pecar civilmente, pois o "fogo do inferno" da burocracia, e as espetadas dos "diabinhos" humanos, que nos atendem nos guichês e nas repartições públicas, podem doer muito.
Sob muitos aspectos, hoje, também perdemos nossa privacidade. Somos vigiados de tantas formas que não nos parece mais sermos livres e com a privacidade preservada. Já não podemos mais viajar sem medo de sermos multados; os ganhos de qualquer serviço devem ser declarados à Receita Federal. Para podermos declarar nosso imposto de renda, assim como a Receita o deseja, seria preciso contratar um contador, que cuidasse, ao longo do ano, de nossos gastos e ganhos, de doações e salários. Basta lançar o nome de qualquer cidadão na internet para que dele saibamos se tem contas a pagar, se seu nome está sujo, se emitiu cheques sem fundo, se possui alguma multa, etc. Com tudo isto, a vida se torna ameaçadora. É o temor civil substituindo o temor religioso, diante de um falso deus do poder civil, sempre carrancudo, sempre desconfiado de que todos são eventualmente salafrários e bandidos. Desta forma o sentimento de temor civil situa o cidadão ante as portas do inferno da desgraça, às custas de uma vida tranquila e feliz.
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