Cotas raciais e tratamento preferencial
Dou continuidade ao ponto sobre as cotas raciais. Neste post discuto a alegação de que as cotas se justificariam a partir do princípio do tratamento desigual para desiguais. Procuro mostrar que os argumentos funcionam muito mal. Os parafusos parecem estar perigosamente soltos. A qualquer momento as peças da máquina vão se soltar. No último post sobre cotas, aleguei, em preliminar, que a discussão envolve necessariamente uma consideração sobre a legítima função do Estado e que uma reflexão sobre esse tema nos conduz à rejeição da ideia das cotas raciais.
1. O ministro Edson Santos defende a tese de que aos desiguais cabe tratamento desigual (cf. artigo de 16/04/2009, disponível no Site da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial). Isso exige algumas considerações. O ministro admite que negros e brancos são desiguais. Mas em que sentido? Desiguais socialmente? Não é exatamente verdade, pois há um percentual considerável de brancos que vivem em condições sociais semelhantes a dos negros. Claro, poder-se-ia dizer que mais negros são pobres do que brancos (e que mais brancos são ricos do que negros). Ok, vamos fazer tal admissão para argumentar. E daí? Se o problema é social, seria preciso separar de um lado os brancos e negros pobres e promover alguma ação estatal a fim de conferir a eles direitos que não seriam conferidos aos brancos ricos (e os negros ricos?)? Quais direitos? O direito de ingressar na universidade? Notem como é curioso o ponto. Mesmo que se admita a premissa do tratamento desigual a desiguais, não fica nem um pouco clara a razão para se escolher justamente as cotas para ingresso na universidade como meio adequado a perseguição do suposto tratamento justo. Muito menos clara fica a razão para se pensar em cotas raciais, pois o problema seria social e não racial.
2.1. Vamos pensar no princípio do tratamento desigual a desiguais para as cotas raciais na universidade. Supõe-se que o negro não está em iguais condições que o branco de passar nos exames de vestibular. É isso, não? Porque se ele está em iguais condições, por que as cotas? Bom, mas é válido aplicar tal princípio nesse caso? Vamos admitir que seja válida a sua aplicação. Mas por que não é válida antes também a aplicação? Ou seja, por que não se aplica esse princípio no ensino médio? Ah, as pessoas vão falar que ele está universalizado. Que isso seja aceito. Mas o ponto é tratamento desigual para desiguais. Poderíamos sim aplicar no ensino médio, exigindo que os professores conferissem um tratamento desigual aos negros e brancos, haja vista eles serem desiguais (admitamos). Ou eles só se tornam desiguais no momento do vestibular?
2.1.1. No ensino médio, os professores poderiam trabalhar com cotas de notas. Algo como um bônus para negros (e nada de bônus para brancos). Seria um tratamento desigual. E teria de ser admitido como justo por quem advoga esse princípio. Ou não?
2.1.2. Vamos pensar do vestibular para frente. Depois que os negros entram na universidade, o principio do tratamento desigual para desiguais não deveria continuar valendo? Valendo em exames que visam a aferir capacidade intelectual, pois é isso que os vestibulares em tese buscam. Numa prova de uma disciplina também se pretende aferir conhecimentos. Por que não cotas de aprovados em disciplinas? Ou cotas negativas, algo como: alunos negros reprovados teriam uma nova chance. Brancos teriam o exame final, mas apenas um. E negros teriam dois exames finais. Por que as pessoas provavelmente considerarão ridícula essa reflexão? Alguns talvez até ultrajante (mas não esqueçam que estou apenas tentando apertar conceitualmente os parafusos, nada mais que isso). Bem, por que não cotas na hora de corrigir as provas? Já há cotas no mercado de trabalho (como se o dono de uma empresa não tivesse a liberdade – como direito natural – para contratar quem ele quiser).
3. De acordo com o Frei David Raimundo dos Santos, um dos expoentes da defesa das cotas raciais,
"atual vestibular brasileiro é inconstitucional, pois fere o princípio da igualdade. Alunos com oportunidades diferentes em todo o seu ensino médio são submetidos a uma prova igual". (no Site Congresso em Foco)
Vejam bem. Para o mui católico Frei Raimundo dos Santos, quem teve oportunidades diferentes no ensino médio não deve ser submetido a uma prova igual. Vamos admitir, caridosamente, que ele esteja certo. Com base em seu princípio, seria normativamente errado aplicar a mesma prova, ou conferir o mesmo tratamento, a um negro que estudou numa boa escola particular e a um branco que estudou numa medíocre escola pública. Presumivelmente, a sua alegação nos conduziria à defesa (em muitos casos) de um tratamento preferencial ao branco, não ao negro. Ora, isso simplesmente iria de encontro à ideia de cotas raciais, isto é, à ideia de tratamento preferencial aos negros. Que maravilha de pensamento coerente, hein?
4. Uma questão que se impõe é a seguinte: Os negros podem competir com os brancos sem ajuda especial? Sim, a meu ver, podem. Logo não há necessidade de cotas. Há, pois, igualdade de capacidade intelectual entre negros e brancos. Por conseguinte, o tratamento deve ser igual.
4.1. Agora, e se pensarmos e concluirmos que não há igualdade? Ainda nesse caso, não vejo a razão pela qual deveríamos conferir tratamento diferenciado. Se não conferimos – e acredito que corretamente não conferimos – tratamento especial aos negros quando, para permanecermos com o exemplo acima, estes são avaliados no exame final de uma disciplina, por que conferir a eles tratamento preferencial para o ingresso na universidade? Se os negros podem competir com os brancos sem ajuda especial (isto é, sem cotas para a sua aprovação numa prova em que se avalia capacidade intelectual), por que se pensa que os negros precisam de ajuda em exames de ingresso na universidade?
4.1.1. Talvez as cotas meramente sociais, mas não raciais, pudessem ter como base tais argumentos (de tratamento preferencial). Eu também sou contra cotas sociais, mas aqui me restrinjo a tentar mostrar a inconsistência da defesa das cotas raciais.
4.2. A alegação de que os negros não podem competir com os brancos sem uma ajuda especial não é, pois, uma boa alegação.
4.3. Por certo, muitos replicarão que não se trata de ajuda. Dirão que se trata de um direito. Todavia, como não podem afirmar que cota racial para o ingresso na universidade seja um direito natural, a sua efetividade no direito positivo implicará o reconhecimento de que os negros precisam concorrer com os brancos em condições assimétricas. Ou seja, o branco concorrerá com, por exemplo, 1% de chance a uma vaga, ao passo que o negro concorrerá com 1,2% de chance a mesma vaga. Ora, a meu ver, isso claramente significa deixar de lado a ideia da disputa eqüitativa de uma vaga. Isso envolve, sim, uma ajuda, um benefício, uma preferência que, repita-se, jamais poderá obter apoio numa reflexão baseada meramente no direito natural.
4.3.1. A alegação que poderia ter algum apoio no direito natural é a da reparação por danos sofridos, isto é, a alegação de que há uma dívida histórica que precisa ser liquidada. Tentarei mostrar, no próximo post, que tampouco essa alegação pode ser sustentada com boas razões.
5. À luz dessas considerações, impõe-se uma conclusão: independentemente de uma discussão rigorosa do princípio de tratamento desigual para desiguais (em abstrato), a sua adoção para justificar as cotas raciais não é de modo algum pacificamente aceitável. O princípio se afigura deveras desajeitado como meio para os propósitos dos apologistas de cotas raciais.