FRAGMENTOS II - ENREDEIRA



Era indisfarçável, embora criança, o rosto de Nice sempre vendia traição.
Agora mesmo, lá estava ela a dar com a língua nos dentes, denunciando alguma estripulia que eu cometera.
Enquanto falava e muito gesticulava, mamãe, calada, fingia ouvi-la somente. Na verdade, não dava ouvidos às zangas da menina, ciente da boa dose de veneno que revestiam as suas queixas. Ela confiava em mim, eu bem sabia, por isso, esperava tranqüilo sem cair no desassossego de correr lá e dar uns tapas na diabinha enredeira.
Mesmo assim, naquele dia não deixei por menos. Ao ver-nos a sós, ameacei-lhe uns cascudos. Mas Nice não era só traição; cínica, não chegaria a tanto; desdenhosa extremada era um belo exemplo. Em resposta, atreveu-se-me a provocar, encenando o seu gesto que mais causava-me irritação: meneou a cabeça e, concomitantemente, expôs a língua ferina.
--- “Quimimporta”! Gritou e correu. Tal era a malcriada.
Corri atrás; Todavia, refleti e acabei desistindo.
Por conta da ameaça recebi uma ordem de castigo que me deixou por uma boa hora na banqueta desconfortável da cozinha, sem o direito de dizer sequer uma palavra.
O episódio veio ao acaso. Conversando recentemente com uma prima, acudiu-nos à memória a figura da garota --- tão familiar à nossa meninice --- ocasião em que, a propósito, essa minha prima observou:
--- Aquela pestinha enredeira! Dito com o maior desprezo deste mundo.
Era o sentimento comum das crianças a quem não guardavam seus mistérios e suas confidências.