SER GAÚCHO
O gaúcho é o tipo humano surgido da fusão das populações originárias do Pampa, os indígenas ( Charruas, Minuanos ) e os portugueses e espanhóis ( soldados, marinheiros, aventureiros ) desgarrados de todo tipo que vieram parar neste sul meridional. Não tinham propriedade, família, nem endereço fixo. Nômades, assim como os indígenas. Sua herança psicológica manifesta-se numa
autonomia de espírito e firmeza de convicções. Senso agudo de liberdade. Recatado e de poucas palavras, mas sentencioso e sábio. Expansivo nos momentos de alegria ingênua e singela. Faz poesia ao falar. Exímio cavaleiro, qualidade que aprendeu dos indígenas. . Proveu sua subsistência, antes dos cercamentos dos campos, na caça ao gado chimarrão.
Hoje, esse gaúcho é o peão de estância. Sobrevive também nos arrabaldes, nas cercanias das cidades. É o chamado “gaúcho-a-pé”, que vendeu seus arreios, perdeu o cavalo, e teve que sobreviver fazendo de tudo. Mas mantém uma alma sulina. Foi retratado magistralmente na trilogia de Cyro Martins e sofre as inevitáveis transformações culturais da época da globalização.
Já o gaúcho-mito é a representação construída ideologicamente do gaúcho. Há o tipo humano, com suas qualidades e defeitos. Mas há também o estereótipo, recriado conforme interesses históricos determinados. E o mito por excelência, é o do gaúcho adâmico, projetado na figura difusa do “primeiro” gaúcho, fundador da raça humana. Infelizmente, esta expressão do “ser gaúcho” é retratada no belo e já clássico poema de Marco Aurélio Campos “Eis o homem”. Este conclui com estes versos:”Sou maior que a história grega./Sou gaúcho e me chega/ pra ser feliz no universo”/ Este visível exagero está inclusive no “sirvam nossas façanhas/ de exemplo à toda terra”/ do hino rio-grandense. No contexto da cultura universal, além de ser uma demonstração de incultura, cumpre um papel obscurantista e se dilui na jocosidade de uma bravata.
A nossa classe média “rurbana” já ultrapassou essa etapa do nosso regionalismo e assume o seu gauchismo num contexto mais contemporâneo. Como disse Hélio Jaguaribe, sobre os indígenas brasileiros remanescentes, também não podemos isolar o gaúcho num “jardim antropológico”, cultuá-lo num estado primitivo e mantê-lo ainda no altar da “santa ignorância”.
Ser gaúcho é um sentimento. Quanto nos retemperamos num dia de frio ou quando aspiramos as brisas renovadoras da primavera, nosso coração é gaúcho. E como sabia o poeta, só o coração é maior que o mundo.