Prezado Senhor Carlos, meu nome é Patrícia, tenho 16 anos, moro numa cidade importante do Nordeste e até o ano passado eu estudava normalmente como as minhas amigas numa escola pública, mas este ano o meu trabalho me impediu de trabalhar, então, passei a usar as noites para o trabalho e o dia para descansar.
 
Tenho uma filha de 01 ano que mora com a minha mãe e meus outros seis irmãos; ninguém da minha família tem um trabalho fixo, ninguém que mora lá em casa tem carteira assinada e todos vivem de bicos, isso é aqueles que trabalham. Minha mãe é empregada doméstica e trabalha numa casa de família que lhe paga 200 reais por mês; meus irmãos mais velhos, que são dois, catam latas e papelões nas ruas; meus outros irmãos vendem balas nos sinais de trânsito e o mais novinho, que tem apenas dois anos às vezes tem que esperar em casa, sozinho para que alguém retorne da vida dura e lhe oferecer algum tipo de conforto.
 
Meu pai saiu de casa para ir para São Paulo e disse que um dia voltaria com dinheiro para nos ajudar, mas isso já faz alguns anos e até agora, nem dinheiro nem notícias dele; eu espero que ele esteja bem e com saúde, mas é melhor ele ficar por lá já que se voltar sem aquele dinheiro da ajuda, será mais uma boca para dividir os 600 reais que somando; ganhamos todos juntos.
 
A vida é muito dura Senhor Carlos e eu imagino que o Senhor jamais tenha passado por isso que estamos passando. Ninguém da minha família teve a condição de estudar para ser alguém na vida; sabemos assinar apenas o nome e conhecemos umas bobagenzinhas que estas escolas públicas ensinam.
 
Faz perto de um ano que eu conheci umas moças lá na escola que andava arrumadinhas, com roupas de butique, sapatos da moda e bem perfumadas. Perguntei o que os pais delas faziam e elas me disseram que trabalhavam e elas próprias compravam tudo aquilo. Depois de alguns papos eu descobri que elas eram prostitutas e que ganhavam bem todos os dias, então passei a querer também trabalhar com elas, mas elas disseram que eu era “de menor”. De tanto insistir acabei conhecendo o patrão delas e ele me deu uma carteira de identidade falsa com a idade de 18 anos e me deu emprego.
 
Hoje eu sou prostituta também! Começo no serviço às 6 horas da noite numa casa que recebe muita gente importante, bem distante da cidade. Nesta casa aparece de vez em quando uma gente de paletó e gravata que minhas amigas dizem que são os coronéis da cidade, mas eu não os conheço; vem gente suja e bêbada também, mas eles têm o que o patrão quer: que é dinheiro, isso faz a nossa alegria também. No final da noite, se eu consigo me deitar com dois destes homens que vão lá à casa, ganho 50 reais, mas tenho que pagar pelo aluguel do quarto e pela comida. Também ganho comissão pelas bebidas que eles consomem, mas só se não for cerveja; se for uísque eu ganho 2 reais por cada dose e se for vinho espumante eu ganho 5 reais por cada garrafa, então, somando tudo, no final do mês me sobra uns 300 reais livres que eu sempre mando parte para minha mãe, para ajudar nas despesas de casa e na alimentação da minha filhinha; o pai dela eu não sei quem é e mesmo que soubesse eu acho que ninguém me ajudaria.
 
Para eu escrever esta carta uma pessoa da Prefeitura foi quem me pediu por que ela tava com uma coisa que o senhor tinha escrito num jornal daqui, então eu espero que isso que estou escrevendo te ajude a fazer um apelo aos políticos para que não acabem com os “bregas” (bordeis) desta cidade já que é deles que muitas de nós conseguimos ganhar dinheiro para poder pelo menos comer e também ajudar nossa família.
 
Vocês falam mal de nós e querem acabar com nosso trabalho, mas jamais se lembram de nos ajudar; aqui nesta cidade, gente igual a mim e minhas amigas comem o pão que o Diabo amassou; ninguém nos dá emprego, então, para nós mulheres o que resta é ser puta. Dói dizer isso, mas é a verdade. Minha mãe e meus irmãos sabem o que faço e ele nem ligam porque eu ajudo em casa mesmo não morando lá.
 
Vou juntar dinheiro na poupança e comprar uma casa para mim e para minha mãe; quero sair desta vida sim, mas não agora; vou aproveitar enquanto sou nova e posso trabalhar assim; depois que eu ficar velha ninguém mais vai querer que eu faça isso, esta é a verdade, então Senhor Carlos, pare de escrever sobre nós e ao invés disso, ajude-nos com ações que nos permita trabalhar e viver com dignidade.
 

As palavras utilizadas não foram estas, da mesma forma que o nome dela não é Patrícia, mas a carta que eu recebi no ano passado após publicar um artigo sobre a prostituição infantil dizia em palavras mal escritas um teor similar ao que pude traduzir acima.
 
Uma Assistente Social de Recife me enviou esta carta de uma garota de 16 anos, hoje com 17, que tinha uma filha e assumia que era prostituta de modo quase honroso; uma vergonha nacional que cresce todos os dias e que eu jamais me cansarei de insistir em denunciar.
 
Longe de qualquer sensacionalismo barato a carta de Patrícia não me chegou como crítica ou ataque pelo que escrevi; o que notei na carta, que aliás, só está publicada parte dela e que me chegou com nome completo e endereço, foi um apelo dramático para que os olhos dos que se dizem guardiões dos destinos sociais do Brasil se voltem para este problema grave, sério e de conseqüências mórbidas. As crianças do Brasil estão aprendendo a utilizar seus corpos em desenvolvimento para a utilização do meretrício que é crime e um forte agente causador da proliferação de doenças graves como AIDS, cancro mole, gonorréia e outras DSTs. Este quadro atual mancha a honra não só de nossas crianças indefesas, mas de um país como um todo de modo que nos posicionamos como um dos mais atrozes e desumanos do planeta.
 
Patrícia, pelo que pude traduzir em sua carta, queria apenas um trabalho para seu pai, seus irmãos mais velhos e sua mãe; se isso fosse possível, talvez ela estivesse em casa cuidando de sua filha e ajudando a cuidar de seus irmãos mais novos; ela queria apenas um trabalho, fosse ele qual for, mas que fosse digno e muitas vezes esta dignidade lá pelas bandas do Nordeste é ter a CTPS assinada e nada mais.
 
É muito pouco para se sonhar, mas este pouco que está cada vez mais distante da realidade de quase metade de nossa população acaba se tornando um sonho, um anseio da maior parte. Com o distanciamento cada vez mais claro deste sonho, restam as nossas crianças, principalmente as mocinhas, a vida dura do ingresso a prostituição.
 
Da última vez que escrevi sobre o tema, falei sobre a minha experiência árdua em tentar fechar duas casas de prostituição do Ceará, registre-se em vão; falei do que vi durante bom tempo que passei na capital cearense, tendo que me acostumar a ver garotinhas de menos de 12 anos perambulando pelas ruas da Praia de Iracema após a meia noite, sendo muitas vezes incentivadas pelos próprios pais; aquilo me deixou doente e envergonhado, principalmente porque eu estava e fiquei impotente; porque eu vi claramente que os poderosos de Fortaleza queriam que aquilo se perpetuasse e fosse incorporada a cultura da cidade; a cultura de oferecer suas meninas para os turistas imundos que chegavam da Europa.
 
Não há muito que comentar sobre o caso de Patrícia; o problema dela é o mesmo de milhares de outras que passam pelo mesmo ou pior; meninas que são obrigadas por crápulas facínoras a fazer sexo o dia inteiro com todo tipo de gente, do mais medíocre ao mais imundo; sim, porque neste meio não há santos, não há bem intencionados ou benfeitores. Uma parte que preferi não divulgar da carta de Patrícia, ela afirma que na casa onde trabalha há freqüência de policiais, eclesiásticos, políticos e até de gente ligada à justiça pernambucana e isso não é exclusividade de Pernambuco; o Brasil inteiro, do Arroio ao Chuí permite este tipo de monstruosidade.
 
Lugar de criança é na escola, de preferência estudando; lugar de criança é brincando, de preferência com brinquedos convencionais de crianças; lugar de criança a noite é perto dos pais, de preferência com afeto, com carinho, com amor. Criança não pode pedir esmolas, criança não pode transar; criança não pode trabalhar com algo que lhe tire a magia da infância. Infelizmente muitas precisam trabalhar e isso até tolera-se num país sem rédeas, sem mandatários sérios e sem uma justiça que se volte para o social, mas jamais aceitar que estas crianças se prostituam em nome da comida ou do teto; isso é lastimável, deplorável, catastrófico, desumano e deveria ser rigorosamente coibido, mas não é!
 
Quero pedir desculpas a todas as Patrícias se por acaso não consigo através de ações concretas, resolver o problema de todas elas; mas a minha única arma hoje é a palavra e não medirei esforços, hoje e todos os dias, para que meus artigos cheguem ao maior número de pessoas. Tenho certeza que um dia, um destes artigos tocará a sensibilidade de apenas um ser humano e se ele fizer com que apenas um destes homens que pagam e patrocinam o sexo de prostituição na infância e adolescência, com certeza já terei um grande pagamento por todos este tempo que escrevo e insisto em denunciar.
 
Eu não ganho um centavo sequer pelos textos que publico (nem estou cobrando); não pretendo ser político, muito menos galgo uma vaga de santo na Praça de São Pedro; algumas vezes sou processado na justiça por algumas verdades que escrevo e que fazem doer em alguns medíocres e tenho que contar com a sensibilidade de meus amigos advogados, mas reafirmo que jamais me cansarei de denunciar e de mostrar aos meus milhares de leitores o que se passa em algumas camadas da sociedade, seja num hotel, seja na rua, seja num prostíbulo; encerrarei minha tarefa de escrever apenas no dia que o Grande Mestre me chamar ou no dia que me calarem definitivamente!
 
Hoje, no Dia Internacional de Combate a Prostituição Infantil, além deste texto publicado, me coloco na condição de reflexão profunda, rogando ao Criador que proporcione mais inteligência ao homem para que eles cada vez mais se desviem dos caminhos de nossas crianças! Escrevo como jurista, como jornalista e agora como Membro da Anistia Internacional!
 
 
Carlos Henrique Mascarenhas Pires
www.irregular.com.br
 
Fotos: Anistia Internacional

CHaMP Brasil
Enviado por CHaMP Brasil em 19/05/2009
Código do texto: T1602693
Classificação de conteúdo: seguro