O ufanismo equivocado em Triste Fim de Policarpo Quaresma
Fundação Edson Queiroz
Universidade de Fortaleza – UNIFOR
Centro de Ciências Humanas – CCH
Curso: Letras
O ufanismo equivocado em Triste Fim de Policarpo Quaresma
Raphael Barbosa Lima Arruda
Matrícula: 0412756-x
Junho -2008
RAPHAEL BARBOSA LIMA ARRUDA
O ufanismo equivocado em Triste Fim de Policarpo Quaresma
Monografia apresentada como exigência parcial para a obtenção do grau de licenciado em Letras, sob a orientação de conteúdo da professora Maria Célia Felismino Lima.
Fortaleza – Ceará
2008
O UFANISMO EQUIVOCADO EM TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA
RAPHAEL BARBOSA LIMA ARRUDA
Aprovada em ____/____/_____.
BANCA EXAMINADORA
______________________________
(Maria Célia Felismino Lima)
Mestrado em Letras Literatura. - UFC
Universidade de Fortaleza - Unifor
______________________________
(Grace Troccoli Vitorino)
Doutorado em Educação. - UFC
Universidade de Fortaleza - Unifor
______________________________
(Ivanilda Sousa da Silva)
Mestrado em Letras Literatura. - UFC
Universidade de Fortaleza - Unifor
CONCEITO FINAL: _____________________
“Conhece-te a ti mesmo, torna-te consciente de tua ignorância e será sábio.”
Sócrates
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO _________________________________________________1
1. Abordagem geral da trama _______________________________________ 3
2 Sátira barretiana à sociedade brasileira ______________________________12
2.1 A falange de Albernaz _________________________________________12
2.1 Sátira a fina flor da burguesia carioca ___________________________ 13
2.1 O papel da Mulher na sociedade republicana ______________________16
2.1 A denúncia da péssima condição de vida das classes humildes _______ 18
3. Um nacionalismo às avessas Quaresma ______________________________20
CONCLUSÃO _________________________________________________30
BIBLIOGRAFIA _______________________________________________31
Dedicatória
Dedico esta monografia primeiramente a Deus, por ter me dado o sopro da vida e ser o meu pastor; à minha família, pela força que sempre me deu; a minha orientadora Professora Maria Célia Felismino, pelo apoio dado, assim como aos professores e colegas do curso de Letras, pela consideração prestada.
Agradecimentos
Aos meus avós Geraldo e Zuila, meu agradecimento eterno.
A minha mãe Roseane, minhas tias Cláudia, Mara, o meu tio Jorge e tio Geraldo Jr. que sempre estão ao meu lado e me apóiam desde minha existência.
A todos os meus professores, motivo de grande inspiração na minha jornada acadêmica como aluno de Letras.
RESUMO
Este trabalho visa investigar o significado do nacionalismo exacerbado da personagem Policarpo Quaresma da obra Triste Fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto. Este nacionalismo manifesta-se como base para a crítica que Lima Barreto faz a sociedade brasileira da época, no que diz respeito às soluções pretendidas para os problemas nacionais. A caracterização da personagem central do romance foi delineada a partir da ironia, do humorismo e da crítica, recursos utilizados por Lima Barreto ao longo da obra. Para completar o entendimento do perfil da personagem utilizamos também referências teóricas, sobretudo de Flávio Kothe.
Palavras-chave: nacionalismo exacerbado, ironia e humorismo.
ABSTRACT
The intent of this work is to investigate the meaning of thr exacerbated nationalism of Policarpo Quaresma, the main character of the book Triste Fim de Policarpo Quarema. This sense of nationalism manifests itself as the foundations for the critical work done by Lima Barreto. His work was based on the brazilian society of the time in respect to solutions for national problems. The author created characters with irony, humorism and criticism, portraited throughout his work. For a better understanding of the character´s profile, we also used theoretical references, particularly from Flávio Kothe.
KEY – WORDS: exacerbated nationalism, irony and humour.
INTRODUÇÃO
Esta monografia objetiva fazer uma interpretação do nacionalismo ufanista de Policarpo Quaresma, personagem protagonista da obra Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. O trabalho foi organizado em três capítulos, nos quais procuramos mostrar que o nacionalismo de Policarpo não foi profícuo no tocante às soluções dos problemas da realidade brasileira da época, elemento a partir do qual Lima Barreto desenvolve a sua crítica a essa realidade.
No primeiro capítulo, intitulado “Abordagem geral da trama”, preliminarmente, situamos a obra no tempo e no espaço, ressaltando a importância deste romance para a literatura brasileira. Tecemos comentários sobre o enredo e destacamos as ações de Policarpo que caracterizam seu profundo sentimento nacionalista.
No segundo capítulo, “Sátira barretiana à sociedade brasileira”, evidenciamos os elementos a partir dos quais Lima Barreto faz a crítica à sociedade brasileira, expressa no modo irônico como o autor representa as personagens exemplares de segmentos sociais da época, quais sejam, os militares, os políticos e os funcionários públicos. Além disso, faz uma análise do papel da mulher nessa sociedade e a denúncia da péssima condição da vida das classes populares. Entretanto, tem como alvo de maior sátira o “florianismo”. De posse do conteúdo explorado no primeiro e segundo capítulos, verificamos que os recursos utilizados pelo autor mostram que o ufanismo de Policarpo, o seu amor incondicional à pátria, não resolveria os problemas do Brasil, o que será abordado no capítulo seguinte.
O terceiro e último capítulo, “Um nacionalismo às avessas”, constitui o cerne do trabalho. Nele fazemos uma leitura, uma interpretação do nacionalismo de Policarpo Quaresma, caracterizado como exacerbado e inconseqüente, evocando, a nosso ver, iniciativas de caráter subjetivista, idealista, típicas da nossa sociedade, a partir das quais se pretende superar problemas sociais. O capítulo foi desenvolvido com base das considerações de teóricos como Flávio Kothe, abordando sobre o herói tragicômico incorporado na figura de Policarpo; José de Oiticica, revelando uma visão crítica do nefasto positivismo na atitude da classe militar; Carmen Dias com o lado burlesco da personagem, ferindo a esfera do riso e Osman Lins relatando à respeito da visão utópica do paraíso terreal presente no major Quaresma.
1. Abordagem geral da trama
O romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, foi publicado a primeira vez em folhetins do Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, entre 11 de agosto e 19 de outubro de 1911. Após cinco anos é que saiu o primeiro volume, editado à custa do próprio autor.
Essa obra é a grande contribuição de Lima Barreto para a literatura brasileira. Contextualizada no final do século XIX, no subúrbio carioca, Triste Fim de Policarpo Quaresma relata o cotidiano de um nacionalista fanático que a priori tem certas iniciativas esdrúxulas como querer implantar o tupi-guarani como língua oficial do Brasil, sendo tido como insano e levado para um hospício. Depois a personagem decide se dedicar inteiramente à agricultura, vivendo em seu sítio Sossego. É lá onde há o germinar do seu projeto agrícola, de transformar a nação em uma grande potência agrícola. Decepcionado com a vida no campo, Policarpo decide apoiar Floriano Peixoto na luta contra os marinheiros na Revolta da Armada, mas acaba chocado com as injustiças cometidas contra os revoltosos e escreve uma carta para Floriano, denunciando as práticas de torturas e a execução dos tais marinheiros, que culminará em sua prisão por traição à pátria. É nesse último momento que Policarpo reconhece que seu ufanismo é totalmente equivocado e todo o seu esforço em implantar projetos para transformar a nação em uma grande potência não passa de um belo sonho. A história de vida da personagem coloca entre outros aspectos, principalmente, a questão do nacionalismo de Policarpo expresso em suas ações.
. Logo no início do romance, Policarpo manifesta o seu nacionalismo, meditando sobre qual seria a expressão poético-musical característico da alma nacional. Depois de consultar vários compêndios, chegou à conclusão de que era a modinha acompanhada pelo violão. Imediatamente tratou de aprender o instrumento genuinamente brasileiro e entrar nos segredos da modinha, chegando a ser criticado pela própria irmã, como se pode observar na seguinte passagem:
- Policarpo, você não toma juízo. Um homem de idade, com posição, respeitável, como você é, anda metido com esse seresteiro, um quase capadócio – não é bonito!” ( BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997 p. 20)
Não deixando morrer no silêncio da crítica recebida, Policarpo faz apologia a esse gênero musical:
- Mas você está muito enganada, mana. É preconceito supor-se que todo homem que toca violão é um desclassificado. A modinha é a mais genuína expressão da poesia nacional e o violão é o instrumento que ela pede. Nós é que temos abandonado o gênero, mas ele já esteve em honra, em Lisboa, no século passado, com o Padre Caldas, que teve um auditório de fidalgas. Beckford, um inglês notável, muito o elogia.( BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p.21)
Tendo em vista a defesa do irmão mediante ao apego a modinha, Adelaide mostrou-se irredutível com as suas críticas, ainda com o cutelo afiado satiriza:
“- Mas isso foi em outro tempo; agora...” (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p.21)
Para não consentir, Policarpo vê-se no direito a uma tréplica:
“- Que tem isso, Adelaide? Convém que nós não deixemos morrer as nossas tradições, os usos genuinamente nacionais...” (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997 p. 21)
Mais adiante, o seu patriotismo se evidencia na predileção por autores brasileiros das mais diversas áreas do conhecimento. Sua biblioteca era formada única e exclusivamente por autores brasileiros.
“Podia-se afiançar que nenhum dos autores nacionais de oitenta para lá faltava nas estantes do Major.” (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p.21)
Esse forte interesse pelas obras brasileiras e pela nossa história amplia com muita veemência o sentido patriótico de Policarpo, já revelado anteriormente pela modinha.
Temos a seguir no romance traços irônicos, no momento em que o narrador comenta sobre o ofício de Policarpo. Este é um patriota ferrenho que mesmo não passando nos exames físicos para fazer parte do exército, continuou a amar a terra que o viu nascer e, posteriormente, conseguiu um trabalho na administração do arsenal de guerra. Podemos ratificar, na seguinte passagem, a ironia feita ao trabalho da personagem:
Era onde estava bem. No meio dos soldados, de canhões, de veteranos, de papelada inçada de quilos de pólvora, de nomes de fuzis e termos técnicos de artilharia. Aspirava diariamente aquele hálito de guerra, de bravura, de vitória, de triunfo, que é bem o hálito da pátria. (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p.22)
Nessa passagem é muito evidente a forte ironia do narrador por fazer uma forte exaltação do apego da personagem à pátria. Quando o narrador saliente: “Aspirava diariamente aquele hálito de guerra, de bravura, de vitória, de triunfo, que é bem o hálito da pátria.” Evidenciasse um desprezo pela nação, pois essa forte ambição pela pátria não passava de um confronto entre o patriotismo ufano / abstrato do Major Policarpo e a realidade concreta do cotidiano presente no arsenal e na sociedade carioca.
Como se vê a mania de Policarpo por querer coisas nacionais era tamanha, que até o seu cardápio era composto de comidas nacionais. Como prova de tal apreço, podemos observar a seguir:
- O senhor Ricardo há de nos desculpar, disse a velha senhora, a pobreza do nosso jantar. Eu lhe quis fazer um frango com petit-pois, mas Policarpo não deixou. Disse-me que tral petit-pois é estrangeiro e que eu substituisse por guando. Onde é que se viu frango com guando?
(BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p.26)
Como em tudo o mais, Quaresma era em jardinagem essencialmente nacional:
Nada de rosa, de crisâtemos, de magnólias – flores exóticas; as nossas terras tinham outras mais belas, mais expressivas, mais olentes, como aquelas que ele tinha alí. (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p.27)
Temos outro fragmento importante no tocante ao nacionalismo da personagem que é a preocupação pela linguagem do povo sertanejo. Uma das características essências das obras Pré-modernistas. Em relação a esse fato, como título de ilustração, cito uma passagem do romance que corrobora com o apego a língua popular:
Havia um ano a esta parte que se dedicava ao tupi-guarani. Todas as manhãs, antes que a “Aurora, com seus dedos rosados abrisse caminho ao louro Febo”, ele se atracava até ao almoço com o Montoya, Arte y diccionario de la lengua guarani ó más bién tupí, e estudava o jargão caboclo com afinco e paixão.” (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997p. 23)
A preocupação de Policarpo com a linguagem oral do caboclo, ou, em outras palavras, com aspectos não elitistas da Língua Portuguesa, será retomado, a partir do Modernismo, pelos estudiosos da língua, literatura e cultura do Brasil. Portanto, Lima Barreto antecipa em suas obras, atitudes modernistas.
Aproveitando o mote do nacionalismo em Policarpo, temos outra preocupação da personagem protagonista com o folclore brasileiro, refletindo em suas baldadas pesquisas folclóricas na tapera de uma preta velha, a fim de aprender algumas cantigas do “Bumba-meu-Boi” e do Boi Espácio” para serem cantadas na festa do General Albernaz. Mas a pobre velha não pode ajudá-lo, deixando-o com uma grande decepção como presenciamos na seguinte diálogo de Albernaz com ela:
-Boas tardes, Tia Maria Rita, disse o general.
Ela respondeu, mas não deu mostras de ter reconhecido quem lhe falava. O general atalhou:
Não me conhece mais? Sou o general, o Coronel Albernaz.
Ah! É sê coroné!... Há quanto tempo! Como está nhã Maricota?
Vai bem. Minha velha, nós queríamos que você nos ensinasse umas cantigas.
Quá, ioiô, já mi esqueceu, Coisa véia, do tempo do cativeiro.” (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997p.33)
Tamanha era a ignorância da preta velha no tocante as músicas regionais brasileiras, que Policarpo se desanimou, pois o povo não guardava as suas tradições, chegando a fazer a seguinte indagação: “Com que rapidez morriam assim na sua lembrança os seus folgares e as suas canções?” Como solução para esse problema, ele achava que era preciso reagir, desenvolvendo o culto das tradições, mantendo-as sempre vivas nas memórias e nos costumes.
Tão grande é a sua estima pela pátria, que o leva a propor algumas reformas radicais em nossa cultura. O requerimento, pedindo a implantação do tupi como língua oficial, foi uma manifestação do ridículo por parte da personagem, estando completamente alheio a realidade da época e vivendo de sonhos. Podemos ratificar essa atitude desvairada em um trecho desse documento feito por Quaresma, publicado nos jornais na seção referente à Câmara:
“(...) Demais, Senhores Congressistas, o tupi-guarani, língua originalíssima, aglutinante, é verdade, mas que o polissintetismo dá múltiplas feições de riqueza, é a única capaz de traduzir as nossas belezas, de pôr-nos em relação a nossa natureza e adaptar-se perfeitamente aos nossos órgãos vocais e cerebrais, por ser criação de povos que aqui vivem, portanto possuidores da organização fisiológica e psicológica para que tendemos, evitando-se dessa forma as estéreis controvérsias gramaticais, oriundas de uma difícil adaptação de uma língua de outras regiões, à nossa organização cerebral e ao nosso aparelho vocal – controvérsias que tanto empecem o progresso de nossa cultura literária, científica e filosófica(...)” (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p. 53)
Tendo em vista tal requerimento, Policarpo chega a ser alvo de muitos apodos devido a esse projeto esdrúxulo, por parte dos colegas do arsenal e, principalmente, por parte dos jornais, em querer implantar a língua dos silvícolas em nossa nação.
Em consonância com o requerimento feito pelo major apelando pela implantação do tupi, temos outro segmento do romance demasiadamente cômico, no qual Quaresma faz, distraidamente, a tradução de um ofício todo para o idioma indígena. Isso causa um verdadeiro conflito entre ele e o diretor do arsenal, sendo considerado demente por tal atitude. No diálogo seguinte, temos uma forte ironia no tocante à atitude de Quaresma:
“-Então o senhor leva a divertir-se comigo, não é?
- Como? Fez Quaresma espantado.
- Quem escreveu isso?
-Fui eu.
- Então confessa?
-Pois não. Mas Vossa Excelência não sabe...
-Não sabe! Que diz?”
- Não sabe! Como é que o senhor ousa dizer-me isto! Tem o senhor porventura o curso de Bejamim Constant? Sabe o senhor Matemática, Astronomia, Física, Química, Sociologia e Moral? “(...) (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p.61)
De acordo com essa atitude de Quaresma, podemos confirmar o descaso da personagem com a língua materna, pois queria implantar a língua falada pelos silvícolas, levando-o a entrar em devaneios em relação ao Tupi, gerando uma cena cômica e, não deixa de ser satirizado por seu superior.
No trecho citado há uma forte crítica do Diretor como agravante contra a insensata iniciativa de Quaresma em traduzir o tal ofício para o Tupi e também pelo fato da personagem não ter nenhum título acadêmico. Tamanho foi a prepotência do Diretor do Arsenal, vangloriando-se com uma enxurrada de saberes, de títulos e cursos feitos, que Quaresma perdeu o fio do pensamento, a fala, as idéias e nada mais soube nem pôde dizer.
O nacionalismo de Policarpo permeia toda a obra. Na segunda parte do livro, que se inicia com a personagem no sítio Sossego, depois de ter saído do hospício, temos um momento bastante significativos das suas novas idéias nacionalistas, segundo as quais a dedicação à agricultura. É muito pertinente alguns aspectos críticos abordados a cerca de Policarpo Quaresma nessa estadia na Zona Rural.
A priori temos o contato do Major com o Tenente Antoniano Dutra, escrivão da coletoria do município de Curuzu, que veio pedir-lhe um pequeno auxílio financeiro para a festa da padroeira. O Tenente ficou surpreso com a iniciativa do Major em levar a vida como agricultor, execrando-o logo:
“-Pretende dedicar-se a agricultura?
- Pretendo, e foi mesmo por isso que vim para a roça.
- Isto hoje não presta, mas noutro tempo! ... Este sítio já foi uma lindeza Major! Quanta fruta, quanta farinha! As terras estão cançadas e...
- Qual cansadas, Seu Antônio! Não há terras cansadas... A Europa é cultivada há milhares de anos, entretanto...
- Mas lá se trabalha.
- Por que não há de se trabalhar aqui também?(...)
(...)–O senhor verá como o tempo, major. Na nossa terra não se vive senão de política, fora disso, babau!” ( BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p.61)
Nesse diálogo Policarpo tem o grande anseio de ser um agricultor, no entanto é criticado pelo tenente Antoniano Dutra, afirmando que nessa terra não se trabalha e tudo é evoluído através da política. Logo Quaresma estava completamente longe da realidade política da época, pois dela não se valia, vivendo, então, de seu sonho irrealizável em transformar o Brasil em uma grande potência agrícola.
E, mais na frente, temos uma ironia surtida pelo Tenente sobre a quietidão de Quaresma:
“- major é um filósofo, disse ele com malícia.
- Quem me dera? Fez com ingenuidade Quaresma.” (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p.82)
É notório a ironia do tenente em relação ao major ao chamá-lo de filósofo. Fica claro o apodo do serventuário notando o jeito sereno e ingênuo de Quaresma em não dá relevância aos assuntos de cunho político vigentes na sociedade.
Tamanho era o seu apego à terra, que execrava todos os produtos estrangeiros na prática da agricultura. Podemos elucidar esse forte xenofobismo do Major Quaresma quando está discutindo com Armando Borges, noivo de Olga:
-Adubos! É lá possível que um brasileiro tenha tal idéia! Pois se temos as terras mais férteis do mundo
-Mas se esgotam, major, observou o doutor.
Dona Adelaide, calada, seguia com atenção o crochet que estava fazendo e Ricardo ouvia com os olhos arregalados; e Olga intrometeu-se na conversa:
-Que sanga é essa padrinho?
- É teu marido que quer convencer-me que as nossas terras precisam de adubos... Isto é até uma injúria!
-Pois fique certo, major, se eu fosse o senhor, aduziu o doutor, ensaiava uns fosfatos...
-Decerto, major, obtemperou Ricardo(...)
Todos se entreolharam, exceto Quaresma que logo disse com toda a força d`alma:
- Senhor doutor, o Brasil é o país mais fértil do mundo, é o mais bem dotado e as suas terras não precisam “emprétimos” para dar sustento ao homem. Fique certo!
(BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p.104)
Podemos comprovar através desse fragmento que é plausível a apologia feita por esse ferrenho nacionalista, repudiando qualquer produto que seja pertencente a outras nações. Essa xenofobia é uma característica que os modernistas de 1922 irão explorar.
Mediante aos problemas adversos, Policarpo decide escrever uma memorial para o Presidente Floriano Peixoto, denunciando as péssimas condições do campo. Ao saber da eclosão da Revolta da armada no ano de 1883, o Major expressa o seu último sentimento nacionalista ao passar um telegrama para o presidente, pedindo-lhe energia e garantindo que seguia imediatamente para se alistar nas forças da incipiente República Brasileira contra os rebeldes. Tendo em sua posse o memorial, chega a se iludir pensando que ia ser bem assistido pelo ditador no tocante as suas idéias sobre o desenvolvimento da agricultura, mas novamente as suas palavras caem no obscurantismo.
Na terceira parte da trama temos outras ações da personagem protagonista que corroboram com esse seu forte sentimento nacionalista. O seu projeto agrícola é uma das iniciativas que ele vê como pertinente para solução do problema da má distribuição de terra entre o povo brasileiro. É a partir desse projeto de Quaresma que evidenciamos o germinar de uma reforma agrária, sendo reprovado por parte do ditador republicano como notamos neste diálogo:
-Vossa Excelência já leu o meu memória, marechal?
- Floriano respondeu lentamente, quase sem levantar o lábio pendente:
- Li.
Quaresma entusiasmou-se:
- Vê Vossa Excelência como é fácil erguer este país. Desde que se cortem todos aqueles empecilhos que eu apontei, no memorial que Vossa Excelência pode ler; desde que se corrijam os erros de uma legislação defeituosa e inadaptável às condições do país(...) “ O presidente aborrecia-se. Num dado momento , disse:
- Mas, pensa você, Quaresma, que eu hei de pôr a enxada na mão de cada um desses vadios?! Não havia exército que chegasse” (...) “logo depois falou com a voz plácida:
“-Você, Quaresma, é um visionário...
(BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p 149 e p.150 )
Notamos o grande desinteresse de Floriano em relação ao projeto do Major, que representa novas medidas agrárias. Ele queria que o Marechal torna-se o trabalhador assalariado, porém não foi bem assistido por Floriano que o ironizou, chamando-o de visionário. Por isso Quaresma passa então a duvidar do governo forte do Marechal, em resposta à sua pergunta de como ele avaliara as idéias contidas no memorial. Mais ainda alimentava a esperança de que, passado o momento da crise política, mais atenções seriam dedicadas às suas propostas.
A lucidez é finalmente conquistada, quando ele é posto em combate e vivencia todos os horrores da guerra, as tiranias da oficialidade, as motivações menores que levavam ao conflito, o despotismo. O ápice de sua desilusão se dá ao presenciar a escolha e esmo dos prisioneiros que seriam fuzilados sem julgamento e clandestinamente. Ao escrever ao presidente uma carta de protesto contra essas atrocidades, Quaresma é preso e considerado traidor. Aguardando o seu fim, ele repensa a sua vida e seus sonhos quiméricos de pátria, consciente de que gastara toda a sua juventude e energia atrás de uma ilusão sem fundamento.
2. Sátira barretiana à sociedade brasileira
2.1 A falange de Albernaz
De acordo com a crítica social contida no romance, (expressando-se no enfoque irônico dado pelo autor na representação de personagens representativas de segmentos da sociedade carioca da época, sobretudo os militares, os políticos e os funcionários públicos) podemos constatar traços característicos destes que são satirizados pelo autor.
Há alguns aspectos do comportamento das personagens General Albernaz, Major Inocêncio Bustamonte e o Almirante Caldas que revelam a visão crítica do autor. Um deles é o forte descaso com os valores da pátria, pois só priorizavam a ordem, enquanto o progresso era negligenciado por parte destes.
Peguemos o caso do general Albernaz, considerado inútil para o seu cargo, pois nunca teve nenhuma honra e experiência militar. Além de defender seus interesses próprios, preocupava-se em casar as filhas para aumentar o seu soldo e arranjar os pistolões para o seu filho passar tranqüilamente nos exames militares. Exaltava muito em relação à Guerra do Paraguaio, dizendo que tinha participado, sem ter visto na verdade nenhuma batalha como notamos nesta parte:
“Nada tinha de marcial, nem mesmo o uniforme que talvez não possuísse. Durante toda a sua carreira militar, não viu uma única batalha, não tivera um comando, nada fizera que tivesse relação com a sua profissão e o seu curso de artilheiro. Fora sempre ajudante de ordem-de-ordens. Nada entendia de guerra ou de estratégia, de tática ou de história militar; a sua sabedoria a tal respeito estava reduzida as batalhas do Paraguai, para ele a maior e a mais extraordinária batalha de todos os tempos."(...) "O altissonante título de general... ficava mal naquele homem plácido, medíocre, bonachão, cuja única preocupação era casar as cinco filhas e arranjar pistolões para fazer passar o filho nos exames do Colégio Militar". (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p.31)
Notasse a ignorância do general Albernaz no tocante às práticas militares. Ele é o reflexo do positivista nefasto que pouco se importa com a pátria, dando apenas relevância aos seus interesses próprios.
Na figura de Inocêncio Bustamonte temos a imagem de um oficial corrupto, pois sempre cultivava uma espécie de clientelismo ao viver de requerimentos pedindo diversas coisas as grandes patentes do exército como medalhas, honras de tenente-coronel e para ele a república foi feita para criar vagas e promoções. A Revolta da Armada foi sua chance de ouro: imaginou e organizou o batalhão "Cruzeiro do Sul", cuja responsabilidade ficou de fato nos ombros de Quaresma, que lhe deu a patente tão ambicionada. A seguinte parte mostra a postura arbitrária desse militar:
“- Folgo muito que o senhor concorde comigo... Vejo que é um patriota..." Resolvi por isso fazer um rateio pelos oficiais, em proporção ao posto: um alferes concorre com cem mil-réis, um tenente com duzentos... O senhor que patente quer? Ah! É verdade! O senhor é major, não é? “ (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997,p.148)
Esse patriotismo de Bustamonte é divergente do de Quaresma, pois, enquanto o tenente – coronel era interesseiro, vendendo patentes para honrar a pátria, Quaresma se preocupava com o Brasil, tendo o presidente como um herói e vivendo da imaginação.
O Almirante Caldas era um digno êmulo de Albernaz, nunca embarcara, mas chegou a participar, durante pouco tempo, da Guerra do Paraguai, onde foi lhe incumbido a missão de comandar um navio inexistente. Como não conseguiu encontrá-lo, foi preso e posto a julgamento. Dedicou-se grande parte da sua vida ao estudo de decretos, leis, alvarás, avisos, consultas que se referiam à promoção de oficiais.
2.2. Sátira a fina flor da burguesia carioca
Genelício, bacharel em direito, aguardava uma vaga no Tribunal de Contas. Ele é um dos personagens mais relevantes da obra, sendo estereotipado, caricatural e convencional. É esposo de uma das filhas do general Albernaz. "Não havia ninguém mais bajulador do que ele.” “Nenhum pudor, nenhuma vergonha!" "Sabia todos os recursos para se valorizar perante os chefes. "Na bajulação e nas manobras para subir, tinha verdadeiramente gênio. Era tido em grande conta, e juntava a sua segura posição administrativa. Podemos perceber a forte hipocresia dessa personagem por ter feito um artigo publicado no Jornal O Liberal com citações em Francês e latim, colocando o ministro nas alturas.
Essa personagem é marcante na obra, pois representa o típico advogado corrupto e bajulador de seus superiores. Lembremos que na época o Direito era uma das profissões de status e tida com muita estima na sociedade brasileira. O narrador não deixa de menosprezar essa classe, como podemos ratificar aqui:
(...) “Acresce que Genelício juntava a sua segura posição administrativa, um curso de direito a acabar; e tantos títulos juntos não podiam deixar de impressionar favoravelmente as preocupações casamenteiras do casal Albernaz.” (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997,p.60)
O narrador ironiza, sem piedade, uma das características da cultura brasileira, principalmente do século XIX, que é o valor atribuído ao advogado e ao indivíduo de boa oratória: o status social era adquirido por essa boa aparência cultural.
Dr. Campos, Presidente da Câmara, é um político que visa apenas os interesses próprios, deixando em detrimento os desfavorecidos quando afirma para Quaresma que a terra era dos grandes fazendeiros e os empregados não valiam nada. Além disso, tentou suborná-lo, a fim de que o major declarasse ao juiz que a sessão eleitoral adversária localizada na sua vizinhança, não houve voto. É notório essa ação arbitrária de Dr. Campos, como podemos observar a seguir:
“-Como o senhor sabe, as eleições se devem realizar por estes dias. A vitória já é “nossa”. Todas as mesas estão conosco, exceto uma... Ai mesmo, se o major quiser...
- Mas, como: Se eu não sou eleitor, não me meto, nem quero meter-me em política? Perguntou Quaresma ingenuamente.
- Exatamente por isso, disse o doutor com a voz forte; e em seguida brandamente: a seção adversária funciona na sua vizinhança, é ali, na escola, se...
_ E daí?
Tenho aqui uma carta do Neves, dirigida ao senhor. Se o major quer responder (é melhor já) que não houve eleição... Quer? O presidente tirou um maço de dinheiro da carta.
-Absolutamente não. Disse o Major com indignação.” (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997,p.113)
Evidenciamos a grande exclusão social feita pelo Dr. Campos quando diz: “a vitória já é nossa”, defendendo apenas os interesses da classe oligárquica, representada pelos grandes fazendeiros. Tendo em vista isso, Policarpo, mesmo mostrando-se ignorante e sem interesse em relação à política, execra a atitude corrupta do Presidente da Câmara quando tenta suborná-lo.
Dr. Armando Borges, outro tipo caricatural, como o Genelício. Casado com Olga, e por isso enriquecido, não se satisfazia: "a ambição de dinheiro e o desejo de nomeada esporeavam-no". Médico do Hospital Sírio, em meia hora atendia a trinta ou mais doentes. Seu grande sonho era ser médico do Estado, e valeu-se da rebelião para alcançar seus objetivos. Desonesto, roubara escandalosamente de uma órfã rica - o que lhe valeu o desafeto da esposa. Achava que o seu pergaminho e o anel de doutor tornavam-no superior aos mortais comuns. Procurava ficar sempre em evidência, por amizades com jornalistas e publicação periódica de artigos, estiradas compilações, em que não havia nada de próprio. Para dar a impressão à esposa e aos outros de que estudava muito, arranjava para ler novelas de Paulo de Kock em lombadas de títulos trocados... Sua última invenção para se manter superior foi a de "traduzir para o clássico as coisas que escrevia, invertendo os termos da oração, repicando-a com vírgulas e entremeando-a com meia dúzia de vocábulos arcaicos.
Cavalcante, noivo de Ismênia, tinha olhos esgazeados, o nariz duro e fortemente ósseo. Era de classe média baixa e apresentava certas dificuldades financeiras como mostra essa parte:
No fim do primeiro ano, tendo notícia das dificuldades com que o futuro genro lutava para acabar os estudos, o general foi generosamente em seu socorro. Pagou-lhe taxas de matrículas, livros e outras coisas. Não era raro que após uma longa conversa com a filha, Dona Maricota viesse ao marido e dissesse:” Chico, arranja vinte mil-réis que o Cavalcanti precisa comprar uma Anatomia” (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997,p.42 )
Notamos o valor que Albernaz dava ao Cavalcante por financiar o seu curso de odontologia. Só o auxiliou devido ao grande prestígio que essa profissão tinha na sociedade republicana. Em contra partida, após se formar, dirigiu-se ao interior e nunca mais deu notícia a noiva que teve uma forte depressão por ter abandonado-a.
2.3 O papel da Mulher na sociedade republicana
Outro aspecto que mostra a proeza de Lima Barreto na representação da sociedade da época diz respeito à análise do papel da mulher. Duas personagens desse segmento que apresentam algumas características distintas, mas com as suas peculiaridades, são Ismênia e Olga.
O drama da personagem Ismênia é também representativo. A moça de temperamento fraco, condicionada desde pequena a fazer do casamento destino, fatalidade, abstração, motivo último da existência, e que sucumbe a ele, aponta para o esvaziamento do caráter, ou seja, natural do casamento como instituição burguesa como é marcante nesta parte do romance:
“(...) Desde menina, ouvia a mãe dizer: -Aprenda a fazer isso, porque quando você se casar”... ou se não: -Você precisa aprender a pregar botões, porque quando se casar...
A todo instante e a toda hora, lá vinha aquele – “porque, quando você se casar...” – e a menina foi se convencendo que toda a existência só tendia para o casamento. A instrução, as satisfações íntimas, a alegria, tudo isso era inútil; a vida se resumia numa coisa: casar.” (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p.41)
Logo, a mulher é condicionada aos laços matrimoniais por motivos que não lhe dizem respeito enquanto ser humano, mas que querem passar por naturais, que são incutidos desde a infância. Sem ele, a humilhação vem com o título de solteirona. E a mulher, presa a tão estreito círculo de idéias, quando as vê quebradas pode mesmo ter perdido a razão de viver. Então a sociedade cuida de não lhe oferecer alternativas.
Olga, afilhada de Policarpo, defendia plenamente os ideais de seu padrinho em transformar a nação em uma grande potência. Mesmo sendo parecida com Ismênia no tocante a valorização do casamento na sociedade fluminense, tinha ideais diferentes. Era preocupada com o progresso da nação e procurava compreender as causas das mazelas sociais e tentar resolvê-las. Lembremo-nos aqui da desolada indagação da personagem Olga:
“Olga, ao ver a miséria geral, a falta de cultivo, a pobreza das casas, o ar triste, abatido da gente pobre (...) Por que, ao redor dessas casas, não havia culturas, uma horta, um pomar? (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997,p. 102)
E, em seguida, temos outro trecho que comprova a concepção ideológica de Olga no tocante a solução desses problemas já mencionados:
“Pensou em ser homem. Se o fosse passaria ali e em outras localidades meses e anos, indagaria, observaria e com certeza havia de encontrar o motivo e o remédio.” (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p. 102)
Nesses dois trechos do romance, Olga diferencia-se das demais mulheres da sociedade, (restritas somente a função de reprodutora, não tendo, portanto, condição de se dedicar ao trabalho intelectual. Desta forma, o desejo de ser homem, expresso por Olga, nos indica as várias opções e alternativas possíveis permitidas aos homens) pois se preocupava inteiramente com os problemas sociais encontrados no campo e na sociedade suburbana. As observações sociais e as interrogações feitas por Olga revelam e antecipam que a mulher da segunda metade do século XX terá.
Foi marcante a sua atuação como defensora dos ideais do padrinho em valorizar a nação brasileira. Lutou ao lado dele e o incentivou, após ter saído do hospício, em comprar um sítio nas terras de Curuzu, onde irá se revelar todo o apego de Policarpo ao campo. Olga lutou até o fim com o Major a fim de mudar qualitativamente a pátria do Cruzeiro do Sul.
2.4 A denúncia da péssima condição de vida das classes populares
É muito intrigante a análise feita pelo narrador em relação à péssima condição das classes subalternas presentes no romance. A representação dessa realidade cheia de vícios gritantes na distribuição do Poder e da Riqueza recai sobre a infra-estrutura burocrática, civil e militar, justaposta ao caráter agroexportador e dependente do país, marcante no início do século XIX.
Os reflexos dessa tendência neoliberal são refletidas em Policarpo quando o autor fala da mentalidade preconceituosa, frívola e europeizante presente na classe média carioca. Também é marcante a forma em que o subproletariado se manifesta em expansão nos “caixotins humanos” do subúrbio onde morava Ricardo e a condição desanimadora da terra e da população rural representada por Felizardo e Anastácio, agricultores empregados de Policarpo Quaresma.
Na atmosfera suburbana, temos a figura de Ricardo Coração dos Outros (lembremos o sobrenome “Coração dos Outros que é uma referência às classes excluídas), famoso pela sua habilidade em cantar modinhas e tocar violão. No começo, a sua fama estivera limitada a um pequeno subúrbio da cidade, cujos "saraus" ele e seu violão figuravam como Paganini e a sua rabeca em festas de duques. Depois ela cresceu, e ele passou a "freqüentar e honrar" as melhores famílias presentes na fina flor da burguesia. Já chegava a São Cristóvão e em breve (ele o esperava) Botafogo convidá-lo-ia, pois os jornais já falavam no seu nome..." – Era magro, baixo, pálido, quase sempre carregando um violão agasalhado numa bolsa de camurça. Vivendo para o violão e as modinhas, e para o ideal de chegar até Botafogo. Ficava alheio as contingências terrenas, isolado no seu cubículo de uma casa de cômodos, almoçando café, que ele mesmo fazia, e pão, indo à tarde jantar a uma tasca próxima". A sua figura de cabo recrutado à força era cômica: "a blusa (do fardamento) era curtíssima sungada; os punhos lhe apareciam inteiramente; e as calças eram compridíssimas e arrastavam no chão". Essa personagem caricatural era muito estimada por Policarpo, devido ao seu grande apreço pela modinha como sendo a mais genuína expressão da poesia nacional e o violão é o instrumento que ela pede. Ainda temos indícios de preconceito por parte de Ricardo em relação a um negro que aparece como revelação na modinha, sendo inadmissível para ele, comprovado aqui:
“Aborrecia-se com o rival, por dois fatos: primeiro: pelo sujeito ser preto; segundo: por causa das suas teorias.
Não é que ele tivesse ojeriza particular aos pretos. O que ele via no fato de um preto famoso tocar violão, era que tal coisa ia diminuir ainda mais o prestígio do instrumento.” (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997 ,p. 69)
Temos como destaque o preconceito racial camuflado, pois Ricardo queria ser o único a se popularizar na sociedade fluminense com seu penhor artístico na arte da modinha, execrando a idéia de ter outro concorrente para mudar os padrões desse gênero musical.
Em se tratando das condições da zona rural, temos como personagem representativo Felizardo, muito trabalhador, foi contratado por Quaresma para trabalhar no seu Sítio Sossego. Casado com a curandeira Sinhá Chica. "Era magro, alto, de longos braços, longas pernas, como um símio". Muito conversador, leva-e-traz. Foi chamando para fazer parte do Exército do Cruzeiro na Revolta da Esquadra. Acabou fugindo para o campo, livrando-se do recrutamento.
Sinha Chica, mulher de Felizardo, velha cafuza, espécie de Medéia esquelética, cuja fama de rezadeira pairava por todo o município. Vivia sempre mergulhada no seu sonho divino, abismada nos misteriosos poderes dos feitiços, sentada sobre as pernas cruzadas, olhos baixos, fixos, de fraco brilho, parecendo esmalte de olhos de múmia, tanto ela era encarquilhada e seca. Devido as suas crendices populares, fazia previsões de quando chovia. Chegou até a entrar em dicotomia com Policarpo em relação ao dia em que iria chover.
Como se vê, com essa história de Policarpo Quaresma, Lima Barreto faz uma crítica à sociedade brasileira do século XIX, em vários aspectos, entre os quais ressaltam-se os seguintes: o interesse em patentes militares e o clientelismo por parte dos oficiais do exército, a figura do advogado (satirizada pelo autor) representada por Genelício, o simbolismo da figura do Dr. Campos, a sátira feita a personagem Armando Borges (marido de Olga), a crítica limabarretiana à respeito do papel da mulher intermediado pelas personagens Ismênia e Olga e a denúncia da péssima condição de vida das classes humildes.
3. Um nacionalismo às avessas
Como vimos no 1º capítulo deste trabalho, o tema do patriotismo exacerbado se evidencia claramente no modo de ser, de pensar e de agir do Major Quaresma. Agora, tentaremos fazer uma interpretação desse nacionalismo ufanista, isto é, tentaremos esclarecer o significado que assume ao longo da obra.
Inicialmente, observamos que o ufanismo de Policarpo Quaresma não é algo, por assim dizer, normal, pois sempre aparece num contexto de ironia, de muito humor, de crítica, enfim, pois em nenhum momento as ações de Policarpo são levadas a sério; muito pelo contrário, estão sendo sempre ridicularizadas por todos, por seus parentes, por seus colegas, por seus amigos.Todos os seus planos de reforma vão por água abaixo. Em todos os âmbitos em que tentou intervir na vida sócio – cultural, econômica e política – Quaresma fracassou.
O major não deixa de ser representado plausivelmente como o Don Quixote, que norteava a sua vida por uma ilusão. O que corrobora essa característica são as suas atitudes esdrúxulas aos costumes da época, como exemplo, o jeito escalafobético em cultivar sua terra no sítio Sossego, não tendo nenhum conhecimento prático de agronomia. Por isso, grande é a sua decepção em relação ao ataque das formigas saúvas na sua lavoura. Na parte em que o Major Quaresma assiste no seu sítio “Sossego”, podemos exaltar também traços jocosos doravante a sua atitude como fazendeiro. Um deles está presente na seguinte passagem:
Quaresma agarrava-o, punha-se em posição e procurava com toda a boa vontade usá-lo de maneira ensinada. Era em vão. O flange batia na erva, a enxada saltava e ouvia-se um pássaro ao alto saltar uma piada irônica: bem-te-vi! O major enfurecia-se, tentava outra vez, fatigava-se, suava, enchia-se de raiva e batia com toda a força; e houve várias vezes que a enxada, batendo em falso, escapando ao chão, fê-lo perder o equilíbrio, cair, e beijar a terra, mãe dos frutos e dos homens. O pince-nez saltava, partia-se de encontro a um seixo. (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p. 78)
Evidencia-se a falta de conhecimento prático, criando essa imagem cômica de Quaresma capinando. Ao invés de arrancar as ervas daninhas, fazia grandes torrões na terra, ocasionando prejuízos no Sossego. O seu criado, Anastácio, tendo conhecimento da roça, ensinava-lhe como exercer tal função.
O herói tragicômico é um dos traços que se destaca no romance. Segundo KOTHE: “O cômico procura mostrar o alto como baixo, mas centraliza a atenção no baixo. O trágico procura mostrar a queda do elevado e a grandeza do caído. (p.45,1987)
Notamos que quanto mais Policarpo era elevado literariamente pelo seu grande intelectualismo e por seus projetos culturais e econômicos, mais ele era rebaixado pelas sátiras da sociedade brasileira mediante as suas iniciativas esdrúxulas aos costumes da realidade republicana.
Consoante KOTHE: “A sátira tende a voltar-se contra os poderosos do momento, numa espécie de vingança dos fracos. Só que ela é possível tão-somente na proporção em que estes fracos não são fracos: e isto tanto no conteúdo satirizado quanto na forma pela qual isso pode ser levado à população em geral ou a certos grupos.” (p. 44, 1987).
Policarpo Quaresma, portanto, é essencialmente uma personagem tragicômica, notando-se esses efeitos ao longo do romance. Na primeira e na segunda parte da trama, ele é tido como cômico, ao tentar implantar o tupi e pelo jeito escalafobético de trabalhar na agricultura; já na terceira parte da história, temos a tragédia, pois todo o idealismo do major cai na bancarrota e todos os seus projetos não são profícuos para solucionar os problemas pertinentes à nação.
Em suma, DIAS (1997) comenta que o romance tem a intenção de fazer o leitor achar graça e, ao mesmo tempo, ter pena- e até raiva- do seu “doce, bom e modesto” Quaresma, o patriota – visionário, isto é, sensibilizando-nos de modos diversos e simultâneos. O autor ativa a percepção da nossa e da alheia possibilidade de aglutinar sentimentos contraditórios frente a um “real” contraditório.
Mais adiante, ainda na segunda parte da obra, a personagem central se depara com um artigo do jornal apoiado pelo partido da situação, onde há um poemeto de duas estrofes, satirizando-o:
“POLÍTICA DE CURUZU
Quaresma, meu bem, Quaresma!
Quaresma do coração!
Deixa as batatas em paz,
Deixa em paz o feixão.
Jeito não tens para isso
Quaresma, meu cocumbi!
Volta à mania antiga
De redigir em tupi.”
OLHO VIVO
(BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p100 -101)
Forte ironia em forma de versos no tocante à iniciativa de Policarpo em se intrometer na vida particular e política das famílias de Curuzu. Há uma visão errônea por acharem nessa pequena cidade interiorana, fictícia, que o Major foi para lá com intenções políticas por dar esmola e deixar o povo desvalido trabalhar em suas terras, além de distribuir alimentos.
Nesse momento da trama, há um forte sentimento utópico e patriótico que vai pairar no apego da personagem à agricultura, comprovando-se que as terras brasileiras eram realmente fecundas:
Vou fazer o que tu dizes: plantar, criar, cultivar o milho, o feijão, a batata-inglesa... Tu irás ver as minhas culturas, a minha horta, o meu pomar – então é que te convencerás como são fecundas as nossas terras! (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p. 74)
De acordo com Lins (1976, p. 39), contrariamente à visão utópica do "paraíso terreal," o resultado será aqui outro desastre e a terra quase nada produz, e as saúvas aferroam o major com a mesma violência que a da impiedosa reação geral ao seu infeliz requerimento. A esterilidade de Policarpo Quaresma – que não tinha filhos – é a mesma de seus projetos utópicos:
Abriu a porta; nada viu. Ia procurar nos cantos, quando sentiu uma ferroada no peito do pé. Quase gritou. Abaixou a vela para ver melhor e deu com uma enorme saúva agarrada com toda a fúria à sua pele magra. (...) (...) Matou uma, duas, vinte, cem; mas eram milhares e cada vez mais o exército aumentava. Veio uma morde-o, depois outra, e o foram mordendo pelas as pernas, pelos os pés, subindo pelo seu corpo. Não pode agüentar, gritou, sapateou e deixou a vela cair (BARRETO, 1997, p.105).
De acordo com a música “País tropical” de Jorge Ben Jor, temos: Moro! / Num país tropical/ abençoado por Deus / E bonito por natureza (Mas que beleza!). Toda essa imagem inefável do Brasil, cheio de opulências naturais, são exaltadas para ocultar todos as mazelas sociais, políticas e culturais presentes em nossa nação. Em paralelo com essa letra musical, podemos exaltar a preocupação do Major em transformar a nação em uma grande potência agrícola, sendo alienado em relação a esses problemas que eram marcantes na realidade da época.
A significação do nacionalismo exacerbado de Policarpo vai-se evidenciando também à medida que verificamos os desencontros desse patriotismo patético, dessa visão idealista do Brasil, com a realidade brasileira, cujas mazelas são denunciadas através das críticas a segmentos representativos dessa realidade, como tratamos no segundo capítulo do trabalho.
Em outras palavras, esse descompasso mostra a completa inadequação de Policarpo à realidade. Trata-se, portanto, de um falso nacionalismo, de um nacionalismo equivocado, pois, não obstante as corretas intenções de participação social de Policarpo, essa participação assume conteúdos equivocados.
Na terceira parte do romance, Policarpo, na função de oficial na guerra civil, tenta pôr em prática suas idéias políticas por ocasião da repressão do levante da Marinha na Baía de Guanabara. Porém, como um Dom Quixote do patriotismo, sempre fracassa por tentar aplicar mecanicamente à realidade as doutrinas alienadoras que aprendeu nos livros.
Há um forte empenho de Policarpo em participar da Revolta da Armada, movimento que eclodiu no Rio de Janeiro, no final do Século XIX, que tinha como fim tirar Floriano Peixoto do poder. É muito interessante a divergência entre Policarpo e as demais personagens quanto ao motivo que conduzem à participação na luta.
O narrador expõe a personagem a um novo espaço e ações. Quaresma deveria ser um dos chefes do quartel provisório e suas ações deviam ser militares. É nessa parte que irá se ampliar a ponte divisora de águas que separa o protagonista de outros personagens. Com exceção de Ricardo Coração dos Outros, ninguém mais se entenderá novamente com o major. Ele faz uma árdua autocrítica, culminando na desesperançosa carta que escreve para a sua irmã Adelaide, com o seguinte acento:
"O melhor é não agir, Adelaide (...). Além de que, penso que todo este meu sacrifício tem sido inútil" (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997 p. 167).
De fato, todo o nacionalismo semeado por ele e o fato de se meter em uma guerra civil tinha caído em bancarrota. Policarpo via em Floriano Peixoto a figura de Henrique IV. Esse rei francês havia cortado os abusos dos governadores das províncias em cobrar impostos arbitrários da população. Na realidade Floriano não era esse déspota (soberano e poderoso), mas um homem totalmente caricatural, de fisionomia “vulgar e desoladora”, como observamos na obra:
O bigode caído; o lábio inferior pendente e mole a que se agarrava uma grande mosca; os traços flácidos e grosseiros; (...) Era um olhar mortiço, redondo, pobre de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era individual, mas nativa, de raça; e todo ele era gelatinoso – parecia não ter nervos” ( BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997 p. 130).
Policarpo se transforma em um carcereiro dos revoltosos derrotados, e, numa ocasião, presencia uma cena chocante: um oficial do governo, ao acaso, vai selecionando prisioneiros que são retirados das celas e levados para serem fuzilados. Indignado com essa arbitrariedade, Quaresma decide escrever com veemência uma carta a Floriano criticando tais atitudes. Logo, os que se dizem “defensores da pátria”, não deixam de ser satirizados por Lima Barreto.
A maioria desses militares do regime republicano assume uma postura positivista que pode ser caracterizado, consoante Oiticica: “todos esses são adeptos desse nefasto e hipócrita positivismo, um pedantismo tirânico limitado e estreito, que justifica todas as violências, todos os assassínios, todas as ferocidades em nome da ordem, condições necessárias ao progresso e também ao advento do regime normal: a religião da humanidade, a adoração do grão-feitiche, com fanhosas músicas de cornetins e versos detestáveis, o paraíso enfim, com inscrições em escrituras e eleitas calçados de sola de borracha!..."(OITICICA, 1963, p. 200).
Essa é uma crítica à relação árdua entre “ordem e progresso” e ao ideário positivista que era adotado pelos militares da época.
Sendo considerado o subversivo da Ordem e do Progresso, Policarpo acaba sendo preso e é na prisão onde brotará toda a crise existencial da personagem, fazendo uma reflexão sobre fatos que ocorreram em sua vida:
Desde dezoito anos que o tal patriotismo o absorvia e por ele fizera a tolice de estudar inutilidades. Que lhe importavam os rios? Eram grandes? Pois se fossem... Em que lhe contribuiria para a felicidade saber o nome dos heróis do Brasil? Em nada... O importante é que ele tivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-se das suas coisas de tupi, folklore, das suas tentativas agrícolas... Restava disso tudo em sua alma uma satisfação? Nenhuma! Nenhuma! (BARRETO, 1997, p. 175)
Em contradição à ideologia quaresmiana, certos membros da sociedade, em especial das Forças Armadas, apenas defendiam seus interesses próprios, não se preocupavam nem um pouco com o progresso da nação, mas em promoções de cargos mais superiores dentro de seus seguimentos militares. Para comprovar esse fato, cito um dos trechos iniciais que expõe essa questão:
“- Folgo muito que o senhor concorde comigo... Vejo que é um patriota..." Resolvi por isso fazer um rateio pelos oficiais, em proporção ao posto: um alferes concorre com cem mil-réis, um tenente com duzentos... O senhor que patente quer? Ah! É verdade! O senhor é major, não é? “ (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997,p.148)
Quaresma então explicou por que o tratavam por major. Um amigo, influência no Ministério do Interior, lhe tinha metido o nome numa lista de guardas-nacionais, com esse posto. Nunca tendo pago os emolumentos, viu-se, entretanto, sempre tratado por major, e a coisa pegou. A princípio, protestou, mas, como teimassem, deixou.
Esse patriotismo de Bustamonte é divergente do de Quaresma, pois, enquanto o tenente – coronel era interesseiro, vendendo patentes para honrar a pátria, Quaresma se preocupava com o Brasil, tendo o presidente como um herói e vivendo da imaginação, logo, sem conhecer os problemas reais pertinentes à nação.
Mais adiante, temos o descaso de Policarpo com a Revolta da Armada, devido às práticas arbitrárias, Policarpo se opõe ao nefasto positivismo de Floriano Peixoto na luta contra os marinheiros na Revolta da Armada, pois acaba chocado com as injustiças cometidas contra os revoltosos e escreve uma carta para esse ditador, denunciando as práticas de torturas e a execução dos tais marinheiros, o que culminará em sua prisão por traição à pátria. É nesse último momento que Policarpo reconhece que seu ufanismo é totalmente equivocado e todo o seu esforço em implantar projetos para transformar a pátria em uma grande potência não passa de um grande sonho. A seguir temos o trecho da carta de Quaresma feito a sua irmã, expressando sua insatisfação com o regime:
Além do que, penso que todo este meu sacrifício tem sido inútil. Tudo o que nele pus de pensamento não foi atingido, e o sangue que derramei, e o sofrimento que vou sofrer toda a vida, foram empregados foram gastos, foram estragados, foram vilipendiados e desmoralizados em prol de uma tolice política qualquer... ( BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997 p.167)
Comprovamos o forte descaso com as grandes aspirações de Quaresma através dessa carta revelação. “O Quaresma visionário”, cheio de sonhos e que tentava, com todo penhor, trazer mudanças qualitativas para a nação, acabou se tornando o desiludido pelas suas causas perdidas.
Já no último capítulo do romance, intitulado como “A afilhada”, temos os últimos indícios do arrependimento da personagem, quando o seu triste fim está prestes a acontecer. Alguns fragmentos podem comprovar esse momento:
Como lhe parecia ilógico com ele mesmo estar ali metido naquele estreito calabouço? Pois ele, o Quaresma plácido, o Quaresma de tão profundos pensamentos patrióticos, merecia aquele triste fim? De que maneira sorrateira o destino o arrastara até ali, sem que ele pudesse pressentir o seu extravagante propósito, tão aparentemente sem relação com o resto da sua vida? ( BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997 p.174) ”
O narrador questiona a causa da prisão de Policarpo Quaresma, que ratifica todo o ufanismo equivocado dessa personagem. Logo notamos que a luta incessante do major por um desenvolvimento nacional não passou de uma forma extravagante, de um nacionalismo fanático e ufanista, sedimentado em mitos romântico – reacionários, como se expressa Dias (1997)
Ainda nas últimas páginas do romance, temos outra constatação do arrependimento de Quaresma:
Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha ele feito de sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito de contribuir para a sua felicidade e prosperidade (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p.174)
É forte a decepção de Policarpo por ter incutido em sua mente a ilusão de contribuir com algo significativo para sua nação, pois havia estudado tudo o que diz respeito à pátria, mas acabou condenado à morte.
Enfim, como desfecho do romance, temos uma forte revelação de Olga em relação à confiança que ela tem no futuro da nação e de todos os seus progressos:
Saiu e andou. Olhou o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, e se lembrou que, por estas terras, já tinham errado tribos selvagens, das quais um dos chefes se orgulhava de ter no sangue o sangue de dez mil inimigos. Fora há quatro séculos. Olhou de novo o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, as casas, as igrejas; viu os bondes passarem; uma locomotiva apitou; um carro, puxado por uma linda parelha, atravessou-lhe na frente, quando já a entrar do campo... Tinha havido a grandes e inúmeras modificações (BARRETO, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p.182).
Esse desfecho do livro é a constatação, feita por Olga, de que todas as coisas mudam. A certeza de que tudo é passível de transformações é confirmada pela descrição do passado e do presente: “ontem, tribos selvagens, hoje, homens e locomotivas.” Essa certeza de transformações une-se à certeza de que tudo mudará. É evidente a certeza errônea de que haverá mudanças no mundo, que a personagem segue “serenamente”.
Podemos concluir que apesar das trágicas contradições que ainda dilaceram a sociedade e a atitude de Policarpo Quaresma, Lima Barreto nos ensina a sermos fiéis aos recursos de que a humanidade dispõe para superar essas contradições e que também Olga, sem alimentar ilusões, pôde confiar serenamente no futuro de todos os homens.
Enfim, podemos constatar que o Ufanismo do nosso herói quixotesco não passou de uma iniciativa extravagante e equivocada, que não gerou nenhuma mudança para a realidade brasileira. Logo, esse personagem não fez jus ao seu nome: Policarpo vem do grego (Polykarpos) e significa o de muitos (poly) frutos (karpos) e Quaresma também lembra tristeza e penitência.
Considerações Finais
A reconstrução literária da ideologia nacionalista realizada por Lima Barreto assume um caráter nitidamente crítico e desmistificador. A crítica ao nacionalismo ocorre desde o início quando verificamos aspectos pertinentes ao tragicômico e à ironia em Policarpo. Já no fim do romance o narrador procura elucidar que a personagem central reconhece seu engano e se conscientiza de que o seu patriotismo era uma ficção. O final apresenta unidade de pensamento do narrador e de Policarpo, realizada através do desenvolvimento da consciência deste último, que ocorreu por intermédio de sua experiência própria e demonstra a completa superação da ideologia do primeiro.
Por não conseguir decifrar os códigos de sua sociedade, Quaresma torna-se um melancólico, isola-se de tudo por saber que nada poderia alterar. Seu mundo desmorona, sua história não contribui em nada, não faz parte do mundo dos homens poderosos, constata melancolicamente que a História é escrita pelos vencedores. Porém, o ingênuo e caricato "Dom Quixote" de Lima Barreto, parece nada perceber ou ver, mas é através de sua luta contra "moinhos de ventos", que nós leitores começamos a enxergar a figura caricata da sociedade e do nacionalismo.
O cerne deste trabalho, pois, reside na interpretação do nacionalismo exacerbado de Policarpo, mostrando que esse modo de caracterizar a personagem foi um recurso utilizado por Lima Barreto, a fim de mostrar as maneiras equivocadas de pensarem as saídas para os problemas brasileiros, como a que intentou Policarpo.
Em suma diríamos que Triste Fim de Policarpo Quaresma é uma denúncia das verdadeiras mazelas sociais brasileiras, através, sobretudo, do modo como Lima Barreto criou a instigante personagem protagonista do romance: Policarpo Quaresma.
REFERÊNCIAS
-BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Ed. Ática, 1997.
-BOSSI, Alfredo. O Pré – Modernismo literatura brasileira. São Paulo: Ed. Cultrix, 1996.
-BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2004.
- BRAIT, Beth. A Personagem. São Paulo. Ed. Ática, 1997.
-DIAS, Carmen. Triste Fim de Policarpo Quaresma-Ensaio: Quaresma / Ressurreição. Ed. Ática,1997.
-FIGUEIREDO, Maria / BELO, Maria. Comentar um texto literário: O que é um comentário, Metodologia, as diferentes cases de elaboração e alguns textos comentados. Lisboa, Abril, 1999.
-BENJOR, Jorge. Música: Pais tropical.
-KOTHE, Flávio R. O Herói. São Paulo. Ed. Ática, 1987.
-LINS, Osmam. Lima Barreto e espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
-OITICICA, José. A organização militar. In: LEUENROTH, Edgard (org). Anarquismo, roteiro de libertação social. Rio de Janeiro: Mundo livre, 1963.