Cotas raciais

1. Tenho pensando sobre a ideia de cotas raciais para o ingresso em universidades públicas. Minhas reflexões sobre o tema têm me dado grande prazer, pois acredito que há doses de boa cafeína para saborearmos analisando os argumentos em disputa. Confesso, pois, que tem sido um bom exercício para afastar a indolência mental – que sempre me tenta - ler o que algumas pessoas pensam sobre o tema e aventurar-me na organização das minhas próprias idéias a respeito do assunto.

2. Creio que há duas alegações principais dos defensores das cotas: (a) devemos levar em conta o princípio do tratamento desigual para desiguais e (b) é preciso saldar a “imensa dívida social do Estado e do conjunto da sociedade brasileira em relação [aos negros]” (palavras do ministro Edson Santos). Pretendo tratar esses pontos nos próximos posts. No momento, gostaria apenas de consignar uma posição a respeito de uma eventual legitimidade das cotas raciais.

3. Defendo a opinião que não compete ao Estado determinar quem pode ou não entrar numa universidade. Isso implica, obviamente, não poder o Estado legitimamente determinar critérios raciais. As universidades é que devem decidir critérios de seleção. Portanto, qualquer legislação racial – acho que pode ser chamada assim a proposta do governo de criação de cotas raciais - é um equívoco. Na verdade, não é um equívoco apenas por que alcança as universidades, mas pelo fato de ser uma exorbitância da função do Estado que deveria ser apenas proteger a liberdade dos indivíduos. É claro que é uma conseqüência da tese da não legitimidade da interferência do Estado em assuntos acadêmicos – essa ideia tem alguma coisa a ver com o que alguns chamam autonomia universitária, alguma coisa apenas – que universidades poderiam licitamente estabelecer cotas. Sim, mas vejo essa licitude como algo pacífico apenas se se tratar de universidades privadas, desde que, é claro, o Estado não imponha nada. Ou seja, às universidades deve ser reconhecido o direito de adotarem ou não cotas (o mesmo deveria valer para qualquer atividade econômica).

3.1. Por que não seria pacífica a licitude moral das cotas em universidades públicas? Para responder a essa pergunta é bom explicar por que vejo como lícita a instituição de cotas em universidades privadas. A ideia básica é a seguinte: como empresa privada, uma universidade pode aceitar quem ela quiser, o que significa também o direito de não querer aceitar alguns (e de não aceitar simplesmente). Porque precisamos entender que, ao se falar de cotas raciais e usar a palavrinha mágica inclusão, teremos de aceitar a exclusão. Com efeito, cotas raciais valem como critério de preferência. Isso envolve a ideia de que dois seres humanos, um negro e um branco, caso venham a empatar no mérito intelectual aferido por exames de ingresso, ou se apenas negro e branco tiverem uma diferença pequena (em favor do branco), será dada preferência ao negro. O negro A será incluído e o branco B será excluído. Logo, as cotas raciais também envolvem exclusão. Até aí tudo bem (embora aos defensores das cotas raciais talvez não agrade assumir isso). Bem, numa universidade privada, os donos podem licitamente decidir que 60% das vagas serão destinadas a negros. O que há de errado nisso? Nada, pois se trata de uma universidade privada. Aqueles que se inscreveram no vestibular, ou nas provas de ingresso dessa universidade pactuaram que a cor da pele valeria como um dos critérios de ingresso. Ninguém foi lesado. Notem: ninguém foi lesado. Ocorreu um contrato claro, sem qualquer coerção. (É evidente que se trata, aqui, de um mero exercício mental exploratório. Dificilmente seria uma boa estratégia competitiva. No mínimo seria um negócio arriscado).

3.2. Pois bem, mas e numa universidade pública? Acho aqui a tese mais difícil, pois o seu financiamento é público. Em termos gerais, um branco e um negro são igualmente coagidos a pagarem impostos. Notem: são coagidos. Não há contrato. Dado que ambos são, sob coerção, igualmente pagadores de impostos, eles não deveriam ser portadores dos mesmos direitos? Por que o branco pagaria impostos, isto é, seria coagido a retirar do seu bolso dinheiro para financiar um ensino em que seu ingresso (ou de seus filhos) se vê discriminado? Esse é um ponto.

4. Próximos posts. Sobre o principio do tratamento desigual para desiguais. A relação entre a ideia de dívida histórica e responsabilidade moral.

Adianto, embora sabendo ser ocioso o aviso, que tentarei desmontar os argumentos dos defensores das cotas.