humildes vítimas

Dizem os Direitos da Criança que esta deve fruir de condições sócio-culturais que contribuam para o seu crescimento. Mas, no final do segundo milénio, ainda há meninos e meninas que não sabem o que é jogar às escondidas e que não conhecem a escola. Maltratadas ou exploradas pelos pais ou educadores, muitas encontram uma família numa instituição de acolhimento ou através do processo de adopção. Mas nem sempre pobreza significa degradação, como testemunham os membros de uma comunidade cigana. As humildes vítimas são retratadas nesta reportagem por pediatras, psiquiatras, assistentes sociais, educadores e tutores.

Todos os anos, a 1 de Junho, comemora-se o Dia Internacional da Criança. As escolas organizam festas e os pais oferecem presentes, sem esquecerem um beijo especial logo de manhã. Este procedimento é natural em meios familiares onde as crianças são privilegiadas com o direito de brincar, de aprender e de receber amor.

Noutros mundos, bem diferentes, outras crianças não conhecem esses mesmos direitos e vivem o dia como outro qualquer. Com os olhos fixos nos pais embriagados, exploradas a todos os níveis, violentadas nos seus mais elementares direitos.

João Almiro lida directamente com crianças provenientes de ambientes familiares degradados ou socialmente marginalizadas, através do projecto "Convívio Jovem", que ele próprio criou em Campo de Besteiros, Tondela. Farmacêutico de profissão, este homem - que conta quase 80 anos - passou grande parte da sua vida a tentar recuperar adultos alcoólicos.

Ao deslocar-se a casa dos mesmos, no sentido de os convencer a tratarem-se com ajuda médica, observava com preocupação os olhares tristes da crianças que, segundo diz, "a um canto, pareciam ansiar que os pais dissessem que sim, que queriam deixar o álcool".

Esta foi a ponte para o projecto "Convívio Jovem", com características próprias que explicam o êxito alcançado na recuperação de crianças em situação de risco, portadoras de deficiências físicas e (ou) intelectuais, vítimas do alcoolismo ou da toxicodependência dos pais.

Hoje, numa casa construída a grande custo - apesar de algumas ajudas estatais - vivem 79 crianças e jovens que assumem João Almiro como pai adoptivo. O ambiente é familiar, não se limitando a proporcionar condições humanas, mas também uma educação e consequente preparação para a vida adulta.

Exemplo disso, é a forma como João Almiro lida com os "filhos", atribuindo-lhes direitos e deveres, liberdade e responsabilidade: "Todos eles têm uma pequena caixa, onde vão guardando a mesada a que têm direito. Hoje dou tanto, amanhã dou outro tanto. Eles sabem o que podem gastar e como devem gastar. O que sobra é depositado numa conta particular. Posso dizer que há aqui crianças que já economizaram para cima de mil contos".

João Almiro dorme na instituição. Apesar de ter casa própria e a possibilidade de uma vida descontraída, sem preocupações financeiras, opta por viver sob o mesmo tecto que as crianças, partilhar as refeições e até mesmo vestir o que vai chegando à casa cor-de-rosa pela mão da comunidade. Sem vergonha, é ele mesmo que confessa: "Este fato que trago vestido é roupa usada que eu aproveito".

Proprietário da "Labesfal", em Tondela, acabou por deixar a empresa ao cuidados dos filhos biológicos e entregar-se de corpo e alma às suas crianças, que vão crescendo em número e para as quais começa a ser complicado arranjar um canto para dormir. Por esse motivo, vão surgindo camas improvisadas no chão, para aqueles que chegam e que precisam urgentemente de amor, carinho, compreensão, mas também de alimento, educação e cuidados especiais.

Os mais velhos ocupam-se das obras na ala superior do edifício, um sótão espaçoso para receber mais quartos. A maioria deles são ex-toxicodependentes, recuperados a partir da instituição, que vivem completamente integrados na comunidade. Durante o dia, executam trabalhos de serralharia, mecânica e carpintaria.

Apesar de tudo correr dentro da normalidade, João Almiro é confrontado com a questão financeira. A Segurança Social colabora com subsídios para ajudar nas despesas com as crianças, mas tal apoio não beneficia toda a comunidade. Para os restantes 27 jovens há que recorrer a empresas, que enviam alimentos e outros géneros necessários à manutenção da instituição, bem como aos donativos dos amigos da casa.

Sentindo-se muitas vezes impotente para levar adiante os seus objectivos, João Almiro não hesita em recorrer a outros intervenientes, como é o caso do Centro da Área Educativa de Viseu e da Direcção Regional de Educação do Centro (no apoio técnico à instituição), da Associação de Defesa de Tondela (no que respeita à formação profissional dos jovens e sua inserção na vida activa), da Delegação Distrital do "Projecto Vida" (com vista à prevenção primária, secundária e terciária) e dos serviços de saúde locais e regionais (no apoio de medicamentos).

Só desta forma consegue contribuir para a recuperação das crianças que por ali surgem com graves problemas de descontrole emocional.

Uma questão de sorte

Nuno Miguel, 10 anos, vivia sozinho no interior de uma viatura, no meio de um olival em Abrantes. Subsistindo graças à ajudas dos vizinhos, dado que a mãe só esporadicamente o visitava, foi uma senhora da localidade que, conhecendo a situação, entrou em contacto com o "Contacto Jovem".

Sensível a esta história, João Almiro várias vezes se deslocou a Abrantes com a criança para visitar os vizinhos que denunciaram a situação e que ficam admirados com o desenvolvimento de Nuno Miguel. "Uma vez encontrámos a mãe e o garoto abraçou-a com satisfação. Mas, como já estávamos a demorar, começou a temer que eu o deixasse lá. Agarrou-se a mim com tamanha força, fugiu para o carro e não saiu dali" - explica João Almiro.

Também Luís Ribeiro, 12 anos, natural de Vila do Conde, vivia fechado num curral com o irmão, Marina Alexandre, de 11 anos. Ali não entrava qualquer raio de luz e acumulavam-se fezes que causavam um cheiro nauseabundo. Só quando a criança partiu uma perna, se conheceu a situação que foi, de imediato, comunicada ao delegado de Saúde.

Os dois irmãos frequentam o 1º Ciclo do Ensino Básico e desfrutam, recentemente, da companhia do irmão de 13 anos, que os pais levaram à instituição por este se encontrar gravemente ferido num olho, derivado de uma bulha entre o casal.

Na mesma altura, João Almiro transportou o bebé ao Hospital de Tondela, tendo sido transferido para o Hospital de Viseu e, face à gravidade do ferimento, com urgência para o Hospital de Coimbra, onde foi operado sem êxito. A criança está cega de um olho por negligência dos pais.

Outro caso problemático está relacionado com a Betinha, 14 anos, natural de Viseu. Sofre de mongolismo e é filha de ciganos que vivem em tendas perto da estátua de Viriato. Quando a situação foi denunciada pelas assistentes sociais do Hospital Distrital de Viseu a João Almiro, esta encontrava-se coberta de chagas, devido a mordidas de ratos, atraídos pela porcaria que se acumulava junto ao local onde permanecia todo o dia.

Ao chegar paralisada à instituição, recebeu apoio de Educação Especial, começando pouco tempo depois a caminhar, a falar e a comer pela própria mão. Apesar de algumas atitudes agressivas, a Betinha também consegue ser meiga com as restantes crianças. "É um encanto de menina" - garante João Almiro.

Casos como estes chegam com frequência ao "Convívio Jovem" e são tratados por João Almiro, que não olha a meios para abrigar uma criança que não tenha condições de sobrevivência.

"Se não levar dinheiro o meu pai bate-me"

É num café central de Viseu que tomo contacto com Carlos, de 5 anos. O menino, franzino para a idade, aproxima-se e pede dinheiro. Ao longe, passava por uma criança como as outras, apesar do seu ar desajeitado. Mas aqui, ao meu lado, deixa transparecer uma tristeza sem fim.

Através dos seus olhos, concluo que esteve a chorar há pouco tempo. Pergunto-lhe o que é que se passa: "Dê-me dinheiro! Se não levar algum ao meu pai, ele bate-me" - suplica.

Entretanto, já se sentou ao meu lado, apontando para uma vitrine do café. "Com pre-me um pacote de batatas fritas, ande lá... eu não tenho dinheiro!". Tentei convence-lo a comer algo mais nutritivo mas, no final, concluí que há pedidos que não se negam e que aquela criança, concerteza, não comeria guloseimas todos os dias.

Carlitos fica satisfeito com o seu pacote de batatas fritas. Ainda na minha mesa, vai mastigando-as sofregamente, como que com medo que alguém lhe tire o resto do pacote. No entanto, prevalece triste e desta vez as lágrimas deslizam pela cara miúda. A sua história, não a quis contar. Palavras, para quê?

João, 9 anos, corre todas as mesas da pastelaria de mão estendida, Poucos lhe ligam, preferindo desviar os olhos enquanto pegam na chávena de café e acendem um cigarro ou, simplesmente, movimentar o pescoço em sinal reprovativo. Quando se dirige a mim, tal como Carlitos, pede-me dinheiro. Mais uma vez, prefiro levá-lo ao balcão para ele escolher o que quiser. Perante várias qualidades de bolos, sandes, pasteis, opta por um panado no pão, talvez para matar a fome.

Agradece-me e prepara-se para sair , quando lhe peço para ficar e sentar-se comigo à mesa.

Os restantes clientes olham na nossa direcção, não sei se desconfiados, se incomodados. "Por acaso, tem algum rádio avariado em casa?" - pergunta-me. Fico curiosa em saber para quê. "É que o meu não funciona e eu gosto muito de ouvir música. Se tiver algum eu ainda sou capaz de o arranjar".

Quero saber um pouco mais acerca dele. Quantos irmãos tem, de que se ocupam os pais. "Somos nove irmãos e os meus pais não têm emprego. É por isso que ando a pedir, para a minha mãe comprar massa, arroz e leite para o bebé". - confessa

Então e não estudas? - volto a interrogá-lo. "Nós não podemos ir à escola. Não temos dinheiro e nem sempre vivemos no mesmo sítio". O rapaz diz que tem pressa. Que precisa de juntar dinheiro até ao fim do dia. Levanta-se, volta a agradecer, e desaparece pela porta da pastelaria, já de mão estendida.

Crianças como Carlitos e João encontram-se todos os dias na rua. Não estudam, não brincam, pouco sorriem. São meninos obrigados a crescer a todo o custo, num mundo onde o lema é a sobrevivência, quando não há pão, nem leite para fazer crescer.

Nestas situações, o poder de intervenção das entidades ligadas ao apoio à família e à criança, bem como os sistemas de justiça vigentes, é quase nulo. Os pais, economicamente degradados, não recorrem à assistência social para beneficiarem dos subsidíos, em grande parte por falta de informação ou porque, até dada altura, procuraram ajuda e não foram correspondidos.

Tal inércia já não acontece com os casos de trabalho infantil, que têm vindo a aumentar desmedidamente. A legislação por esta crueldade é rigorosa, não admitindo falhas por parte das famílias e, sobretudo, das entidades empregadoras. A proibição do trabalho de menores em idade escolar está consagrada como direito fundamental no artigo 69º da Constituição da República, visando consolidar o combate à descriminação e à opressão que se exerce sobre as crianças e os jovens, nomeadamente as formas de violência física e psíquica e a exploração económica e social, de que são muitas vezes alvo.

Só referentes ao distrito de Viseu, chegam ao tribunal do Trabalho inúmeros processos de crianças obrigadas a trabalhar pelos pais. Recebidas pelas empresas, laboram mais do que as oito horas legais e recebem , no final do mês, um honorário abaixo do ordenado mínimo nacional. A agravar, exercem trabalhos pesados desproporcionais à sua estrutura física, o que causa tantas vezes danos irremediáveis ao seu desenvolvimento. Para trás, fica a escola e as brincadeiras próprias da idade.

A contrariar todas as situações atrás descritas, que assentam em famílias com fracos recursos económicos, surge o caso de uma comunidade cigana, que reside em tendas, num terreno de S. João de Lourosa. As crianças ajudam os pais quando podem, na apanha de tomates e nas feiras, existindo, contudo, a preocupação de frequentarem a escola. “Gostaria muito que os meus filhos tirassem um curso e fossem alguém na vida, por isso pu-los a estudar na escola da freguesia” - explica um dos pais de alguns garotos, surpreendidos pela nossa equipa de reportagem.

Embora ainda não tenham a noção da profissão que querem exercer quando forem grandes, os pequenos garantem que gostam de ir à escola e que têm arranjado muitos amigos à custa disso. Perante mim, estão cinco caras larocas, de olhos brilhantes e sorrisos rasgados de uma ponta à outra.

Todos diferentes, todos iguais

“Aqui, os alunos estão todos integrados; brincam juntos no recreio e obedecem aos mesmos deveres e direitos” - garante Idálio Martelo, presidente do Conselho Directivo da Escola Primária da Ribeira, em Viseu, frequentada por crianças de várias raças, etnias e classes sociais. O facto do turno da manhã ser concorrido por crianças que desfrutam de alguma estabilidade económica e o da tarde por outras oriundas de meios desfavorecidos tem, no ponto de vista do professor, uma explicação: “Os miúdos de etnia cigana, na sua maioria, estão matriculados nas turmas da tarde a pedido dos pais, que de manhã querem levar os filhos para as feiras. É claro que, para que essas crianças estudem - que de outra forma não o fariam - a escola tem que se adaptar às situações”.

Mas a verdade é que nem só os meninos de etnia cigana frequentam o turno da tarde. As professoras que ensinam neste período do dia vêem-se confrontadas com turmas nas quais mais de metade das crianças apresentam dificuldades de aprendizagem - na maioria dos casos derivadas de um mau ambiente familiar -, ou mesmo deficiências que levam a uma maior lentidão na interiorização das matérias.

Numas das turmas da tarde, uma professora ensina 13 alunos com estas dificuldades. A sobrecarga de trabalho que lhe é conferida e o facto de conhecer algumas situações familiares nas quais as crianças são envolvidas, faz com que vá para casa cansada e, por vezes, “triste com o que conheço da vivência deles fora da escola” - comenta.

A professora Ludovina refere que o primeiro contacto com a turma, no início do ano lectivo, foi doloroso. “Os garotos não sossegavam na sala de aulas. Levantavam-se por tudo e por nada, iplicavam uns com os outros. Era uma desorganização total. Hoje, aprenderam que têm direitos e deveres, que cada um deve falar na sua vez. São amigos uns dos outros e, apesar de diferentes entre si, respeitam-se mutuamente”.

Foi após o intervalo das 15h30 que os fui encontrar na sala de aulas, ainda a beberem o leite achocolatado que lhes é distribuído todos os dias a título gratuito. Apercebo-me que são crianças de fácil conversa e proponho-lhes um pequeno debate sobre os Direitos das Crianças. Marta, de pele clara e olhos azuis, é a primeira a falar: - “Para mim, é a liberdade que os meninos têm de brincar, ir à escola, estar com os pais”. A catraia não foge muito da verdade. Pergunto-lhe se todas as crianças usufruem desses direitos: - “Os pobres não. Não têm brinquedos, às vezes não comem. Aqui na escola há meninos assim, mas eu trago jogos e empresto-lhes”

Também Evanira, uma angolana de pele castanha, olhos negros e profundos, quer expressar a sua opinião: - “As crianças são todas iguais, só que umas têm mais condições que outras. Por exemplo, em Angola, eu tinha brinquedos, tinha a família, mas havia muitos meninos que nem sabiam dos pais e passavam fome”.

Curioso é também o sentimento de Liliana, de etnia cigana: - “Há meninos que, na rua, me chamam de cigana e que não sabem que todos os meninos são iguais.

Liliana tem 11 anos e frequenta o 3º ano. Apresenta dificuldades em aprender e falta às aulas, sem justificação aparente. Contudo, diz que gosta da escola e que um dia quer ser professora. No recreio, brinca com os amigos e garante que não liga aos meninos mais intrometidos quandos estes berram ao longe: “Ó cigana!”.

Na Escola da Ribeira, as crianças são assim - todas diferentes, todas iguais. E é por isso que o Conselho Directivo criou um espaço de biblioteca, equipado com computadores, que veio ocupar a antiga sala dos professores. Desta forma, todos os meninos e meninas têm a mesma oportunidade de ler, conviver, jogar ou aprender informática.

Este foi o encontro possível com os homen e mulheres do amanhã, que ainda não escondem os sentimentos e sonham com optimismo. Que, entre eles, não estipulam diferenças. esta vez foram eles que deram a lição.

039-702233

Na Declaração dos Direitos da Criança, adoptada em 20 de Novembro de 1959, estabeleceu-se que “a criança, por motivo da sua falta de maturidade física e intelectual, tem necessidade de uma protecção e cuidados especiais”. Foi com base nestes direitos que o Projecto de Apoio à Família e Criança, com sede em Coimbra, criou uma linha telefónica, no sentido de aconselhar e apoiar situações relativas a crianças que vivem em ambientes degradados e que são vítimas de maus tratos físicos e psicológicos ou de negligências.

O 039-702233 - Criança Malatratada - está em funcionamente desde Setembro de 1993, no horário das 10h00 às 20h00. Todos os anos, as chamadas sofrem um aumento significativo, o que leva a equipa integrada por psicólogos e assistentes sociais a trabalhar duro no terreno, de forma a responder a todas as solicitações.

Este projecto abrange a Região Centro,incluindo o distrito de Viseu, onde, segundo a orientadora Ana Maria Carvalho, os concelhos com maior número de chamadas efectuadas são os de Viseu, Carregal do Sal, Mangualde e Nelas. “As chamadas -efectuadas por familiares directos, vizinhos, escola ou anónimos - tem como finalidade denunciar casos de maus tratos a crianças, nas faixas etárias dos 4 aos 6 anos e dos 10 aos 14. Quase sempre a acusação é contra o pai ou a mãe, ou mesmo contra ambos" - refere a psicóloga.

Após denúncia via telefone, o trabalho dos especialistas é efectuado no exterior, directamente com a família que passa a não conseguir reunir argumentos que justifiquem os maus tratos às crianças. Os técnicos mantêm contacto com os pais, tentando descobrir a origem do mau ambiente, que é, na maioria das vezes, provocado pelo alcoolismo.

Quando os casos denunciados se desenrolam em meios distanciados da sede, os técnicos sociais passam a não ter a disponibilidade necessária para intervir no terreno. Perante isso, e convictos da gravidade das situações, alertam de imediato o Centro Regional de Segurança Social local, Protecção de Menores e Institutos de Reinserção de Menores. Em cenários especiais, nos quais a criança não pode esperar mais, o Projecto de Apoio à Família não hesita em recorrer aos tribunais.

A solução da adopção

A reforma da legislação sobre adopção, face às crianças que se encontram privadas de meio familiar normal, introduz uma mais percoce e segura convivência do menor com o seu adoptante, diminindo o periodo de estadia das crianças em estabelecimentos públicos ou particulares de acolhimento. Isto depois de confirmadas as condições que a potencial nova família reúne para receber o menor.

Para este efeito, o Governo criou, recentemente, o projecto Adopção 2000, que assenta sobre a promoção da família e a preocupação face à situação de crianças em risco e privadas de meio familiar, conferindo uma nova dinâmica aos processos.

Se antes as famílias em via de adoptar esperavam uma eternidade por uma resposta positiva, hoje - acolhida a criança e encaminhada para a dopção -, o processo implica decisões complexas que necessitam de ser devidamente ponderadas, mas também exigem celeridade.

É por este motivo que a Adopção 2000 aponta para uma reestruturação dos serviços de adopção da Segurança Social - que deverá dispor de equipas interdisciplinares de menores e de adopção -, bem como para a criação e instalação de tribunais de família e menores. Perante um e outro caso, a BI esforçou-se na tentativa de conferir se em Viseu tal trabalho estaria a ser desenvolvido.. A ideia acabou, contudo, por não ser compreendida, nem pela Comissão de Protecção de Menores - que foi contactada vezes sem conta -, nem pelos Serviços Sociais - dos quais esperámos uma resposta até ao dia de fecho desta edição.

As suspeitas dos pediatras

Alguns dos casos que, mais tarde, podem levar à adopção passam pelo Hospital de S. Teotónio - Viseu (HV). A criança dá entrada na urgência pediátrica e, se os médicos suspeitarem que existem maus tratos ou qualquer tipo de negligencia, uma equipa integrada por pediatras, assistentes sociais e educadoras reúne-se para chegar a conclusões mais óbvias.

Quando surge a certeza de que o menor não partiu a cabeça ou magoou qualquer outra parte do corpo por mero acaso, os pediatras dão ordem de internamento e as assistentes sociais procuram conhecer o tipo de ambiente familiar em que a criança vive. Enquanto isso, a criança é acompanhada por uma educadora, que a vai ocupando com actividades lúdicas, facilitando a sua estadia no hospital.

"Se a criança corre risco, temos que a proteger, mesmo que os ferimentos não sejam graves. Basta desconfiarmos que existe algo por detrás da história que os pais nos contaram" - refere António Castanheira, director do departamento de Pediatria do HV.

As dúvidas surgem quando os médicos que consultam a criança observam que esta rejeita um dos progenitores ou se refugia num canto da sala. "As crianças não mentem e as suas reacções são as nossas certezas" - garante o pediatra.

Segundo Maria José, a assistente social que integra a equipa, "o nosso primeiro interesse é manter a criança na família: não hostilizamos os pais, muito pelo contrário - tentamos recuperá-los, sobretudo quando estes são alcoólicos ou não se entendem entre si" E acrescenta: "É claro que todo o trabalho é vigoroso e controlado".

No que respeita a situações de negligência, o procedimento é idêntico ao dos maus tratos. Contudo, consegue ser ainda mais preocupante: "A maioria das crianças que dão entrada nas urgências são muito pequenas e os pais não tem condições para organizar a sua vida e muito menos para cuidarem delas. Da nossa parte, fazemos tudo para salvaguardar a família, mas em casos de maus tratos não nos restam dúvidas: a única hipótese é denunciá-los ao tribunal" - alega António Castanheira.

Só em 1998, oito crianças deram entrada nas urgências do HV, vítimas de maus tratos e negligência. Quatro delas sofreram abusos sexuais, tendo o HV denunciado os casos

ao tribunal. Um número que não melhorou em relação a 1997, ao longo do qual quatro crianças foram abusadas sexualmente e cinco vítimas de maus tratos e negligência.

E se o número de casos desta atrocidade fala por si, fique-se sabendo que nem só os progenitores abusam e maltratam as crianças. António Castanheira alerta para variadas situações: "Há amas que maltratam as crianças por estas não serem sossegadas; infantários que não prestam atenção suficiente aos seus passos e que as obrigam a comer o próprio vomitado; e há lares que castigam os menores de formas violentas".

Esperar pelo Dia Internacional da Criança para reflectir sobre esta questões é perder tempo. Um tempo que é precioso para todos os meninos e meninas do mundo que, de alguma forma, não sentem cumpridos os seus direitos. Incluindo o de receber amor.

Nota: Publicado na revista "B.I. - Banca de Ideias", na ediçao de Junho de 1999

lunapensativa
Enviado por lunapensativa em 09/05/2005
Código do texto: T15933