Quem acreditou na nossa pregação?

Em um determinado ponto de sua caminhada apostólica, São Paulo faz esta pergunta crucial, quem sabe cansado de tanta injustiça e perseguições sofridas; decepcionado por causa da falta de perseverança de seus companheiros, e por ver a excepcional semente da Palavra de Deus cair em terras estéreis, incapazes de reproduzir a riqueza do dom e da graça. Às vezes, a sensação de desânimo assola os missionários, a ponto de, como o apóstolo, perquirirem a eficácia de sua missão.

Os trabalhos missionários, em todos os tempos, sempre sofreram a oposição dos poderosos, aqueles a quem a horizontalização da graça, a democratização do poder, a partilha dos bens e a liberdade de expressão incomoda. Historicamente, a evangelização acompanhada da conscientização sóciopolítica configurava uma ameaça ou a perda de posições há séculos entronizadas. Por causa disto, nós fomos, teólogos, pastores e agentes de pastoral, de certa forma incompetentes, muitas vezes intimidados pela ideologia do poder hierárquico, deixamos morrer as CEBs, a maior experiência de Igreja que o Espírito suscitou desde a Igreja dos Atos do Apóstolos. Criticavam seus membros por assumir uma posição política e socialmente crítica, como se o evangelho e a caminhada da Igreja primitiva não viesse eivada dessas atitudes libertárias e de não-conformismo. Fizeram calar a denúncia em nossas bocas e sustaram nossos passos de peregrinos. Hoje têm mais espaços os "movimentos eclesiais", de eficácia contestada.

O que era nossa esperança e expectativa, hoje, por falta e uma atitude mais efetiva de nossa parte, é lugar onde vicejam as Igrejas Evangélicas. Nós preparamos um terreno, que por certo não regamos direito e eles vieram e semearam em nossos sulcos... Talvez seja o sentimento de decepção de Paulo, que viajou, pregou e fundou Igrejas na Ásia Menor, região da Capadócia, hoje Turquia, que se tornou totalmente muçulmana.

A partir do encontro do Celam, em Puebla (1979), fomos convidados a optar pelos pobres e a ver neles o rosto desfigurado de Jesus. Depois, nos disseram que isto não era cristianismo, mas dialética marxista, sociologia, evasão de espiritualidade, como se no evangelho de João não houve luz e trevas, ricos e pobres, pecado e graça, vida e morte. A partir da do fim da década de oitenta, houve muita pressão contra as opções populares da Igreja latino-americano, tudo revelando a preferência por uma Igreja mais formal e menos engajada, mais litúrgica e menos dinâmica, mais Magistra e menos Mater. Silenciaram os profetas, mas não a profecia.

Maria fez opção pelos pobres. O canto do Magnificat, posto por Lucas nos lábios de Maria, a mãe do Senhor, exprime com profundidade o que era o sonho libertário dos cristãos latino-americanos, que hoje reconhecem que aquela libertação expectada está longe de se converter numa práxis. A Igreja latino-americana, num determinado momento afirmou-se em "opção pelos pobres". Os que assim pensavam foram silenciados, as opções esquecidas e o número dos pobres cresce cada vez mais, enquanto nós continuamos dentro de uma espiritualidade sem prática. Afinal, se eu tenho fome, é um problema social; se o meu irmão tem fome, é um problema espiritual.

Nessa conjuntura, muitos profetas, pastores e evangelizadores foram amordaçados, condenados a "silêncios obsequiosos", desmobilizados, como se falar em libertação fosse um crime, e defender o direito dos excluídos uma blasfêmia ou heresia. Um assunto como este, debatido aqui, não encontra guarida em muitos segmentos da mídia cristã, pois vai desgostar alguém, o fulano vai ficar chateado, o órgão tal vai nos puxar as orelhas, etc. Falam em democracia e liberdade de expressão, mas não respeitam esses valores. Só servem no discurso, para invectivar os outros, mas quando se torna denúncia, os autores são calados e boicotados. O que torna mais dramática a situação é que nossa Igreja deixou de lado aquelas opções, tornando-se mais litúrgica, sacramentalista e burocrática, deixando os miseráveis entregues à própria sorte. Das dificuldades emergiu a pobreza e a exploração dos pobres.

Como afirma Gustavo Gutiérrez: “...esta é uma situação que parece nunca acabar, antes se encontra na metade do túnel. Os interesses desafiados pelos pobres - no interior de cada país e no plano universal - são bastante poderosos. O custo humano do esforço de libertação é tão grande - e indesejável - que não se consegue vislumbrar uma saída”.

Por causa disto, em 1992, foi tentada uma "nova evangelização", da qual hoje não se fala mais. Ora, se tentamos uma nova é porque a velha estava com problemas. Mesmo assim, aquele esforço parece que não decolou, uma vez que em muitas comunidades o “projeto missionário” nunca chegou a decolar. E ficou tudo no mesmo. No mesmo ou pior. Pelos idos de 1994, um teólogo europeu, totalmente cego às realidades da América Latina, publicou na revista vaticana “Trinta Giorni” (Trinta Dias!) uma matéria, regozijando-se com a derrubada da Teologia da Libertação, séria ameaça – segundo ele – porta aberta para a introdução do marxismo na Igreja da América Latina. Na mesma leva, elaborei um artigo-resposta (eles tiveram a coragem de publicar), informando que a tal derrubada era verdadeira, mas capaz de desestimular muita gente e arrefecer muito entusiasmo apostólico, e que depois desse fato, a violência, a questão mal-resolvida das terras, do desemprego, das violações dos direitos humanos, da distribuição da renda e da exploração continuavam pior, agora sem a denúncia dos profetas que foram boicotados e obrigados – muitos deles, não todos – a calar.

A grande virtude das teologias libertárias é criar no povo, aquilo que Jorge Boran chamou de “senso crítico para ver-julga-agir”. Até esse senso crítico do povo foi bloqueado.

E assim nos tornamos vítimas da ideologia oficial. Na verdade, perdeu-se muito espaço para uma ideologia oficial, em alguns segmentos da mídia, nas editoras, universidades religiosas, institutos e entidades, dando lugar a uma pastoral mais domesticada, mística, politicamente correta, sem denúncias e/ou críticas. Estes, livres de patrulhamento, continuaram demitindo (para enxugar custos), aumentando jornadas de trabalho e pagando o abjeto "salário mínimo". E tudo parece haver voltado ao clima da Cristandade, da década de 50, quando bom cristão era o que rezava bastante, ia à Missa, participava de procissões e colaborava com as obras da sua paróquia.

Em 2006, chamamos os deficientes, segregados, discriminados e banidos a virem “para o meio”, mas esquecemos de empregar a mão-de-obra dos deficientes, ignoramos sua vocação, não construímos rampas para as cadeiras de roda nas igrejas, e ignoramos a eficácia na Libras (Linguagem Brasileira de Sinais) em nossas Missas, atividades catequéticas e programas religiosos de televisão. Na verdade, nós temos uma visão distorcida do que é ser “deficiente”.

·Deficiente é aquele que não consegue modificar sua

vida, tornando-se refém das imposições dos outros,

sem a consciência de que é dono do seu destino e

autor da sua história;

·Louco é quem não procura ser feliz com o que tem;

.Cego é aquele que não vê seu próximo morrer de fome,

de frio, de miséria. É quem só tem olhos para seus

míseros problemas e pequenas dores;

·Surdo é todo aquele que não tem tempo de escutar um

desabafo do amigo ou o apelo de um irmão, pois está

sempre apressado, pensando em ganhar mais dinheiro;

·Mudo é aquele que se acovarda e não consegue falar o

que sente... é o medroso que se esconde por trás da

hipocrisia;

·Paralítico é quem não consegue andar na direção

daqueles que precisam de sua ajuda;

·Diabético é quem não consegue ser doce com os outros;

·Anão é quem não sabe deixar o amor crescer;

Por fim, a pior das deficiências é ser miserável; por miseráveis são todos os que se acovardam, incapazes de revelar um senso crítico capaz de denunciar o mal. São miseráveis os que não conseguem se encontrar com Deus.

Olhando tudo isto, e observando o alarmante êxodo para as outras Igrejas, a ponto de já sermos considerados “o país mais evangélico do mundo”, revendo tudo o que fizemos, dissemos e escrevemos, eu fico me perguntando, como São Paulo:

“Quem acreditou na nossa pregação?” (Rm 10,16).

Antônio Mesquita Galvão

Doutor em Teologia Moral

Antônio Mesquita Galvão
Enviado por Antônio Mesquita Galvão em 19/05/2006
Código do texto: T158895