Julien Sorel e Aristóteles
Julien Sorel deliberou matar Madame de Renal?
Em O Vermelho e o Negro, Stendhal não deixa clara a motivação que levou Julien a atirar em Madame de Rênal. Julien acalentava um firme propósito homicida? Ou sua ação resultou de um repentino e confuso impulso passional? Certamente essa dúvida deve ter ocorrido a diversos leitores de O Vermelho e o Negro (cf. Umberto Eco. “A literatura contra o efêmero”).
De acordo com Aristóteles, nem todas as ações voluntárias são ações deliberadas. Ações voluntárias requerem apenas que o princípio motor da ação resida no agente e que ele tenha conhecimento das circunstancia particulares. Deliberar implica calcular a adoção de certos meios em vista de um fim. A ação deliberada envolve uma consideração das circunstâncias e reflexão sobre as possibilidades de ação (deixo para outra oportunidade confrontar essa tese com a posição hobbesiana de acordo com a qual toda ação voluntária é deliberada).
É claro que, a se admitir a hipótese de um crime passional, será necessário esclarecer se a ida de Julien de Paris para Verrières também foi um movimento passional, ou se esse movimento foi deliberado, não sabendo Julien, porém, o que faria exatamente ao ver Madame De Rênal.
Também se poderia cogitar se Julien não teria partido de Paris por impulso e no caminho ou na chegada a Verrières teria ponderado o que fazer e só então se decidido pelo assassinato.
Acredito que a hipótese de um “firme propósito homicida” deva ser rejeitada. A bem da verdade, a expressão “firme propósito” não é muito adequada para a discussão sobre existência ou não de deliberação. Penso que se pode entender a deliberação sem um firme propósito. A qualificação “firme” ao propósito não ajuda muito. Trata-se de rejeitar a natureza deliberada da ação. Apenas isso. Pois bem, Stendhal afirma que Julien se achava mergulhado num estado de “semiloucura” quando partiu de Verrières. Se entendermos que a deliberação requer um estado em que o uso da razão é possível - requerimento mais do justo -, então seremos conduzidos a acolher a hipótese de crime passional (um crime passional, bem entendido, uma ação voluntária de Julien). É bom lembrar que ele não se arrepende imediatamente após o disparo. Somente quando recebe a notícia de que Madame De Rênal não morreu é que, em crise, começa a se arrepender.
Alguém poderia replicar e alegar em defesa da hipótese da deliberação, as próprias palavras de Julien: “meu crime é atroz e foi premeditado. Mereço, pois, a morte, senhores jurados”. Mas ele foi premeditado em estado de semiloucura? É possível? Parece possível. Haveria uma semiloucura prática (moral) e sanidade teórica. Ele sabia o que estava fazendo, mas não sabia exatamente avaliar a correção moral do que estava fazendo. Talvez, talvez.