O tempo oportuno - SERMO XXXV
O TEMPO OPORTUNO
El tiempo es favorable a quien lo aprovecha
y dañoso a quien lo desperdicia
Jorge Luis Borges († 1986)
in “História de la eternidad”.
Incapaz de dominar o tempo, o ser humano passa a temê-lo como uma ameaça. Esse tempo, incerto na vida humana, que tanto atraiu as especulações intelectuais em todos os tempos, permitiu conclusões místicas, filosóficas e práticas no sentido de que o homem é senhor de uma parte do seu tempo, de uma fração da sua história (quem sabe uma parte menos significativa), mas não tem condições de estabelecer um domínio do tempo de sua vida como um todo. Eu posso prever quando vou terminar esta breve reflexão. Posso estabelecer a hora do repouso ou do cafezinho, mas não posso precisar meu futuro, se vou ser feliz ou infeliz, como vou viver, quando vou morrer. Posso eu? Podem vocês?
Na concreção desse tempo, Hegel († 1831) afirma que “desconhecer os erros do passado equivale à potencialização de sua repetição no futuro”. Tanto Hegel como Borges levantam premissas relativas ao bom ou mau emprego do tempo humano.
Filosoficamente o presente é uma singularidade. Nós estamos aqui, agora, e este momento logo em seguida será passado. O presente é uma instância transitória por onde passa o vetor do futuro. Por falar em vetores, vemos que o presente é uma partícula de tempo, bem inferior ao passado, que não muda mais e caminha séculos como história, no chamado “tempo social”. Tragicamente, para alguns, o tempo não volta; só anda para frente. Hoje, as diversas revoluções, entre elas a da comunicação, tornaram o tempo cada vez menor, em face da velocidade com que as coisas acontecem. O presente é algo palpável, mas em seu limiar o futuro está sempre começando.
Nesse aspecto, só a capacidade lingüística (contar histórias e recuperar eventos passados) é capaz de projetar o homem ao futuro. A evolução dentro do vetor tempo é assustadora. Antes, o fenômeno mais rápido era uma caravana de camelos, que andava a 40 quilômetros por hora. Hoje, uma dessas naves espaciais anda a milhares de milhas por hora, tornando sua visualização praticamente impossível. Em termos de aceleração do tempo e das distâncias, nossas comunicações passaram dos sinais de fumaça à Internet, implantada no Brasil no fim da década de 90.
Como canta “la negra” Mercedes Sosa, a artista argentina conhecida de todos, nascida em Tucuman em 1935: “El tiempo pasa, nos vamos poniendo viejos...”. De fato, a passagem do tempo implica para nós no envelhecimento. Se de um lado ocorre a aproximação de muitos ideais e expectativas, de outro seu decurso nos remete ao futuro, onde nos espera a idade avançada, as seqüelas naturais desse período até a morte. O tempo passa, relata a letra da melodia, e nós vamos ficando velhos. Que mal há nisto? O quanto custa envelhecer?
Referindo-se ao que chama de “magia do tempo”, o poeta Mário Quintana († 1994) diz que a vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
E alerta: quando se vê, já são seis horas! Quando se vê, já é sexta-feira. Quando se vê, já terminou o ano. Quando se vê, perdemos o amor da nossa vida. Quando se vê, já se passaram 50 anos! Agora é tarde demais para ser reprovado.
Parodiando o “Se eu pudesse” do argentino Borges, Quintana desabafa: “Se me fosse dado, um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio. Seguiria sempre em frente e iria jogando, pelo caminho, a casca dourada e inútil das horas
Desta forma, eu digo: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo: a única falta que terá, será desse tempo que infelizmente não voltará mais”. Para concluir suas lamentações sobre o tempo perdido, o poeta gaúcho desabafa: “Há noites que eu não posso dormir de remorso por tudo o que eu deixei de cometer”.
Ainda com referência ao tempo, me permito reproduzir aqui um texto que publiquei recentemente nos jornais e portais onde tenho coluna, que trata da passagem dos dias da vida humana. Parodiando os filósofos estóicos, dei ao artigo o título “Tudo Passa”.
Os “bregas” consagraram uma música, em que o baixinho Nelson Ned abria o peito, cantando “mas tudo passa, tudo passará, e nada fica, nada ficará...”. Depois veio Lulu Santos, mais eclético e com um toque refinado de filosofia estóica que encantou a minha geração com o “nada do que for será, de novo do jeito que já foi um dia, tudo passa, tudo sempre passará...”.
Toda essa filosofia da mudança se baseia na frase grega Panta Réi, onde panta é tudo, e réi, corre, passa, se esvai. Os filósofos estóicos, a partir de Heráclito de Éfeso (séc. V a.C.), foram os primeiros a afirmar que tudo passa. A expressão Panta Rei surge da noção de que no contexto da natureza e da vida humana tudo é transitório, passageiro. Para ilustrar essa afirmação, Heráclito usava a metáfora do rio: Não é possível banhar-se no mesmo rio duas vezes. Afinal, as águas que correm no rio nunca são as mesmas, pois tudo passa; nada permanece (oudén méne). No dia seguinte, embora o mesmo local geográfico, pela passagem das águas, o rio já é outro. Trata-se de um “vir-a-ser”.
Quanto às mudanças e transformações físicas, o vir-a-ser, que a todo instante vemos ocorrer no mundo, a filosofia explicava como sendo uma mistura participativa de ser e não-ser. Ao vir-a-ser é necessário tanto o ser quanto o não-ser. Se eles agem conjuntamente, então resulta um vir-a-ser, onde este se torna uma ilusão sensível. Isto quer dizer que todas as percepções de nossos sentidos apenas criam ilusões, nas quais temos a tendência de pensar que o não-ser é, e que o ser é um vir-a-ser.
Pois o vir-a-ser tem o nome de devir, que é o conceito filosófico que se traduz de forma mais literal na eterna mudança do ontem ser diferente do hoje, nas palavras de Heráclito “O mesmo homem não pode atravessar o mesmo rio, porque o homem de ontem não é o mesmo homem, nem o rio de ontem é o mesmo do hoje”.
Fazer filosofia é aprender a pensar. O filósofo, mais do que alguém que ama (philo) a sabedoria (sophia) é alguém que pensa e transmite idéias... Nossas vidas estão impregnadas de Panta Rei. Nossos corpos mudam, nossas idéias mudam, nossos empregos mudam… enfim, nunca atravessamos o mesmo rio da existência duas vezes: “a vida vem em ondas, como o mar, num indo-e-vindo infinito...”.
Por vezes nos sentimos tentados a “congelar” o rio do tempo, para que suas águas sejam sempre as mesmas. Entretanto, um belo dia o rio, que tem vontade própria, descongela e a força de suas águas traz toda a força das mudanças reprimidas… e aí surtamos! Ou não? Cabe a cada um lidar com o seu rio. “tudo o que se vê não é, igual ao que a gente viu a um segundo, tudo muda o tempo todo, no mundo...”
Na natureza, rios, mares e florestas... tudo passa. A devastação causada pelo homem, o plantio inadequado, o desmatamento, os crimes contra a natureza, tudo acelera a “passagem” das coisas da vida. Além disto, vale lembrar que Deus perdoa, a natureza não! Tudo passa? Eu acho que sim! Aliás, segundo São Paulo, só tem uma coisa que não passa? O amor.
Embutidos no contexto do tempo há vários aspectos, como o lógico, o cronológico e também o teológico que podem enriquecer nosso conhecimento desses valores. O rabino Moshe Maimônides († 1204) afirmou que “o tempo é de Deus e ele o empresta aos homens”.
Referindo ao tempo, a Bíblia nos relata a existência de um tempo para cada coisa e para cada necessidade. As palavras do Qoélet (pseudônimo do rei Salomão) nos fornecem pistas riquíssimas para essa reflexão.
Debaixo do céu há momento para tudo, e tempo certo para cada
coisa: Tempo para nascer e tempo para morrer. Tempo para
plantar e tempo para arrancar a planta. Tempo para matar e
tempo para curar. Tempo para destruir e tempo para construir.
Tempo para chorar e tempo para rir. Tempo para gemer e tempo
para bailar. Tempo para atirar pedras e tempo para recolher
pedras. Tempo para abraçar e tempo para se separar. Tempo
para procurar e tempo para perder. Tempo para guardar e tempo
para jogar fora. Tempo para rasgar e tempo para costurar. Tempo
para calar e tempo para falar. Tempo para amar e tempo para
odiar. Tempo para a guerra e tempo para a paz (Ecl 3,1-8).
A partir deste tempo podemos inferir o sentido da limitação da vida humana, restrita e momentos aos quais o homem não tem conhecimento, cabendo-lhe tão-somente aceitá-lo como contingência de sua própria condição de imperfeito e limitado. No mistério do tempo futuro revela-se a providência de Deus.
Na antiga profecia vemos a promessa de aliança eterna de Deus com a humanidade:
Eu te desposarei para todo o sempre (Os 2,21).
O sitz im lebem (foco onde se maturou o texto) dos profetas messiânicos se radica na exposição de um tempo novo, de justiça, paz e harmonia, com a tipificação de uma sociedade ideal (cf. Is 11–12). O mesmo clima de euforia que brota do fim do cativeiro babilônico e da restauração da sociedade de Israel é o clima que os profetas desejaram expor aos tempos de plenitude, caracterizados pela chegada do Messias. No mesmo foco desse tempo novo, João, o Batista, traça um comparativo escatológico com a poda das árvores: “O machado já está encostado à raiz da árvore, e toda a árvore que não produzir bons frutos será cortada...” (cf. Lc 3,9). Ao anunciar a eclosão de seu tempo, Jesus anuncia que “o tempo está cumprido...” (cf. Mc 1,15), ensinando que o antigo vai desaparecer para dar lugar ao permanente.
Os gregos usavam duas palavras para se referirem ao tempo: krónos e kairós. Inclusive tinham uma divindade chamada krónos, o deus do tempo. É a partir dessa dualidade que vamos estabelecer a base para a nossa reflexão. Enquanto krónos aponta para um tempo medido (cronologia, cronômetro), o verbete kairós nos indica um tempo especial, não medido, oportuno e próprio de Deus. É aquela dimensão teológica que já aludimos. Ao falar em iméra tou Kyriou (o dia do Senhor) o hagiógrafo está se reportando a um kairós. Nas Sagradas Escrituras encontramos inúmeras passagens, quer no Antigo quer no Novo Testamento, que fazem alusão ao “tempo de Deus”:
O dia do Senhor está próximo (Ez 30,3).
No tempo oportuno (kairós) eu te ouvi; no dia da salvação
(iméra sotéria) eu te socorri (Is 49,8).
A abrangência da presença de Deus no tempo do universo e dos seres humanos está retratada na Bíblia. Deus aparece “no princípio...” (bereshit, como relatam os judeus em Gn 1,1) e “até o fim dos tempos” (cf. Mt 28,20). Deste modo, podemos ver que kairós é o tempo oportuno que Deus prepara para suas obras. Trata-se de um tempo cuja cronologia só ele sabe. Quando se diz: num tempo certo o Senhor vai dar sua solução. Aí é kairós, pois reflete um tempo cuja data não sabemos. Ao contrário, quando dizemos, em outubro de 2002 Deus me curou, aí está um krónos (cronologia), pois se refere a uma data precisa.
Na grande revelação de Deus lemos que hô kairós gar engoú esti ou seja, “o tempo está próximo!”. A partir daí é recomendado à Igreja que estas palavras não devem ser guardadas em segredo (cf. Ap 22,10). A vida humana está toda ela orientada em função do kairós (um tempo oportuno de benfazejas realizações) do Senhor. Vivemos em um tempo de espera... de libertação e transformação. Kairós é o tempo, é o dia do Senhor, de onde, a cada momento tiramos sinais e lições de vida. Para as coisas de Deus é preciso fé, paciência e sensibilidade.
Além da paciência, nesse tempo de espera, o cristão precisa também adicionar à sua vida a virtude da sobriedade:
Reúnam-se e recolham-se, nação sem-vergonha, antes que
vocês se espalhem como a palha que desaparece num dia,
antes que caia sobre vocês o dia da ira de Javé. Procurem a
Javé... Quem sabe assim vocês acharão um refúgio no dia da ira
de Javé (Sf 2,1ss).
São Paulo (cf. Gl 4,4) nos fala em plenitude dos tempos (pleroma tou kronou). Aqui há um krónos, como tempo medido por uma data. Jesus nasceu, teoricamente, em um 25 de dezembro do ano zero (ou menos cinco). Há um calendário, sujeito a adaptações, que afirma a existência dessa data real. Na carta aos Efésios (1,10ss) o apóstolo refere-se a um kairós, escrevendo que quando pelo projeto divino há uma convergência, em Cristo, de todas as coisas do céu e da terra, em um tempo futuro, favorável, benfazejo, mas incerto. Nesse kairós (da escatologia) lemos que kai passa sarx to sotérias tou Theou ophetai, ou seja. “toda a carne verá a salvação de Deus/” (Lc 3,6).
Na oração do “Pai-nosso”, quando pedimos “venha o teu Reino...” há um krónos, pois estamos pedindo que essa vinda ocorra hoje, dia tal às tantas horas. Mas, na verdade, a solução do nosso problema pode acontecer num kairós, em um tempo futuro. É por isto que Paulo afirma que “eu plantei e Apolo regou (krónos), mas é Deus quem vai dar (kairós) o crescimento” (cf. 1Cor 3,6).
O tempo de resgate e libertação, incluso na missão messiânica de Jesus ocorre através do Filho quando o kairós do Senhor favorece o homem através da dimensão cristológica (encarnação) e pneumatológica (efusão do Espírito Santo em Pentecostes). Do Pai, que existiu desde todo o sempre, e de Jesus, gerado, não-criado, que é antes que Abraão fosse (cf. Jo 8,58), a humanidade recebe o Espírito Santo, aquele mesmo que antes do tempo da criação pairava sobre o caos. Deus vem ao encontro do ser humano para que este seja salvo, resgatando-o do império do pecado e da morte, para conduzi-lo ao Reino dos céus que, desde o início lhe está reservado.
Pela encarnação Jesus vem nos mostrar que o tempo de Deus se chama hoje. Significativas afirmações começam pela palavra hoje:
• Hoje na cidade de Davi nasceu para vocês um salvador...
(Lc 2,11);
• Hoje se cumpriram essas promessas da Escritura (Lc 4,21);
• Hoje estarás comigo no paraíso! (Lc 23,43);
• Hoje a salvação entrou nesta casa! (Lc 19,9);
• Hoje eu te gerei... (Sl 2,7; Hb 5,5).
Conscientes de que hoje é o tempo de Deus, é salutar refletirmos sobre a oportuna advertência que nos vem da sabedoria do salmista:
Hoje, se ouvires a voz de Deus, não endureças teu coração
(Sl 95,7).
Aprofundando nosso conhecimento bíblico a respeito do kairós de Deus, podemos ver que o tempo de Jesus torna-se tempo do Reino e, ao mesmo tempo, a parte mais importante da história da humanidade, pois nela se concretiza o projeto da salvação. O tempo-kairós de Jesus, que ele chama de meu tempo (cf. Jo 7,6), meu dia (cf. 8,58) ou minha hora (cf. 2,4) é aquele momento que misteriosamente não teve início (“Abraão viu meu dia e se regozijou...”), pois Jesus não é criado, e assim sem início nem fim.
Os biblistas têm estabelecido, ordenado de forma acadêmica, os lógion (discursos) de Jesus, constantes no Primeiro Evangelho. São cinco tempos do Reino, para facilitar o estudo e narrar o tempo de sua atividade messiânica. Vamos a eles?
• O tempo da justiça do Reino (Mt 5,1–7,29);
• O tempo (missionário) da proclamação (10,1-42);
• O tempo do mistério do Reino (13,1-58);
• O tempo de comunhão (18,1-35);
• O tempo futuro (a escatologia) (24,1–25,46).
Á medida que vamos refletindo sobre a Palavra de Deus a nós revelada, as idéias de Reino e de kairós vão se interpenetrando até formarem um só corpo, capaz de nos transportar ao vestíbulo do mistério que costumamos chamar de projeto da salvação, destinado pelo Pai, em Cristo, a nos resgatar naquilo que nos habituamos a chamar de tempo oportuno.
Em meu livro “O Reino dos céus” (Ed. Ave-Maria, 1994) eu falo nessa relação do tempo oportuno com a irrupção do mistério do Reino:
As parábolas do Reino indicam um crescimento progressivo (a
semente, o grão de mostarda, a fermento, a pesca, o trigo e o
joio) que faz entrever um processo de etapas gradativas, com
uma certa demora entre essa inauguração histórica e sua
realização perfeita na parusia. Desde os anúncios de João
Batista, a era do Reino é dada como iniciada (cf. Mt 11,12s. Mc
1,15); é o tempo das núpcias e da messe. Esse pleroma (tempo
completo) evidencia que o Reino já está no meio dos homens em
mistério e irá se plenificar (cf. GS 39) no dia da vinda definitiva
do Senhor.
Por parusia, referida no parágrafo anterior, compreende-se, na Antiguidade o tempo de festas quando o imperador visitava uma cidade. Parusia quer dizer visita. Era um tempo de alegria, reconciliação e perdão de dívidas. No início da era cristã a Igreja apropriou este termo para exprimir a alegria da segunda vinda de Cristo.
Só Deus é capaz de revelar o mistério dos tempos vindouros (cf. Dn 2,47). Todo indivíduo apressado e imediatista sempre recebe um alerta: Calma, é preciso esperar! Nada que se faz com pressa tem um sucesso duradouro ou logra obter eficácia. As grandes caminhadas começam pelo primeiro passo; as derrubadas de matos começam pelo afiar do machado.
Recordo que em meu livro “Kairós: Uma introdução à teologia do tempo do Senhor” (Ed. Vozes, 1998, 2ª. edição) em levanto a questão de que, no mistério do tempo de Deus, nunca é demais repetir, vai se revelando a sabedoria e a providência do nosso Deus. O que é real desse mistério é que o tempo final já está marcado (cf. Dn 11,35). No Antigo Testamento aparece, no livro de Daniel, pela primeira vez, a palavra mistério, como contexto escatológico daquilo que vai ocorrer no futuro, numa data incerta, porém tempo oportuno, do qual só Deus tem ciência, e cuja revelação só a ele cabe (cf. Dn 28s,47).
O verbete mistério aponta para algo inacessível à inteligência humana. Podemos penetrar, pela razão, até um certo estágio do mistério. Depois não se pode avançar mais. Quando se fecha o acesso pela razão, só podemos usar a ferramenta da fé, em atitude de adoração.
Nos escritos de Santo Agostinho († 430) lemos uma graduação moral do tempo, enquanto o bom é feito de virtudes, enquanto o mau, de vícios. Nas palavras de “Doutora de Avila” vamos encontrar um “tudo passa” a exemplo da filosofia estóica:
Nada te turbe, nada te espante; todo se pasa! Diós no se
muda! La paciência todo lo alcanza. Quien a Diós tiene nada le
falta. Solo Diós basta! (Teresa de Jesus † 1582).
Do mesmo modo a esperança, uma das grandes ferramentas do nosso processo de salvação, vê o futuro e a irrupção do Reino no meio de nós, através de todas as formas de comunhão. A esperança cristã sabe o que espera. Só não sabe a hora em que as coisas vão acontecer. No compêndio do Vaticano II encontramos a realização daquilo que se espera:
O Reino já está presente em mistério aqui na terra; chegando
o Senhor ele se consumará (GS 39).
Na mesma linha de esperança da concreção do kairós messiânico, há um trecho marcante de Leonardo Boff que vale a pena conferir:
As esperanças históricas e o futuro construtível se entendem
como preparação e realização antecipatória do futuro absoluto.
O Reino sonhado no sonho e na vigília, não surge como um
toque de mágica, nem se constrói sobre as ruínas dos reinos
humanos. Ele culmina com a graça de Deus (In “A graça
libertadora no mundo”, Ed. Vozes, 1985. 3ª edição).
Nessa perspectiva, o tempo escatológico do novo céu e da nova terra, no mistério de Deus, é um tempo cujas realizações futuras começam a se delinear a partir do presente. O kairós futuro lança suas bases no krónos do presente. Sobre essa transição, é interessante recorrer à sabedoria do salmista:
Como a árvore plantada à beira da água, o justo dará frutos
a seu tempo (Sl 1,3a).
O que para o homem ainda vai ser (o futuro), para Deus já é (presente sem futuro). No tempo que se chama presente, a instauração do reino é manifestada pelo desejo de uma vivência permanente (em um kairós) do amor, da paz e da reconciliação. É um ponderável equívoco tentar viver esse kairós de advento embalado unicamente na mística, assim como é igualmente descabido esperá-lo confiando unicamente nas obras (tá érga) da antiga lei, como os judeus.
Devido ao seu projeto messiânico, o tempo de Jesus nos surge através de dois movimentos. O primeiro chama-se kénos, que retrata seu aniquilamento pela morte de cruz. Depois da morte ocorre a ressurreição e ascensão, que é contemplada pelo movimento da dóxa, a glorificação.
Curiosamente, mais do que tempo oportuno, os teólogos alemães traduzem kairós por uma palavra cujo nome me falta agora, mas tem o sentido de “tempo adequado”, que é, segundo eles, quando Deus resolve “armar sua tenda no meio dos homens”.
Na medida em que vamos avançando, seja na progressão de nossa vida cristã, ou em nosso presente ciclo de estudos, vemos crescer em nós a expectativa dos tempos que se completam. A absorção da mensagem do tempo de Deus nos torna missionários, quando Deus se torna presente, hoje e sempre, na obra de sua criação, através do anúncio e testemunho de seus profetas que anunciam com a boca e com as atitudes, o evangelho da salvação.
Não se pode deixar de crer sempre que o tempo é um presente, um dom, uma dádiva de Deus, para que nele alguém realize algo de proveitoso para si e para os irmãos. Vamos fazer um exercício de ficção? Imaginem que alguém tenha uma conta-corrente, e que a cada manhã depositem nela R$ 86.400,00. No entanto, há um obstáculo: não é possível transferir o saldo para o dia seguinte. Todas as noites o saldo é zerado, mesmo que você não tenha conseguido gastá-lo durante o dia. O que você faria? Gastaria cada centavo, é claro! Não é?
O fato é que todos nós somos clientes desse banco que se chama tempo. Todas as manhãs são creditados 86.400 segundos para que desfrutemos deles. Todas as noites o saldo é debitado como perda. É tudo o que você falhou em investir em bons propósitos. Não é permitido acumular esse saldo para o dia seguinte. Cada um tem só 86.400 segundos para viver a cada dia. Todas as manhãs sua conta é reiniciada e todas as noites as sobras do dia se evaporam. Não há volta. Se você falhar em usar o depósito do dia, a perda é sua. É preciso que cada um viva no presente o seu depósito diário.
Por causa disto é preciso que cada um invista seu tempo naquilo que for melhor: saúde, família, felicidade, lazer, alteridade, etc. O relógio é inexorável; ele está sempre correndo! Faça o máximo a cada dia! Valorize o tempo, como um autêntico presente que Deus lhe dá!
Para você perceber o valor de um ano, pergunte a um estudante que foi reprovado; para avaliar o quanto vale um mês pergunte a uma mãe que teve um bebê prematuro; para saber a importância de uma semana fale com doente terminal; para o peso de um dia converse com o editor de um jornal; para conhecer as angustias de uma hora pergunte aos apaixonados que esperam por um encontro; para perceber o valor de um minuto pergunte a quem perdeu o ônibus; questione a quem conseguiu evitar um acidente qual o valor de um segundo; por fim, pergunte a um atleta que ganhou “medalha de prata” o valor de um milésimo de segundo.
É vital que se valorize cada momento que temos, lembrando que o tempo não espera por ninguém. Quando você começou a ouvir as primeiras palavras dessa alocução era presente. O que foi dito minutos atrás já é passado. Ontem é história; amanhã é um mistério, pois poderá acontecer ou não. O hoje é uma dádiva de Deus, por isso ele é chamado de presente.
Hoje em dias as pessoas se queixam de não ter tempo, não é mesmo? Num dia desses o pai chegou em casa, jantou e foi ler o jornal na frente da televisão. Seu filho, um garoto de seis cinco anos perguntou: “Pai, quando você ganha por hora, no seu emprego?”. O pai não deu resposta, pois estava absorto na leitura e na tevê. Como o menino insistisse, ele respondeu aleatoriamente: “eu devo ganhar uns cinquenta reais por hora, por quê?”. O garoto não respondeu e saiu da sala. No outro dia, estava o pai sentado na mesma poltrona e o garoto falou: “Pai, eu juntei as moedas que tinha no cofre, vendi minha bola de basquete a um colega e juntei cinquenta reais. Se eu lhe der esse dinheiro, você fica uma hora brincando comigo?”. O tempo é uma riqueza tão significativa, que em muitos casos de torna moeda de troca.
Santo Tomás de Aquino († 1274) ensina (in “Exposição sobre o Credo”) que para fugir do temor da espera do futuro são necessários quatro remédios:
• As boas obras (caridade);
• A confissão dos pecados (penitência);
• A esmola (purificação do coração)
• A solidariedade (preocupação com o social).
As incertezas dos tempos e etapas da vida confundem o homem, deixando-o muitas vezes desorientado. Só Deus conhece de antemão todos os tempos da vida e da morte. Para dar alguma pista nesse sentido ele colocou o sentido da eternidade no coração do ser humano, mas sem que este compreenda integralmente a obra que Deus realiza do começo ao fim.
A fase de tempo que antecede a segunda vinda de Cristo (a parusia) será um período de de-finição entre o poder de Jesus e o poder do mundo. Sobre este tempo, São Paulo cria a comparação de um combate decisivo (cf. 2Ts 2,1-8), no que é seguido por Santo Agostinho, em sua obra “A cidade de Deus”:
Lembre-se também de que, enquanto neste mundo peregrinam, vários que lhe estão unidos pela comunhão dos sacramentos não estão associados à sua glória na eterna felicidade dos santos. Conhecidos ou desconhecidos tais homens, marcados pelo selo divino, não receiam reunir-se aos inimigos de Deus para murmurar contra ele, e ora lotam teatros em companhia deles. ora as igrejas conosco.
A verdade – e isto nunca podemos perder de vista – é que vivemos um tempo de espera, um legítimo kairós, que começou com a subida de Jesus aos céus e vai se concluir na parusia. O Senhor está perto, escreveu São Paulo (cf. Fl 4,5). Aproxima-se o tempo da colheita, hora de segar o trigo bom. Quem plantou com parcimônia vai por certo colher pouco (cf. 2Cor 9,6).
Chegou a hora da ceifa; chegou a hora da vindima; a
colheita está madura (Ap 14,15.18).
Os escritos paulinos são ricos em advertências quanto ao desabrochar do tempo oportuno em que Deus irá manifestar sua glória:
Quanto ao tempo e prazo (aqui o apóstolo usam krónon e
kairôn), irmãos, não há porque escrever-lhes. Vocês bem
sabem que o dia do Senhor chegará como um ladrão à noite.
Quando as pessoas disserem “paz e segurança!”, então
sobrevirá sobre elas repentina tribulação, como as dores
sobre a mulher que está grávida. E não poderão escapar
(1Ts 5,1-3).
Esta forte advertência de Paulo enfoca dois aspectos. Primeiro o inesperado da vinda, que pode ser num “fim do mundo”, mas, que pode ser, quem sabe, no dia da nossa morte. Não haverá tempo para nada; nem para apanhar um agasalho dentro de casa (cf. Mt 24,17). A parusia ocorrerá em dia incerto e não-sabido, e sua hora não permitirá recuos ou retratações. No segundo aspecto há um atenuante na afirmação do apóstolo. Os que preferiram a luz de Deus ao invés das trevas do Maligno, os que se mantiveram vigilantes, revestidos da couraça da fé e da caridade, e do capacete da esperança, na sobriedade da espera, esses estarão em união com aquele que morreu por todos (cf. 1Ts 5,4-11).
Sob a visão pastoral podemos afirmar que esperar a parusia dentro do contexto do projeto de Deus é expectá-la ativamente, na oração, no jejum, na caridade e na vida sacramental autêntica. Como o tempo é incerto, é preciso começar a escolher o Senhor bem antes de ele chegar. Depois poderá ser tarde demais... A porta será fechada e aqueles que não se mantiveram em estado de vigilância ficarão, a despeito de seus protestos, excluídos, do lado de fora (cf. Mt 25,12).
Teologicamente, acolher o Reino é abrir-se aos apelos da graça. É acreditar que no tempo oportuno Deus fará o melhor por nós. Essa acolhida torna realidade histórica o anúncio de Jesus: “O tempo se cumpriu, o Reino está próximo: convertam-se e creiam no evangelho” (Mc 1,15). “Acolher o Reino – diz Gustavo Gutierrez (in “El Diós de la vida”, 1989) é rejeitar a hipocrisia de uma sociedade que se diz democrática e que viola os mais elementares direitos; é negar-se a aceitar um mundo que promove a injustiça; é recusar o cinismo dos poderosos. Acolher o Reino é encontrar-se com Deus no dinamismo que esse kairós infunde na história humana”. É um tempo de busca, pois a noite já vem...
Essa noite traz consigo uma profunda dimensão escatológica. Ela é o ápice do kairós, quando o homem deixará de viver o krónos humano para ingressar definitivamente no tempo oportuno, no misterioso kairós de Deus.
Atentos a esses dados escatológicos que pervadem a mística do tempo de Deus, é salutar nunca perdermos de vista a advertência do Trito Isaías:
Procurem o Senhor enquanto ele se deixa encontrar; clamem
seu nome enquanto ele ainda está por perto (Is 55,6).
O autor é Doutor em Teologia Moral e Escritor.
Este texto fez parte de uma meditação que o autor realizou IV Encontro de Teologia na cidade de Buenos Aires, em agosto de 2008.