A Vida é dor, é sofrimento, quem ama a vida ama também o sofrimento.

"A Vida é Dor. Quem deseja, sofre; quem vive, deseja; a vida é dor. Quanto mais elevado é o espírito do homem, mais sofre. A vida não é mais do que uma luta pela existência com a certeza de sermos vencidos. A vida é uma incessante e cruel caçada onde, às vezes como caçadores, outras como caça, disputamos em horrível carnificina os restos da presa. A vida é uma história da dor, que se resume assim: sem motivo queremos sofrer e lutar sempre, morrer logo, e assim consecutivamente durante séculos dos séculos, até que a Terra se desfaça.

Deus, Criador. Se é certo que um Deus fez este mundo, não queria eu ser esse Deus: as dores do mundo dilacerariam meu coração. Se imaginássemos um demônio criador, ter-se-ia o direito de lhe censurar, mostrando-lhe a sua obra: “Como te atreves a perturbar o sagrado repouso do nada, para criares este mundo de angústia e de dores?”

Nosso Inferno. O inferno de nossa vida supera o de Dante no ponto de que cada um de nós é o demônio do seu vizinho. Há também um arquidemônio, a quem os outros obedecem: é o conquistador, que dispõe os homens uns em frente dos outros e lhes grita: “Vosso destino é sofrer e morrer; portanto, matem-se mutuamente”. E assim procedem os homens.

O Melhor dos Mundos. Se mostrássemos aos homens as horríveis dores e os atrozes tormentos a que está constantemente exposta sua existência, tremeriam de espanto; e se ao mais convencido otimista fizéssemos visitar os hospitais, os lazaretos, as salas de tortura dos cirurgiões, as prisões, os campos de batalha, os tribunais de justiça, os sombrios refúgios da miséria, e se por último, o fizéssemos contemplar a torre de Ugolino(1), acabaria por reconhecer de que modo é este “o melhor dos mundos possíveis”.

Nosso Mundo; Modelo de Horrores. Se considerarmos a dificuldade que teve Dante em descobrir o céu e suas alegrias, logo se verá que classe de mundo é o nosso. Por quê? Porque o nosso mundo nada apresenta de análogo. E para descrever o Paraíso viu-se o poeta obrigado a dar parte das notícias que lhe deram os seus antepassados, sua Beatriz e vários santos. Sem dúvida, Dante descobriu muito bem o Inferno. Por quê? Porque achou o assunto e o modelo na realidade do nosso mundo.

Uma Bela Expressão. A vida é uma carga enfadonha e aborrecida, uma tarefa que devemos desempenhar com tanto trabalho, que involuntariamente pensamos no descanso: e neste sentido a palavra defunctus é uma bela expressão.

Pranto, Dor e Aborrecimento. Nossa razão se obscurece ao considerarmos que as inúmeras estrelas fixas, que brilham no céu, não têm outro fim senão o de iluminar mundos onde reinam o pranto, a dor, e onde, no melhor dos casos, só vinga o aborrecimento; pelo menos a julgar pela amostra que conhecemos.

O Mundo; Lugar de Expiação. Brama criou o mundo por uma espécie de pecado ou desvário, e permanece nele para expiar sua falta. – Muito bem! – Segundo o budismo, uma perturbação inexplicável criou o mundo, produzindo-se depois um longo repouso na beatitude serena, chamada Nirvana, que será conquistada pela penitência. Perfeitamente. Para os gregos o mundo e os deuses eram a obra de uma necessidade insondável, explicação admissivel, porque nos satisfaz provisoriamente. Ormuzd combate com Ariman: isto podemos admitir. Mas um Deus como esse Jeová, que animi causa, por seu belprazer, criou este mundo de lágrimas e dores, e que ainda se alegra e se aplaude de o haver criado, achando-o bom, isso já é demasiado forte. Sob este ponto de vista, podemos considerar a doutrina dos judeus como a última entre todas as que professam os povos civilizados, sobretudo, sendo que tomemos em consideração de ser ela a única que não possui qualquer vestígio de imortalidade. Ainda que a teoria de Leibnitz fosse verdadeira, embora se admitisse que entre os mundos possíveis este é o melhor, essa demonstração não nos daria nenhuma teodicéia, porque o Criador não se limitou a criar o mundo, mas também a possibilidade de sua criação: por isso deveria ter criado um mundo melhor.

A dor que enche o mundo protesta irada contra a hipótese de uma obra perfeita devida a um ser infinitamente bom e sábio, e também todo poderoso. E, por outra parte, é bem evidente a notória imperfeição, a burlesca caricatura que é o homem, obra acabada da criação. Não é possível explicar essa dissonância. Quando consideramos o mundo como obra de nossa própria culpa, e, portanto, como alguma coisa que não pode ser melhor, as dores e miséria da humanidade são provas em apoio desta tese. Se o mundo é obra de um criador, as dores voltam-se contra ele dando lugar a cruéis sarcasmos; mas se é obra nossa, a acusação é contra o nosso ser e a nossa vontade. Isto nos faz pensar que viemos ao mundo já viciados, como os filhos de pais gastos pelos desregramentos, e que se a nossa existência é tão miserável, e tem por desfecho a morte, é porque assim merecemos, para expiar nossa culpa. Generalizando, nada é mais certo: a culpa do mundo é que causa os sofrimentos, e entendemos esta relação no sentido metafórico, e não no físico e empírico.

Por isso, a história do pecado original reconcilia-me com o Antigo Testamento; para mim é a única verdade metafísica que o livro contém – expressa em forma alegórica. A nada se assemelha tanto nosso destino como à conseqüência de uma falta, de um desejo culpado. Para ter orientação na vida, e considerar a vida em seu verdadeiro aspecto, basta habituarmo-nos ao pensamento de que este mundo é um vale de lágrimas, em lugar de penitência; a penal colony, como a definiram os mais antigos filósofos, e alguns padres da Igreja.

Não é mister que eu diga o que vale a sociedade de nossos semelhantes; aquele estão conscientes que mereciam outra melhor, assim como se sabe que não é a menor pena do presidiário a sociedade em que ele se encontra. Um espírito elevado, uma alma delicada, um gênio pode sentir a mesma necessidade de isolamento que um nobre prisioneiro que se encontra na cadeia rodeado de criminosos vulgares. Se sempre nos lembrássemos de que viemos ao mundo para expiar uma culpa, acolheríamos sem surpresa e sem indignação as imperfeições de nossos semelhantes, os tormentos que aqui sofremos, cuja miserável constituição intelectual e moral se revela até no rosto. A certeza de que o mundo e o homem não podem mudar nos encheria de dó pelo próximo. Com efeito, que podemos esperar de tais seres? Penso, às vezes, que a melhor maneira dos homens se cumprimentarem em vez de ser “Cavalheiro, Senhor, Sir”, poderiam ser, “companheiro de sofrimentos, soci malorum, my fellow-sufferer”... Por mais irritante que pareça esta expressão, tem mais fundamento que as usuais, e recorda-nos a paciência, indulgência e amor ao próximo, e, usada por todos, beneficiaria a cada um."

(Textos extraídos de Artur Schopenhauer)

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 04/05/2009
Reeditado em 21/06/2010
Código do texto: T1574883
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