A Tragicomédia de Nossas Vidas
"Vista e examinada minuciosamente de alto e de longe, a vida de cada homem tem o aspecto de uma comédia; em sua total consideração ou em seus aspectos mais dignos de apreço, se apresentará como uma contemplação trágica. O afã e o trabalho de cada dia, os desejos e receios cotidianos, as desgraças de cada hora, os acasos da sorte sempre disposta a nos enganar são outras tantas cenas da comédia. As aspirações iludidas, as ilusões desfeitas, os esforços baldados, os erros que completam nossa vida, as dores que se acumulam até terminar na morte, o último ato, eis a tragédia. Parece que o destino quis juntar o escárnio ao desespero, e, fazendo de nossa vida uma tragédia, não nos permite conservar a dignidade de uma personagem trágica. Por isso é que em todos os atos da vida representamos o lamentável papel de cômicos.
Da Dor ao Aborrecimento. A dor e o aborrecimento são os dois últimos elementos entre os quais oscila a vida do homem. Os homens exprimiram esta oscilação de modo curioso; depois de haverem feito do inferno o lugar de todos os tormentos e dores, que deixaram para o céu? Justamente o aborrecimento.
Rio Abaixo. A vida é um mar cheio de escolhos e turbilhões que o homem evita à força de prudência e cuidados, sem embora desconhecer que, à medida que avança sem poder retardar a marcha, corre para o definitivo e inevitável naufrágio, a morte, fim fatal de sua acidentada navegação, é parte ele muito mais perigoso que todos os turbilhões e escolhos de que conseguiu escapar.
Disfarces da Dor. Nossos esforços para banir a dor de nossa vida não conseguem outro resultado senão o de fazê-la mudar de forma. Em sua origem tomam o aspecto da necessidade, cuidado, para atender as coisas materiais da vida, e quando, após um trabalho incessante e penoso, conseguimos afastar a horrível máscara da dor neste determinado aspecto, adquire outros mil disfarces, segundo a idade e as circunstâncias: o instinto sexual, o amor apaixonado, a inveja, o rancor, os ciúmes, a ambição, a avareza, o temor, a enfermidade, etc. Toma o aspecto triste e desolado do tédio, da sociedade, quando não encontra outro modo de se apresentar. E se com novas armas conseguimos afastá-la novamente, recuperará sua antiga máscara, e a dança recomeça.
Condenados à Morte. Na primeira mocidade, colocamo-nos perante o destino, como as crianças, que, em frente ao pano de um teatro, impacientes e alegres, esperam as maravilhas que virão surgir em cena. É uma felicidade não podermos saber nada de antemão. Para quem sabe o que realmente vai se passar, as crianças são inocentes condenados não à morte, mas à vida, e que desconhecem ainda a sua sentença.
Todos Desterrados. Se não fosse a dor, poderíamos dizer que a nossa existência no mundo não teria nenhuma razão de ser. É um absurdo pensar que a dor, que nasce da vida e enche o mundo, seja apenas um acidente, e não o próprio fim. Cada desgraça pessoal apresenta-se com uma exceção, mas, como somos todos desgraçados, a desgraça geral é a regra.
Vivemos Combatendo. Na desgraça, pensar em outros que são mais desgraçados, é o nosso maior consolo: é este o remédio eficaz ao alcance de todos. Porém, como os carneiros, que saltam no prado, enquanto o carniceiro faz a sua escolha no meio do rebanho, assim, em nossas horas felizes, não sabemos que desastre nos prepara o destino, justamente nesse momento: enfermidade, ruína, loucura, perseguições, etc. Tudo que defendemos, resiste-nos, tudo tem uma vontade hostil que é preciso vencer. A história nos diz que a vida dos povos é uma sucessão de guerras e revoltas; os anos de paz não passam de curtos entreatos. O mesmo acontece com a vida do homem, em constante luta contra as penas ou o aborrecimento, males abstratos, e contra seus semelhantes. Em todas, as partes e ocasiões temos que travar combate com um adversário. A vida é uma guerra sem quartel, e a morte nos encontra com as armas na mão.
O Tempo, Mais um Tormento. A rapidez do tempo, que se conserva atrás de nós como um vigia dos forçados, é mais um tormento da existência, que nos faz viver apressadamente sem sossego e sem deixar-nos respirar. São poupados semente aquele que o tempo condenou ao aborrecimento.
Necessidade da Dor. Todos nós necessitamos sofrer certo número de preocupações, de penas e misérias, da mesma maneira que um barco tem necessidade de lastro para conservar seu equilíbrio. Se assim não fosse, se súbito nos libertássemos do peso da dor e das contrariedades,o orgulho do homem o faria em bocados ou pelo menos ele seria levado às maiores irregularidades e até à loucura furiosa, do mesmo modo que o nosso corpo rebentaria se repentinamente deixasse de sentir a pressão atmosférica. O quinhão de quase todos os homens durante sua vida resume-se em pesares, trabalho e miséria, porém, se todas as aspirações humanas se realizassem, como que se preencheria o tempo? O que preencheria sua vida? Se os homens vivessem no país das fadas, onde nada exigisse esforço e onde as perdizes voassem já assadas e recheadas ao alcance da mão, num país, onde cada um pudesse obter a sua amada sem dificuldade alguma, eles morreriam de tédio ou se enforcariam, outros despedaçar-se-iam entre si, causando-se maiores males que os impostos pela natureza. E isto demonstra que para nós não há melhor cenário que aquele que ocupamos, nem melhor existência do que a atual. Se pensamos (e só é possível ter-se uma idéia aproximada) na dor, nos tormentos de todas as espécies que o sol ilumina no seu curso, sentimo-nos propensos a desejar que a sua luz perca o poder criador da vida, como acontece com a Lua, e que a superfície do nosso planeta se faça tão gelada e estéril como a do astro da noite.
A Grande Mentira da Vida. Nossa vida é um episódio que perturba, sem nenhuma utilidade, a serenidade do nada. Mesmo aquele que não considera a existência como uma carga, à medida que passam os anos tem a consciência clara do que a vida é, em todos os seus aspectos, uma imensa mistificação, para não dizer uma formidável zombaria. A vida nunca se apresenta como um mimo que nos é dado gozar, mas sim como uma tarefa que tem de se cumprir à força de trabalho; disto nasce e toma origem uma concorrência sem tréguas, uma luta sem fim, uma miséria geral, uma agitação em que tomam parte todas as forças do espírito e do corpo. Milhões de homens, reunidos em nações, trabalham para o bem público, trabalhando assim cada um em seu próprio interesse, porém, as vítimas deste trabalho morrem aos milhares. Às vezes, por preconceitos absurdos, outras, por uma política sutil, as nações se aniquilam numa guerra. É preciso que o sangue do povo corra em abundância para expiar a culpa de alguns, ou para realizar os caprichos de outros. Enquanto reina a paz no mundo, a indústria e o comércio prosperam, as invenções se multiplicam, os navios sulcam os mares, transportando para toda parte produtos do mundo, as ondas tragam milhares de homens. O tumulto é imenso, enquanto uns se agitam e movem, outros meditam. Mas qual é a suprema finalidade de tantos esforços? Manter, no caso mais favorável, a vida de seres efêmeros em uma miséria suportável, e uma ausência relativa de dor que o tédio aceita constantemente, e ademais a reprodução desses seres, e a renovação de seus esforços.
Indefesa do Homem. De todos os seres, o homem é o mais necessitado: só tem vontades e desejos, um conjunto de centenas de necessidades. Abandonando a si próprio, vive na terra sem segurança nenhuma a não ser sua miséria. A luta pela vida, cada dia renovada, a necessidade que o constrange, e as imperiosas exigências materiais, preenchem a sua existência. Ao mesmo tempo, outro instinto o atormenta; o de perpetuar a sua raça. Ameaçado por todos os lados pelos perigos que o rodeiam, usa de sua prudência sempre vigilante para poder escapar. Com passo inquieto, lançando em volta olhares angustiosos, segue o seu caminho em luta constante com os casos e com seus inúmeros inimigos. O homem não se sente seguro entre os da sua raça e nem nos mais longínquos desertos. Qualibus in tenebris vitae, quantisque periclis degitur hocc'aevi, quodcunque est! Lucr. 11, 15.
Trabalhar ou Aborrecer-se. A necessidade imperiosa do homem é assegurar a existência, e feito isto, já sabe o que fazer. Portanto, depois disso, o homem se esforça para aliviar o peso da vida, torná-la agradável e menos sensível: “matar o tempo”, isto é, fugir ao aborrecimento. Livres da preocupação de assegurar a existência, e livres seus ombros de todo fardo moral ou material, eles mesmos constituem sua própria carga, e sentem-se felizes porque viveram uma hora desapercebida, embora isto significa que sua vida a qual se esforçam com tanto zelo para prolongá-la, ficou encurtada pelo mesmo espaço de tempo. O aborrecimento merece tê-lo em conta; ele se reflete na fisionomia. O aborrecimento é a origem do instinto social, porque faz com que os homens, que pouco se amam, se procurem e se relacionem. O Estado considerado como uma calamidade pública, e por prudência toma medidas para o combater. O aborrecimento como o seu extremo oposto, a fome, pode impelir o homem aos maiores desvarios; o povo precisa panem et circenses. Fundado na solidão e na inatividade, o rude sistema penitenciário de Filadélfia faz do aborrecimento um instrumento de suplício tão terrível, que mais de um condenado tem-se suicidado para fugir a ele. A miséria é sofrimento pungente do povo; o desgosto é para os favorecidos. Na vida civil, o domingo significa o tédio, e os seis dias, o desgosto.
A Felicidade é um Sonho. Sentimos a dor, mas não a ausência da dor; sentimos a inquietação mas não a ausência; o temor, mas não a tranqüilidade. Sentimos o desejo e a aspiração, como sentimos a sede e a fome; mas, apenas satisfeitos, se acabam, como o bocado que, uma vez engolido, já não existe para o nosso paladar. Enquanto possuamos os três maiores bens da vida, saúde, mocidade e liberdade, não temos consciência deles, e só com a perda deles é que os apreciamos, porque são bens negativos. Somente os dias de tristeza é que nos fazem recordar as horas felizes da vida passada. À medida que os prazeres aumentam, nossa sensibilidade diminui; o hábito já não é um prazer. As horas passam lentamente quando estamos tristes; correm rapidamente quando são agradáveis; porque a dor é positiva e faz sentir sua presença. O aborrecimento nos dá a noção do tempo e a distração nos faz esquecer. Isto prova que a nossa existência é mais feliz quando menos a sentimos: de onde se deduz que mais feliz seríamos se nos livrássemos dela. Uma grande alegria, assim não a julgaríamos se ela não viesse atrás de uma grande dor. Não podemos atingir um estado de alegria serena e duradoura. Esta é a razão porque os poetas são obrigados a rodear seus protagonistas de tristes ou perigosas circunstâncias, para no fim os livrar delas. No drama e na poesia épica, o herói sofre mil torturas: nos romances os heróis lutam pondo em relevo os tormentos do coração humano. “A felicidade não passa de um sonho – dizia Voltaire, tão favorecido pelo destino? – a única realidade é a dor”. E acrescenta: “Há oitenta anos que a experimento e nada faço senão resignar-me e dizer a mim mesmo que as moscas nasceram para serem comidas pelas aranhas, e os homens para serem devorados pelos desgostos”.
O Eterno Estribilho. Vista exteriormente assombra a insignificância da vida da maioria dos homens, vista interiormente é sinistra e lúgubre. Formada por inúmeras dores e aspirações impossíveis, o homem passa sonhando pela meninice, mocidade, virilidade e velhice, rodeado de idéias banais. Os homens assemelham-se a relógios que não sabem porque andam: cada vez que um novo ser nasce, dá-se corda no relógio da vida humana para seguir repetindo o eterno e gasto estribilho de uma caixa de música, frase por frase, compasso por compasso, com pequenas variações.
Joguetes da Natureza. O homem, cada um dos homens, é um sonho a mais, um sonho fugaz criado pela tenaz e constante vontade de viver, imagem efêmera que o espírito infinito da natureza desenha na página do tempo e do espaço; impressa nela alguns instantes logo se desfaz para dar lugar a muitas outras. O mais triste, o ponto que nos deve fazer pensar profundamente, é que a vontade de viver há de pagar cada uma dessas imagens efêmeras e caprichosas com o preço de dores profundas e inúmeras, e da morte por longos anos. Eis porque nos tornamos repentinamente sérios perante um cadáver.
O Teatro e os Artistas. O mundo é um vasto campo de batalha onde os seres somente devorando-se uns aos outros conseguem conservar e defender a vida; onde todo animal carnívoro é o túmulo vivo de tantos outros; onde o viver significa sofrer longos tormentos; onde a capacidade para a dor aumenta na proporção da inteligência, e atinge, portanto, no homem o mais elevado grau. Os otimistas quiseram adaptar o mundo ao seu sistema, e apresentá-lo a prior como o melhor dos mundos possíveis. O absurdo é evidente. Dizem-me para abrir os olhos e contemplar a beleza do céu iluminado pelo sol, as montanhas, os vales, as torrentes, as plantas, os animais, que sei eu! Acaso será o mundo uma lanterna mágica? A contemplação é bela, confesso, mas aí representar, é coisa completamente diferente. Após o otimista surge o homem que nos fala das causas finais, e elogia as sábias leis que preservam os astros de se chocarem no seu percurso; que evitam o mar e a terra de se confundirem, e os mantém separados; que faz com que nem o frio nem o calor sejam eternos, e que, pela inclinação da eclítica, não permite a primavera, ser eterna podendo assim amadurecer os frutos, etc. Mas tudo isso não são mais que simples “conditiones sine quibus non”. Porque se os planetas devem ter uma existência mais longa, embora seja o período que demora em chegar a eles a luz de uma estrela longínqua, e se não desaparecem após o nascimento, era preciso que as coisas estivessem mal arquitetadas, para que a base fundamental ameaçasse ruína. Chegamos aos resultados desta obra tão elogiada, e observamos os atores que se movimentam nesta, tão sábia e solidamente construída. Vemos que a dor aparece juntamente com a sensibilidade, e à medida que esta se torna inteligente, a dor e o desejo caminham par a par, e o primeiro chega a tal desenvolvimento que finalmente, a vida do homem nada mais é que um assunto trágico ou cômico. A sinceridade de certos homens não lhes permite a união ao coro dos otimistas, e com eles entonar a aleluia.
A Vida é um Pesado Gracejo. Se considerarmos a vida objetivamente, é duvidoso que ela seja preferível ao nada. Atrever-me-ia até a dizer que se a reflexão e a experiência pudessem fazer um acordo, elevariam a voz em favor do nada. Se batêssemos nas pedras dos sepulcros e perguntássemos aos mortos se querem ressuscitar, moveriam negativamente a cabeça. É esta a opinião de Sócrates na Apologia de Platão. O alegre e feliz Voltaire dizia: “Amamos a vida, porém o nada não deixa de ter o seu lado bom”. Em outra parte dizia: “Ignoro o que seja a vida eterna, mas esta é um pesado gracejo”.
De Ontem a Hoje. A juventude é uma infatigável aspiração de felicidade; a velhice, pelo contrário, é dominada por um vago e persistente sentimento de dor, porque já estamos nos convencendo que a felicidade é uma ilusão, que só o sofrimento é real. Por isso, o homem sensato deseja mais sofrer que gozar. Em plena juventude, quando eu ouvia bater à porta, saltava de alegria, e pensava: “Bom! Alguma coisa sucede”. Mais tarde, experimentado pela vida, o mesmo ruído sobressaltava-me de angústia, e pensava: “Que sucederá, meu Deus?...”
A Dura Jornada. Na velhice ao perder os sonhos da sua juventude todo homem que estudou a história do passado e a da sua época, e recolheu o fruto da sua experiência e da alheia, se não estiver com o espírito perturbado por preconceitos muito arraigados, chegará à conclusão de que este mundo é o reino do acaso e do erro, que é governado a seu modo sem compaixão alguma, auxiliados pela maldade e pela loucura, que ao homem empolgam constantemente. Mil trabalhos e esforços é preciso para impor uma idéia nobre, porque dificilmente encontra uma oportunidade de apresentar-se, enquanto que a vulgaridade artística, os sofismas, a malícia e a astúcia reinam de geração em geração, aqui e alhures sem serem interrompidos".
Por favor, pensem com zelo e com um olhar pescrutador sobre tudo o que foi mencionado acima.